4. Art. 263 da Lei nº 8.069/90 x arts. 6º e 9º da Lei nº 8.072/90: discussão superada
Discussão que se apresentava antes da edição da Lei nº 9.281/96 era se, havendo crime de estupro ou atentado violento ao pudor contra menor de quatorze anos, aplicava-se o Estatuto da Criança e do Adolescente ou a Lei dos Crimes Hediondos. Divergências existiam entre doutrinadores e principalmente na jurisprudência acerca desta questão.
Em 13 de julho de 1990 foi editada a Lei nº 8.069, Estatuto da Criança e do Adolescente, que previa em seu art. 263 o acréscimo de um parágrafo único aos arts. 213 e 214 do Código Penal, qualificando os delitos de estupro e atentado violento ao pudor, respectivamente, quando tais crimes fossem praticados contra menores de quatorze anos.
O art. 213 do Código Penal ficaria acrescido de um parágrafo único, que preconizava pena de reclusão de quatro a dez anos se a ofendida fosse menor de quatorze anos, o art. 214 de seu parágrafo único cominando pena de três a nove anos de reclusão nas mesmas circunstâncias.
Ocorre, porém, que com a promulgação da Lei dos Crimes Hediondos, mais precisamente com as alterações trazidas em seu art. 6º, ao caput dos delitos de estupro (art. 213) e atentado violento ao pudor (art. 214) foram cominadas penas de seis a dez anos de reclusão aos seus tipos simples, independentemente de qualquer circunstância pessoal do ofendido. Sendo a vítima menor de quatorze anos, aplicar-se-ia a majorante prevista no art. 9º alínea a do mesmo diploma legal, elevando-se a pena na metade. Assim, a pena para estupro ou atentado violento ao pudor, desde que praticados com violência real ou grave ameaça, contra menor de quatorze anos seria de nove a quinze anos de reclusão.
Neste caso, qual diploma legal a ser aplicado? O Estatuto da Criança e do Adolescente, por ser lei penal mais benéfica ao acusado e atender ao princípio da especialidade, ou a Lei dos Crimes Hediondos?
Estabelece o art. 266 do Estatuto da Criança e do Adolescente um período de vacatio legis de noventa dias, só podendo esta lei ser aplicada aos fatos ocorridos a partir de outubro de 1990. Contudo, em 25 de julho do mesmo ano, foi promulgada a Lei nº 8.072, prevendo em seu art. 12 o início de sua vigência na data de sua publicação, a qual fora realizada no dia seguinte. Entendimento majoritário e acertado da doutrina e jurisprudência é no sentido de que se aplica a tais casos a Lei dos Crimes Hediondos.
Com efeito, há duas razões principais e uma eventual para que se aplique a Lei nº 8.072/90 em detrimento da Lei nº 8.069/90: I) a primeira razão é a prevista no art. 2º, § 1º da Lei de Introdução ao Código Civil, a qual determina que a lei posterior revoga a anterior quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. O que ocorre neste conflito normativo é justamente a questão de que a Lei dos Crimes Hediondos, em seus arts. 6º e 9º combinados, regula a mesma matéria prevista no art. 263 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Por ser lei posterior, deve a Lei nº 8.072/90 prevalecer, uma vez que sua aplicação imediata derrogou a Lei nº 8.069/90 no que concerne aos delitos de estupro e atentado violento ao pudor praticados contra menores de quatorze anos. Leciona Dias Marques que "de duas leis, uma das quais foi promulgada primeiro e entra em vigor depois, e outra que foi promulgada depois e entra em vigor primeiro, será esta que, em caso de contradição, deve prevalecer sobre aquela" [23]. É exatamente o caso que se propõe; II) a segunda razão lógica é que se fosse aplicado o Estatuto da Criança e do Adolescente, cominando-se pena de quatro a dez anos de reclusão no caso de estupro e três a nove no de atentado violento ao pudor praticados contra menores de catorze anos, espécie de qualificadora, haveria uma incongruência total entre os caputs destes artigos e seus parágrafos únicos, os quais teriam penas menores do que aqueles, apesar de preverem uma circunstância qualificadora, já que a pena destes crimes, cometidos em suas formas simples, de acordo com a nova redação que lhes fora dada pela Lei nº 8.072/90, passaria a ser de reclusão de seis a dez anos. Então, é de se admitir que esses parágrafos únicos foram tacitamente revogados pela Lei nº 8.072/90. Interpretação contrária conduziria ao absurdo de ter o caput uma pena mais gravosa do que o parágrafo único, tipo qualificado. Demais disso, o tipo básico seria considerado crime hediondo e o tipo derivado não poderia ser reputado como tal [24]. Chega-se à inadmissível conclusão de que o Estatuto da Criança e do Adolescente, cujo principal objetivo é a proteção da criança, reduz as penas quando as vítimas forem exatamente crianças e adolescentes [25]; III) por fim, se fosse aplicado o art. 263 da Lei nº 8.069/90 restaria impossibilitada a incidência do art. 9º da Lei nº 8.072/90, que prevê majorante para o estupro e o atentado violento ao pudor praticados contra menores de catorze anos (art. 224, "a"), uma vez que haveria flagrante bis in idem.
