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Função social das propriedades: confrontos e soluções

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25/09/2015 às 10:13
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Objetiva-se examinar aspectos da função social da propriedade, sua aplicação e implicação na propriedade, levando-se em consideração a função social da propriedade imobiliária, dos contratos e a função social da empresa.

Sumário: I- Introdução. II-A “nova” propriedade. Atuação social do homem. III – Propriedade-função e propriedade direito subjetivo. IV – O princípio da função social. Da abstração à concretude. Interesses individuais e interesses coletivos. V – O direito de propriedade. Da absolutização à sua relativação. VI – A função social integrada à estrutura e ao conceito de propriedade. VII – O cumprimento da função social. VIII – A faculdade de uso e sua extensão. IX – A função social da propriedade X a função social da empresa e do contrato. Conclusão.


I - Introdução

Objetiva este pequeno estudo examinar aspectos da função social da propriedade, sua aplicação e implicação na propriedade, levando-se em consideração a função social da propriedade imobiliária, dos contratos e a função social da empresa.

Em algumas situações da vida de relação em sociedade, em dado momento, poderão coexistir propriedades que tenham objetos diversos, mas com pontos de conexão – ambas cumprindo ao mesmo tempo, sem choques, a função social inerente a cada espécie de propriedade. Essa hipótese não só é  salutar para o o sistema, mas também para atingir os anseios da sociedade que, por sua vez, é beneficiada em tais circunstâncias. Mesmo que os titulares das propriedades em conexão não tenham como primeira motivação da manifestação de vontade na relação de conexão visado diretamente cumprir com a função social de suas propriedades.

No entanto, em determinado momento pode existir um confronto entre as propriedades em razão de questões atinentes a relação jurídica base oriunda de um contrato, que para solução será necessário que o interprete examinar quais das hipóteses atende aos princípios constitucionais da função social da propriedade, da empresa e do contrato e assim, conferir proteção que o sistema oferece. Em outras palavras, a balança deve pender para a situação que permite o cumprimento da função social da propriedade, nesse contexto englobando propriedade imobiliária, propriedade empresarial e relação contratual.

Para tanto, será necessário recordar aspectos da função social da propriedade, rememorando dados de sua existência e as implicações trazidas para na fixação dos contornos do histórico e até então absoluto, direito de propriedade. Assim, será analisado, ainda que de modo não tão profundo, como a função social se apresenta e é cumprida nos pontos salientes acima destacados, bem como quais influências produziu e produz no direito de propriedade.

Uma premissa metodológica deve ser, desde logo, fixada, qual seja, a propriedade, hoje, não possui mais a mesma configuração que inspirou nosso primeiro código civil. Urge entender a nova propriedade (que, na verdade, já não é tão nova assim, pelo que se tem escrito a respeito desde o final do século XIX), e a reconstrução (ressignificação) de seu conceito, levando-se em consideração a influência nascida da funcionalização do direito.


II – A “nova” propriedade. Atuação social do homem.

Já de algum tempo as estruturas da construção oitocentista da propriedade vêm sendo atingidas por misto de evolução e crise, diante da ausência de resposta adequada aos fenômenos sociais à sua volta.

Não se pode mais conceber o direito de propriedade com a feição de outrora, como assinalou na Itália Pugliatti em 1964:

La proprietà oggi non è proprietà (esclusivamente) individuale, ma è pur sempre propreità dell' individuo; è, sotto ogni aspetto, proprietà privata, ma attegiata ed orientata in modo da consentire la più idonea tutela dell' interesse pubblico.

Non conserva però il carattere spiccatamente individualistico della proprietà tradizionale perchà se fondamentalmente e garanzia dell' attuazione di un interesse che è del singolo proprietário, constituisce anche uno dei mezzi più largamente impiegabili per l'attuazione di interessi che transcendono la sfera individuale.[1]

A aproximação do interesse individualístico ao interesse social, em tema de propriedade, fez surgir diversas expressões nominativas do momento. Alguns, talvez, em razão do próprio sentido da expressão social, chamaram o movimento de socialização do direito de propriedade, seja para admiti-lo [2] seja para negá-lo. [3]

A despeito de ter sido identificado um marco inicial da positivação da função social através das Constituições Mexicanas e de Weimar, filosoficamente não é tranquilo estabelecer quem teria primeiro sustentado que a propriedade tem uma função social como ocorreu à partir do final do século retrasado. Entretanto, creio que desde pelo menos a Lei romana Júlia Agrária Campana do ano 61 expedida pelo cônsul Júlio César para distribuir as terras da Campânia a cidadãos pobres e veteranos de guerra[4], dos tempos das presúrias em Portugal e até mesmo nas regras de concessão de nossas terras em Sesmarias já estava presente a necessidade de exploração efetiva da terra, com o cultivo e moradia, elementos básicos da função social da propriedade imobiliária.[5]

Não há dúvida, no entanto na época moderna, de que foi a partir do momento em que os textos constitucionais passaram a reconhecer a existência, não só de direitos mas também de obrigações a serem cumpridas pelo proprietário em beneficio de outros não proprietários, sentido que se deve dar à expressão “atendimento do bem coletivo”, é que houve uma preocupação dos teóricos quanto ao estudo do assunto.

