1 INTRODUÇÃO
O Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação de quaisquer bens ou Direitos (ITCMD) é um tributo, da espécie imposto, cuja instituição compete aos estados federados, competência esta atribuída pela Constituição Federal de 1988, no artigo 155, inciso I.
Até o advento da Constituição Federal de 1988, o Imposto de Transmissão Causa Mortis (herança ou legado, advindos da morte de pessoa natural) e o Imposto de Transmissão Inter Vivos (celebração de negócios jurídicos entre pessoas) pertenciam à competência dos estados, como ainda se nota no artigo 35 do Código Tributário Nacional. A atual Constituição, desde o seu nascimento, bipartiu a competência para instituição do imposto, ficando asseverado o seguinte: a transmissão relacionada ao evento causa mortis ou doação entre pessoas ficaria na competência dos estados, já a transmissão onerosa entre vivos de bens imóveis foi deslocada para o âmbito das municipalidades. (SABBAG, 2015, p. 1187)
Sendo um imposto de caráter real (onde se leva em consideração as características da coisa tributada), o ITCMD sempre atraiu a atenção dos juristas brasileiros no tocante à progressividade de suas alíquotas e consequente aplicabilidade do princípio da capacidade contributiva, tendo em vista a previsão para essa elevação de alíquotas, em resolução editada pelo Senado Federal.
A relevância do tema em análise justifica a pertinência da temática em estudo. Os olhares de ilustres doutrinadores, autores e juristas estão atentamente voltados ao assunto em razão do seu caráter polêmico e contemporâneo.
O objetivo central do artigo é o de verificar a possibilidade de haver um consenso a respeito da progressividade das alíquotas do ITCMD e demonstrar a mudança paradigmática após decisão do Supremo Tribunal Federal.
2 METODOLOGIA
A pesquisa realizada para a elaboração deste artigo teve cunho bibliográfico, ou seja, foi atribuída maior relevância a fontes escritas. O primeiro passo tomado foi a identificação das fontes que seriam necessárias e adequadas à resolução da problemática proposta. Posteriormente, foram analisadas minuciosamente diversas fontes bibliográficas, dentre elas: a Constituição Federal de 1988, o Código Tributário Nacional (CTN), as doutrinas específicas de Direito Tributário, legislações complementares relacionadas ao tema, artigos científicos e decisões, tanto antigas quanto modernas, do Supremo Tribunal Federal. Foi realizado também o fichamento das obras com o objetivo de identificar as principais ideias e o registro das partes que seriam pertinentes ao desenvolvimento do estudo.
Para melhor construção de um posicionamento contemporâneo, foi realizada uma análise comparativa pela perspectiva histórica com o intuito de demonstrar a evolução doutrinária e jurisprudencial.
3 RESULTADO E DISCUSSÃO
3.1 ITCMD – Conceitos basilares e previsão legal
O Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação de quaisquer bens ou Direitos, mais conhecido pela sigla ITCMD, é um imposto de competência estadual previsto expressamente no artigo 155, I, da Constituição Federal de 1988 e no artigo 35 e seguintes do Código Tributário Nacional.
Como bem ilustra Sabbag (2015, p. 1187), “o ITCMD é um dos impostos mais antigos na história da tributação, havendo relatos de sua exigência em Roma, sob a forma de vigésima sobre heranças e doações”.
O Código Tributário Nacional (artigos 35 a 42) disciplina um único imposto de transmissão que incide exclusivamente sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos relacionados a eles. Após o advento da Constituição Federal de 1988, previu-se a instituição de dois impostos de transmissão, um de competência estadual (ITCMD) e outro de competência das municipalidades (ITBI). Contudo, o primeiro incide nas transmissões a título gratuito e o segundo nas transmissões realizadas a título oneroso (ALEXANDRE, 2013, p. 573-574).
Segundo Ricardo Alexandre (2013, p. 573), esse tributo possui natureza fiscal (eminentemente arrecadatória) e sua incidência não atingirá as transmissões originárias, como no caso da usucapião (artigo 1.238 do Código Civil) ou a acessão (artigo 1.248 do Código Civil).