Apesar de o art. 263 da Lei nº 8.069/90 ser mais benéfico ao agente, não pode ser utilizado pelo simples fato de que, tecnicamente, nem chegou a ingressar em nosso ordenamento jurídico, já que fora revogado antes de sua entrada em vigor. Pelo mesmo fato não se pode argüir a prevalência do princípio da especialidade.
Isto posto, percebe-se que a melhor interpretação é aquela que entende ter sido revogado o art. 263 do Estatuto da Criança e do Adolescente pela Lei dos Crimes Hediondos, lei posterior, além do que se presume a harmonia entre os dispositivos de um mesmo Código [26], o que restaria impossível se a forma simples do delito fosse apenada mais severamente do que sua forma qualificada.
Pondo fim a qualquer dúvida, como já fora dito, a Lei nº 9.281/96 revogou expressamente os parágrafos únicos dos arts. 213 e 214 do Código Penal, que haviam sido acrescidos pelo art. 263 do Estatuto da Criança e do Adolescente [27].
5. Conclusões
Conclui-se que, apesar de movido por sentimento de maior represália aos crimes de maior ofensividade à sociedade, o legislador ordinário cometeu algumas falhas técnicas quando da redação da Lei dos Crimes Hediondos, tornado-a parcialmente inconstitucional e, conseqüentemente, inaplicável a certos casos, o que levou Alberto Silva Franco a afirmar que a causa de aumento de pena do art. 9º da Lei nº 8.072/90 é um caso de exagero legislativo que torna o referido dispositivo um gravame desproporcionado em relação à conduta criminosa já seriamente punida [28].
A quantidade de imperfeições trazidas pela Lei nº 8.072/90 são tão significativas que conduziram João José Leal a dizer que "tantas são as afrontas a princípios constitucionais, tantas são as ofensas a princípios básicos do Direito Penal contemporâneo; enfim, tamanha é a carga punitiva contida em seu texto, que a melhor alternativa seria a de sua própria ab-rogação pelo Congresso Nacional" [29].
Em relação aos crimes de latrocínio, extorsão com resultado morte e extorsão mediante seqüestro com resultado morte, por ofensa ao princípio da individualização da pena, não se aplica a majorante do art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos. Em contra partida, em relação aos delitos de estupro e atentado violento ao pudor tipificados por uso de presunção prevista no artigo 224 do Código Penal, também não se aplica a majorante em questão por ofensa ao princípio da legalidade, importando, pois, bis in idem. Ressalte-se, todavia, que se houver utilização de violência real ou grave ameaça para a prática de um dos delitos sexuais em foco, será perfeitamente aplicável o aumento de pena.
No que respeita à associação para tráfico de drogas (art. 14 da Lei de Tóxicos), demonstrou-se que a questão se refere a um crime autônomo de associação que ainda está vigente, no que concerne ao seu preceito primário, descritivo da conduta típica. O seu preceito secundário ou sancionatário, entretanto, foi revogado pelo art. 8º da Lei nº 8.072/90, pois este trás pena mais benéfica ao agente.