Antes de se tornar uma noção legislada, pode-se atribuir a Leon Duguit o fomento da discussão a respeito da função social da propriedade, ou da propriedade-função, tendo enfrentado também objeção de autores de seu tempo, arraigados à noção de propriedade resultante da Revolução Francesa, com argumento de inexistência de lei impondo obrigações ao proprietário. Mas para ele, as leis positivas e os códigos poderiam permanecer intactos em seus rígidos textos, pois na força das coisas, sob pressão dos fatos, das necessidades práticas, se formariam constantemente instituições jurídicas novas.[6]

Na sua reflexão sobre o direito subjetivo, Duguit afirma que o homem tem direito de ser livre, mas que há uma nova concepção de liberdade, que não é um direito subjetivo, mas sim a consequência da obrigação que se impõe a todo homem de desenvolver, o mais completamente possível, sua individualidade. Isto é, sua atividade física, intelectual e moral, a fim de cooperar o melhor possível com a solidariedade social. Para o constitucionalista francês: “El hombre no tiene el derecho de ser libre; tiene el deber social de obrar, de desenvolver sua individualidad y de cumplir su misión social.”[7]

E escrevendo sobre os Fundamentos do Direito, o referido autor reitera a mesma ideia afirmando que, “sendo todo o indivíduo, com efeito, obrigado pelo direito objectivo a cooperar na solidariedade social, resulta disso, necessariamente, que ele tem o direito de praticar todos aqueles actos pelos quais coopera na solidariedade social e de impedir que, seja quem for, obste à realização do papel social que lhe incumbe.” [8]

Se a conduta do homem é boa ou ruim, ou mesmo indiferente, é o momento histórico e cultural, ou o poder social dominante, com suas escolhas, que vai dizer. Ela será valorada e enquadrada socialmente conforme essa valoração, trazendo consequências boas ou ruins, também levando em consideração a noção de bom e de ruim do próprio grupo.

Disso resulta que, de fato, por estarmos vivendo em sociedade, cada um tem uma missão, um papel a cumprir, conforme sua posição social, adquirida, herdada, construída. Sem prejuízo da sua individualidade, que deverá desenvolver conforme os ditames de seu tempo e conforme estimula e limita a ordem jurídica.

O desempenho desse papel ou função social é necessário à sobrevivência do grupo e para socialização dos efeitos de sua conduta em benefício dos outros membros do grupo, que com ele interagem, gerando a interdependência social entre os diversos componentes do grupo.

É neste sentido a visão externada por Duguit, a respeito da função do proprietário ou, dito de outro modo, da função da propriedade capitalista. Veja-se a passagem que ora se transcreve:

“Todo individuo tiene la obligación de cumplir en la sociedad una cierta función en razón directa del lugar que en ella ocupa. Ahora bien, el poseedor de la riqueza, por lo mismo que posee la riqueza, puede realizar un cierto trabajo que sólo él puede realizar. Sólo el puede aumentar la riqueza general haciendo valor el capital que posee. Está, pues, obligado socialmente a realizar esta tarea, y no será protegido socialmente más que si la cumple y en la medida que la cumpla. La propiedad no es, pues, el derecho subjetivo del propietario; es la función social del tenedor de la riqueza.[9]

Criticava Duguit, como se percebe, o abuso e a inércia no exercício do direito de propriedade, porquanto reconhecia no sistema vigente, como ocorre ainda entre nós, que o proprietário tinha o direito de usar, gozar e dispor e como correlato, o direito de não usar, de não gozar e não dispor e, por conseguinte, de “dejar sus tierras sin cultivar, sus solares urbanos sin construcciones, sus casas sin alquilar y sin conservar, sus capitales mobiliários improductivos.”[10]

Entre nós Carlos Maximiliano comentando o parágrafo 17 do art. 72 da Constituição de 1891, que manteve a plenitude do direito de propriedade, consagrada no inciso XXII do art. 179 da Const. de 1824, em obra de 1918, já assinalava:

“Hoje, pelo menos entre juristas philosophos, não mais acceitam a doutrina da propriedade illimitada, nem tão pouco o conceito individualista de uma prerogativa, que é mantida por motivos sociaes. Ninguém adopta a definição proposta pela escola do século XVIII, que inspirou a dos Códigos Civis da França e da Itália, e é attribuida erroneamente ás fontes do Direito Romano: Jus utendi e abutendi re sua, quatenus júris ratio patitur.”[11]


III - Propriedade-função e propriedade direito subjetivo.