O fato gerador do ITCMD é a transmissão, por causa mortis (herança ou legado) ou por doação, de quaisquer bens ou direitos. Na hipótese de transmissão por causa mortis, o fato gerador ocorre no momento da “abertura da sucessão” (morte). Já no caso de transmissão por doação, ele se dá no momento da entrega do bem móvel ou no instante em que se leva à registro a transferência do imóvel (MACHADO, 2010, pp. 377-378).
Em se tratando da base de cálculo do imposto em análise, faz-se necessário compartilhar o posicionamento de Ricardo Alexandre, qual seja:
[...] como no ITCMD a transmissão de propriedade ocorre a título gratuito (não ocorrendo pagamento ou qualquer outra contrapartida), não se poderia imaginar que a base de cálculo fosse outra que não o valor de mercado dos bens ou direitos transmitidos. Nessa linha, o art. 38 do CTN dispõe que a base de cálculo do imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos. (ALEXANDRE, 2013, p.577)
Seguindo essa linha de raciocínio e pormenorizando ainda mais o que seria a base de cálculo do ITCMD, vislumbra-se ser o valor de mercado do bem que deverá ser transmitido e, obviamente, não superará o valor deste. A alíquota a ser observada será aquela cuja vigência se dê na data da abertura da sucessão e o cálculo será realizado tomando por base o valor dos bens na data da avaliação (SABBAG, 2015, p. 1189).
Conforme prevê o artigo 42 do Código Tributário Nacional (CTN), o contribuinte do imposto ora estudado é qualquer uma das partes na operação tributada, como dispuser a lei estadual.
O sujeito passivo é o herdeiro ou legatário (transmissão causa mortis), ou qualquer das partes na doação, quais sejam, doador ou donatário (MACHADO, 2010, p.381).
Segundo Alexandre (2013, p.577), “[...] o CTN optou por delegar ao legislador estadual a definição legal do contribuinte do ITCMD, desde que a indicação recaia sobre uma das partes da operação [...]”.
Superada a exposição dos conceitos básicos, passa-se ao estudo das alíquotas progressivas e da capacidade contributiva, esquematizando-se ainda sobre a atribuição da competência do Senado Federal fixar as alíquotas máximas do ITCMD e a edição da Resolução 9/92 por parte da casa senatorial.
3.2 As alíquotas progressivas à luz da capacidade contributiva
O princípio da capacidade contributiva não pode ser confundido com o princípio da igualdade (isonomia), mesmo tendo ligação direta com este. O liame entre estes dois princípios é conhecido como um dos aspectos da igualdade, que se evidencia ao buscar tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, cada um na sua particularidade (AMARO, 2012, p.164).
Para melhor sedimentar a linha de raciocínio supracitada, Luciano Amaro faz clara abordagem social a respeito do princípio da capacidade econômica do contribuinte, conforme segue:
O princípio da capacidade contributiva inspira-se na ordem natural das coisas: onde não houver riqueza é inútil instituir imposto, do mesmo modo que em terra seca não adianta abrir poço à busca de água. Porém, na formulação jurídica do princípio, não se quer apenas preservar a eficácia da lei de incidência (no sentido de que esta não caia no vazio, por falta de riqueza que suporte o imposto); além disso, quer-se preservar o contribuinte, buscando evitar que uma tributação excessiva (inadequada à sua capacidade contributiva) comprometa os seus meios de subsistência, ou o livre exercício de sua profissão, ou a livre exploração de sua empresa, ou o exercício de outros direitos fundamentais, já que tudo isso relativiza sua capacidade econômica. (AMARO, 2012, p. 163)
Para Harada (2011, p.372), o princípio ora analisado serve como um parâmetro no exercício da atividade legiferante, tendo caráter programático e, com previsão legal no § 1° do artigo 145 da Constituição Federal de 1988, ipsis literis:
Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. (BRASIL,1988)
A progressividade é uma técnica do Direito Tributário que têm como escopo fazer com que os tributos atendam à capacidade econômica do contribuinte. Neste caso, a lei prevê alíquotas variadas para algum imposto e o aumento ocorre na medida em que se eleva a base de cálculo. Sendo assim, nota-se que, na progressividade, quanto maior for a base de cálculo, maior será a alíquota a ser aplicada.