O conflito aparente entre o art. 263 da Lei nº 8.069/90 (ECA) e a Lei dos Crimes Hediondos, não obstante superado pela edição da Lei nº 9.281/96 que revogou expressamente os parágrafos únicos dos arts. 213 e 214 do Código Penal, acrescidos pelo art. 263 do Estatuto da Criança e do Adolescente, já havia tido entendimento pacificado pela maior parte da doutrina e jurisprudência no sentido de interpretar prevalente a Lei dos Crimes Hediondos, por ser posterior e reguladora da mesma matéria tratada no referido Estatuto.
Notas
1. MONTEIRO. Antônio Lopes. Crimes hediondos. 7. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2002, p. 16.
2. FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. 4. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: RT, 2000, p.300.
3. Idem, p. 301.
4. BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. 5. ed. - São Paulo: RT, 1994, p. 577.
5. BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. Tomo III : pena e medida de segurança. 4. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 102.
6. BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit. P. 576.
7. FRANCO, Alberto Silva. Op. cit. P. 302.
8. NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. vol. 3, 23. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 1998, p. 182.
9. BUSTOS RAMIREZ, Juan. Manual de derecho penal español: parte general - Barcelona: Ariel, 1984, p. 77.
10. TJSP – AC 112.456-3/6 – Voto vencido: Luiz Betanho in FRANCO, Alberto Silva et alli. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. vol 1, tomo II: parte especial. 6. ed. rev. e atual. – São Paulo: RT, 1997, p. 2.936.
11. SCHIMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade no estado democrático de direito – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 147.
12. FRANCO, Alberto Silva. Op. cit. p. 303.
13. Idem. p. 304.
14. Idem. p. 307.
15. RT 751/530 in MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. vol. 2 - parte especial. 18. ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2001, p. 447.
16. MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal. vol. 3: parte especial. 16. ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2001, p. 200-203.
17. FRANCCO, Alberto Silva (coord.), STOCO, Rui (coord.) et alii. Leis Penais especiais e sua interpretação jurisprudencial. vol. 2, 7. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: RT, 2001, p. 3.208.
18. JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal anotado. 9. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 1999, p. 822.
19. FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos... p. 281.
20. JESUS, Damásio Evangelista de. Op cit. p. 822.
21. JESUS, Damásio Evangelista de. Lei antitóxicos anotada – São Paulo: Saraiva, 1995, p. 61.
22. Dispõe o art. 15 da Lei 10.409/02: "Art. 15. Promover, fundar ou financiar grupo, organização ou associação de 3 (três) ou mais pessoas que, atuando em conjunto, pratiquem, reiteradamente ou não, algum dos crimes previstos nos arts. 14 a 18 desta Lei – Pena: reclusão de 8 (oito) a 15 (quinze) anos, e multa. – Publicado no D.O.U. em 14 de janeiro de 2002.
23. Dispõe o art. 59 da Lei 10.409/02: "Art. 59. Ficam revogados a Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976, mantido o Sistema Nacional Antidrogas de que trata o art. 3º daquela Lei, e o art. 1º da Lei nº 9.804, de 30 de junho de 1999". Razões do veto deste dispositivo – "Conquanto repleto de positivas inovações, o projeto, por razões já expostas, não logra êxito quanto à juridicidade de vários de seus artigos. Isso compromete a substituição plena da Lei que regula a matéria. Portanto, a cláusula que revoga a Lei nº 6.368/76 não deve persistir, sob pena de abolição de diversos tipos penais, entre outros efeitos nocivos ao interesse público" – Mensagem de Veto nº 25, de 11 de janeiro de 2002. - Publicados no D.O.U. em 14 de janeiro de 2002.
24. Citado por JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal Anotado. 9.ed. ver. e atual. – São Paulo: Saraiva, 1999, p. 677.
25. PRADO. Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. vol. 3: parte especial – São Paulo: RT, 2001, p. 200.
26. TJSP – AC 117.796-3/0 – Rel. Ivan Marques. in FRANCO, Alberto Silva et alii. CódigoPenal e sua interpretação jurisprudencial... p. 2.928.
27. TJSP – AC 105.609-3/6 – Voto vencido: Cunha Camargo. Idem, p. 2.927.
28. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal. vol. 2... p. 412.
29. FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos... p. 300.
30. LEAL, João José. Crimes hediondos: aspectos político-jurídicos da Lei nº 8.072/90 – São Paulo: Atlas, 1996, p. 150.
Bibliografia
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