Josserand, partindo da noção de que o absoluto não é deste mundo, porque todas as faculdades jurídicas, pela razão de que se realizam em um meio social, comportam fatalmente limites, encontrando-se comprimidas em nome de situações, de aspirações igualmente respeitáveis, que reivindicam e devem obter a sua parte legítima[12], critério que se aplica aos direitos reais, portanto ao direito de propriedade, assinala:

“Este derecho es relativo en su ejercicio, en su realización, en el sentido de que no puede ser utilizado impunemente sino en el plano de su misión social, en la línea de su espíritu en otro caso, su titular, a decir verdad, no usa ya, sino que abusa del derecho de propiedad; comete un abuso del derecho de propiedad es decir, una desviación de ese derecho con relación a su objeto, y compromete con ele su responsabilidad. Si los poderes públicos nos reconocen derechos, no es para realizar la injusticia, sino para hacer uso legítimo y regular de dichos derechos.”[13]

Se direito é, como ensina Caio Mario, recentemente desaparecido, “o princípio de adequação do homem à vida social”[14], tinha razão Buzaid ao afirmar que toda “prerrogativa e todo poder jurídico são sociais na sua origem, na sua essência e até na missão que estão destinados a realizar”. Tal noção se aplica também às “prerrogativas de caráter altruístico como as de caráter egoístico, tais como o direito de propriedade imóvel”. Uma vez que cada egoísmo concorre a um objetivo final, “é absolutamente evidente que cada um de nossos direitos subjetivos deve ser orientado e tender para esse fim; cada um deles tem a sua missão própria a realizar, conforme o espírito da instituição” e remata:

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“...na realidade e na sociedade organizada, os pretendidos direitos subjetivos são direito-função; eles devem permanecer no plano da função a que correspondem; de outro modo seu titular comete um desvio, um abuso de direito; o ato abusivo é o ato contrário ao fim e ao espírito da instituição.”[15]

Caio Mario escrevendo sobre as tendências atuais do direito civil e analisando o confronto entre função social e direito subjetivo afirma que: “o direito moderno entende que os bens não são dados ao homem para que ele utilize até os extremos das tendências egoísticas e sacrifício geral, porém com a subordinação de seu exercício a condicionamentos proveitosos ao maior número.”[16]

No mesmo sentido é a definição de função por Celso Mello: "é o exercício, no interesse de terceiro, de um poder que, se dispõe, exclusivamente dos efeitos de se cumprir o dever de atender determinada finalidade." [17]

A importância desta discussão para a propriedade, ou para o direito de propriedade é fundamental, como reconheceram Laura B. Varela e Marcos Ludwig, ao afirmarem que a incompatibilidade entre direito subjetivo e função social é precisamente o “nó dogmático” da questão e, como tal, é o ponto “de partida para qualquer reflexão sobre a reconstrução” do direito de propriedade. Trata-se, no fundo, “da oposição entre deveres e liberdades, entre um direito civil renovado e o direito civil oitocentista.”[18]

Eros Grau salienta que não há incompatibilidade entre direito subjetivo e função. Ser titular de um direito subjetivo “é estar autorizado pelo ordenamento jurídico a praticar ou não praticar um ato – isto é, a transformar em ato a potência, ou seja, a aptidão para a prática de tal ato. A transformação da faculdade em ato, quando e se juridicamente permitida, deve ser exercida dentro dos limites da permissão” e:

“A permissão jurídica para o exercício de uma faculdade pode perfeitamente ser concedida mediante a introdução, como elementos dela [=da permissão] integrantes, de vários requisitos, aí incluídos tantos quantos atribuam deveres e ônus para o titular da permissão, i.e, do direito subjetivo.”[19]

Com efeito, o direito subjetivo, seja ele qual for, está adstrito a uma finalidade social, embora se reconheça, em primeiro plano, uma finalidade individual nas mãos do seu titular. Mas, a realização da finalidade individual é também decorrência de uma finalidade social, considerando que todos devem desenvolver o mais amplamente possível sua personalidade e a projeção desta para o mundo exterior.