Conforme Alexandre (2013, p.97), quando se manifesta a riqueza, surge a solidariedade social que é obrigatoriamente imposta. O Estado, mediante lei, obriga o particular a entregar-lhe parte de sua riqueza, que será remanejada a toda a sociedade por meio das atividades estatais. Portanto, é justo considerar que a solidariedade de cada pessoa seja na medida de suas possibilidades. Diante disso, conclui-se que quem mais manifesta riqueza, terá maior possibilidade de contribuir para com a sociedade sem comprometer a sua subsistência. A cobrança progressiva do ITCMD é um tema bastante polêmico e amplamente discutido por doutrinadores.
O ITCMD é um imposto de caráter real, ou seja, leva em consideração as características da coisa tributada. Já os impostos de caráter pessoal tomam como base as características do contribuinte, também chamada de capacidade contributiva (ALEXANDRE, 2013, p.97).
A Constituição Federal de 1988 autorizou a imposição de alíquotas progressivas somente para impostos que tenham caráter pessoal. Agindo em desconformidade com a previsão constitucional, o Senado Federal foi além da competência atribuída a ele pelo artigo 155, §1°, IV da Constituição Federal de 1988, quando previu a possibilidade dos estados federados adotarem alíquotas progressivas no ITCMD, conforme artigo 2° da Resolução n. 9/92.
Segundo Sabbag (2015, pp. 1189-1190), os estados podem fixar livremente as alíquotas do ITCMD, devendo observância ao teto fixado pela casa senatorial, qual seja em 8%. Cabe ressaltar, que a Resolução n. 9/92 do Senado Federal além de prever a alíquota máxima para o ITCMD, previu também a possível adoção de alíquotas progressivas baseadas no valor do quinhão que cada herdeiro receber, conforme se extrai do dispositivo a seguir, em seu inteiro teor:
Art. 1° A alíquota máxima do imposto de que trata a alínea a, inciso I, do art. 155 da Constituição Federal será de 8 por cento, a partir de 1° de janeiro de 1992.
Art. 2° As alíquotas dos impostos, fixadas em lei estadual, poderão ser progressivas em função do quinhão que cada herdeiro efetivamente receber, nos termos da Constituição Federal.
Art. 3° Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 4° Revogam-se as disposições em contrário. (SENADO FEDERAL, 1992)
3.3 Posicionamento antigo da jurisprudência e doutrina pátria
Uma vez expostos os conceitos basilares pertinentes à construção de um entendimento básico a respeito do tema e análise das alíquotas progressivas sobre a ótica do princípio da capacidade econômica do contribuinte, passa-se à verificação do posicionamento antigo dos doutrinadores e da jurisprudência brasileira no que concerne à progressividade das alíquotas do ITCMD.
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 até o início do ano de 2013, o entendimento do Supremo Tribunal Federal era uníssono em relação à graduação de impostos tomando por base a capacidade contributiva: se os impostos tivessem caráter pessoal, a progressividade seria utilizada, caso fossem dotados de caráter real, a aplicação de tal instituto não poderia lograr êxito. Sendo assim, o entendimento da Suprema Corte era no sentido de que apenas os impostos pessoais poderiam se valer da técnica da progressividade, uma vez que estes levam em consideração as características do contribuinte. (ALEXANDRE, 2013, p. 97)
Seguindo essa linha de raciocínio, o Supremo Tribunal Federal considerava que a progressividade só seria aplicada aos impostos reais caso fosse prevista expressamente no texto constitucional, situação que ocorria somente com o Imposto Territorial Rural (ITR) e o Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana. Esse pensamento sedimentou-se na confecção da Súmula 656 do Supremo Tribunal Federal que versava sobre o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis e direitos a eles relativos (ITBI), com conteúdo no sentido de considerar inconstitucional a adoção de alíquotas progressivas para impostos reais.