Ora, vivendo o indivíduo em sociedade, não reconhecer a ordem jurídica, finalidade social no direito subjetivo, seria o mesmo que afirmar que o exercício abusivo de um direito (expressão que para alguns encerra uma contradição), por ser exercício (sem finalidade social) mereceria proteção do sistema, o que ninguém em sã consciência admite e que o Código Civil repudia no art. 187. Portanto, nenhum direito subjetivo pode alcançar tal exagero, se não fatalmente delimitará coesão da organização social.

Na expressão de Pontes de Miranda, todo o direito subjetivo "é linha que se lança em certa direção" e até "onde pode ir, ou até onde não pode ir". Seu conteúdo ou o seu exercício "dizem-no as regras limitativas, que são regras que configuram, que traçam a estrutura dos direitos e de sua exercitação",[20] não sendo então, absurdo, conjugar-se direito subjetivo e função, mesmo que se encare a expressão em sentido técnico. Não se compraz com exercício do direito, por exemplo, o fazê-lo, com espírito emulativo, como agora expressamente reconhece o novo Código Civil no § 2º do art. 1228.

Por sua vez, Junia Verna assinala que a “compatibilização entre direito subjetivo e função social passa pela nova caracterização da propriedade. Tem ela, agora, como vetor, a sua finalidade. É dizer o direito subjetivo subsiste, é preservado enquanto seu titular não usar a propriedade de modo a contrariar o interesse social, a utilidade social”.[21]

Surge então uma nova concepção de propriedade, que continua sendo um direito subjetivo individual e de natureza privada[22] e como tal deve ser analisado. Entretanto, sem perder esta natureza, isto é, “deve a propriedade ser exercida de modo tal que o seu titular utilize a coisa sem impor sacrifício ao maior número.”[23] Exercer faculdades inerentes a propriedade está necessariamente atrelada a função social do bem objeto de sua titularidade.

O trinômio – poderes, limites e deveres – passa a estar compreendido no novo conceito técnico de propriedade[24]. Este, por sua vez, não desfruta mais de “uma quase antropomórfica posição jurídica de absoluta soberania.”[25]

A funcionalização do direito subjetivo de propriedade permite a construção de uma sociedade livre, justa e solidária – mandamentos constitucionais –, porque tempera o egoísmo do impulso hedonístico do proprietário.

Com efeito, por força dos princípios constitucionais fundantes do sistema, todo direito subjetivo, independente de sua natureza, deve estar direcionado a atender a tais fundamentos, que na verdade o funcionalizam, como reconhece Perlingieri ao afirmar que o “perfil mais significativo, referindo-se ao direito subjetivo, é constituído pela obrigação, ou dever, do sujeito titular do direito de exercê-lo de modo a não provocar danos excepcionais a outros sujeitos, em harmonia com o princípio de solidariedade política, econômica e social. Isso incide de tal modo sobre o direito subjetivo que acaba por funcionalizá-lo e por socializá-lo.”[26]

Em verdade, em tempos mais recentes, já se afirma que a propriedade é uma situação jurídica complexa, face ao feixe de relações que permite, reclamando uma atenção especial do operador. Neste sentido, colhe-se em Tepedino:

“A construção, fundamental para a compreensão das inúmeras modalidades contemporâneas de propriedade, serve de moldura para uma posterior elaboração doutrinária, que entrevê na propriedade não mais uma situação de poder, por si só e abstratamente considerada, o direito subjetivo por excelência, mas una situazione giuridica soggetiva típica e complessa, necessariamente em conflito ou coligada com outras, que encontra a sua legitimidade na concreta relação jurídica na qual se insere.”[27]

Em razão da multiplicidade de situações proprietárias[28]é que se vai vincular como determinado bem, ou melhor, como o exercício do direito (nele compreendida suas faculdades e possibilidades) conferido a alguém, está ou não cumprindo com sua função social, para daí fixar-se se merece ou não a proteção conferida pelo sistema.


IV – O princípio da função social. Da abstração à concretude. Interesses individuais e interesses coletivos.

O aspecto mais importante do princípio da função social da propriedade é a sua concretude. A despeito de ser discutido e analisado a todo instante, de nada adianta ao princípio se dele não extrairmos aplicação prática. O confronto pode surgir quando se analisa a conduta do titular do direito e sua conformação com a ordem jurídica vigente. Em outras palavras, seu interesse individual, egoístico e o interesse coletivo (dos outros) impactados por sua ação ou inação.

Os institutos jurídicos existem e sobrevivem se e quando atendem aos interesses do homem. Muito pouco adianta sua existência se não resultarem em benefício para o homem. Não atende na atualidade a ideia de função social do passado, caracterizada “pela apropriação em si, como forma máxima de expressão e de desenvolvimento da liberdade humana”, dogmática vigente na codificação oitocentista e em nosso código civil anterior.[29]

A função social da propriedade incide, em nosso pensar, em qualquer propriedade, até mesmo, excepcionalmente, em bens de consumo individual, como se pode vislumbrar na hipótese de alguém que tenha alimentos para consumo próprio e resolve destruí-los, sem qualquer razão, em prejuízo da riqueza geral e de seu próprio sustento e de outros tantos que passam fome, ainda que se mostre mais saliente no que diz respeito a bens de produção ou a bens que abrigam atividade de produção.

Vale transcrever, nesta parte, a lição de Cunha Gonçalves: “O caráter social da propriedade, porém, não é o fundamento dela; só respeita ao modo do exercício de certas espécies de propriedade, como são a da terra e de outros instrumentos de produção. Durante milhares de anos, a propriedade foi exercida sem que ninguém divisasse sequer o seu aspecto social...”.[30]

Na prática, então, será necessário, no conflito de interesses (que convencionamos chamar de menor intensidade social), estabelecer quando determinados bens estão afetados à função individual, (que, na realidade, cumpre assim sua função social), e quando esses mesmos bens excedem ao padrão necessário à função individual, pois aqui sim, o princípio da função social terá aplicação, mas em desfavor do proprietário que não o estiver observando.

Assim, o bem de natureza imóvel em que o proprietário o utiliza diretamente através de moradia ou de cultivo ou na produção de renda para seu sustento e de sua família através da locação, quando outrem então, servindo-se da posse, cumpre com a função social atinente ao bem, seja residindo seja produzindo outros bens e riquezas socialmente relevantes, merece proteção do sistema. Nessas circunstâncias sua legitimação decorre do cumprimento da função social individual mas também da função social geral.

Por certo que a decisão final a respeito (se o proprietário cumpre ou não com a função social) deverá ser dada pelo Poder Judiciário, órgão incumbido pelo Estado para dirimir os conflitos de interesses. Somente no exame do caso concreto é que se poderá afirmar se determinada propriedade está cumprindo ou não com a função social. Mesmo que no interesse individual do titular, ou está indevidamente retida, para fins de especulação, ou acumulada sem destinação ao uso para o qual se volta ou que o titular esteja agindo de modo emulativo, exercendo ou pretendendo exercer seu direito com abuso, porque não atende aos limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (art. 187 do C.C./2002).

Nesse sentido é a opinião de Celso Bastos e Ives Gandra, após reconhecer que a aplicação do princípio da função social pode e deve ser invocada para a proteção de interesses prejudicados, por exercício anti-social da propriedade, sustentam eles:

“O intérprete das normas - quem diz a verdade jurídica - não é o Legislativo, nem o Executivo, mas o Judiciário. Ora, as disposições constitucionais são normas. Assim, o titular do poder público de dizer sobre elas é, pois, o Judiciário.” [31]

Evidente que este exame não se faz aleatoriamente, sem critério, ou com base em critérios eminentementes subjetivos. Nesta parte, razoável parece a lição de Celso Bastos:

“Na medida em que haja o uso degenerado, exclusivamente personalista e egoísta, até mesmo deturpado à luz dos interesses pessoais do próprio possuidor, o direito de propriedade vai expor-se a sanções fundamentalmente de duas ordens: as decorrentes da infringência às normas do poder de polícia, ou então à perda da propriedade na forma da Constituição. A função social visa a coibir as deformidades, o teratológico, os aleijões, digamos assim, da ordem jurídica.” [32]

Destaque-se ainda que o princípio de função social tem ou deve ter muito maior alcance do que aparenta. Não é mera exortação ou conselho de simples valor moral,[33] nem tem natureza metodológica e classificatória,[34]do direito de propriedade.

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Sobre o autor
Marcos Alcino de A. Torres

mestre e doutor em Direito Civil pela UERJ, prof. Adjunto de Direito da Civil da UERJ, Coordenador do Mestrado e Doutorado em Direito da Cidade. Presidente do Forum Permanente de Direito da Cidade da EMERJ. Coordenador de Direito das Obrigações da EMERJ. Diretor Cultural do IMB (Instituto dos Magistrados Brasileiros).Desembargador Presidente da 27ª C.C. do TJ-RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORRES, Marcos Alcino A.. Função social das propriedades: confrontos e soluções. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4468, 25 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42659. Acesso em: 18 abr. 2024.

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