Por diversas vezes, o Supremo proferiu acórdãos e súmulas deixando bem claro o seu entendimento quando o assunto em análise era a utilização de alíquotas progressivas em impostos reais. Cabe citar, dentre elas, algumas decisões de peso que norteavam a jurisprudência à época:
EMENTA - ITBI: progressividade: L. 11.154/91, do Município de São Paulo: inconstitucionalidade. A inconstitucionalidade, reconhecida pelo STF (RE 234.105), do sistema de alíquotas progressivas do ITBI do Município de São Paulo (L. 11.154/91, art. 10, II), atinge esse sistema como um todo, devendo o imposto ser calculado, não pela menor das alíquotas progressivas, mas na forma da legislação anterior, cuja eficácia, em relação às partes, se restabelece com o trânsito em julgado da decisão proferida neste feito. (BRASIL. STF. RE: 259339/2000-SP)
Ao apreciar o recurso, proferi a seguinte decisão: “DECISÃO: Trata-se de recurso extraordinário interposto com fundamento no art. 102, III, 'a', da Constituição Federal, contra acórdão que entendeu ser inconstitucional a progressividade da alíquota do imposto de transmissão causa mortis e doações, prevista no art. 8o, da Lei Estadual no 11.413, de 1996, por se tratar de imposto de caráter real. Alega-se violação ao artigo 145, § 1º, da Carta Magna. Esta Corte firmou entendimento no sentido de que é inconstitucional a progressividade de imposto de natureza real. Neste sentido, o RE 233.054, 1a T., Rel. Moreira Alves, DJ 25.02.00: ' - IPTU. Progressividade. Inconstitucionalidade do artigo 4º da Lei 2.715/89 do Município de Osasco. - Esta Corte, ao julgar o RE 153.771, firmou o entendimento de que, em se tratando de imposto de natureza real como era o caso do IPTU, não se pode levar em consideração a capacidade econômica do contribuinte para adotar a progressividade com relação a impostos dessa natureza. Tendo o imposto de transmissão de bens imóveis a natureza de imposto real, o acórdão recorrido, por não admitir que ele seja progressivo, não ofendeu o disposto no artigo 145, § 1o, da Constituição. Por isso, o mesmo Plenário, ao julgar o RE 228.735, declarou a inconstitucionalidade do artigo 4o da Lei n. 2.175/89 do Município de Osasco. [...] Tendo em vista que a controvérsia requer um melhor exame por esta Corte, reconsidero a decisão agravada e, desde logo, determino que se abra vista ao Exmo. Sr. Dr. Procurador-Geral da República. Brasília, 3 de abril de 2008. Ministro Gilmar Mendes Relator Documento assinado digitalmente. (BRASIL. STF. RE: 452146/2008-SP)
É de suma importância citar também entendimento dos Tribunais Regionais Federais, que seguiam o posicionamento da Suprema Corte no tocante ao tema em análise:
Constitucional - Tributário - Imposto de Transmissão de Imóveis, Inter Vivos - ITBI - Alíquotas Progressivas - CF, ART. 156, II, § 2º. LEI Nº 11.154, de 30.12.91, do Município de São Paulo-SP. 1. O Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de ser inconstitucional o artigo 10, II, da Lei n. 11.154, de 30 de dezembro de 1991, do Município de São Paulo, que instituiu alíquotas progressivas para o imposto de transmissão de bens ímóveis. (RE 234.105 e RE 227.033)2. Sentença mantida. (BRASIL. TRF-3ª Região. AMS: 32012/2010-SP)
Como é de se esperar, grande parte dos doutrinadores sempre acompanham a jurisprudência dos Tribunais no processo de elaboração das doutrinas, seguindo à risca o que é decidido nas Cortes e transcrevendo os ensinamentos para orientar os diversos operadores do direito, sejam eles estudantes ou profissionais já graduados.
Sendo assim, Harada (2011, p. 422) deixava claro o seu posicionamento ao dizer que enquanto prevalecer na Suprema Corte o entendimento de que os impostos de caráter real não podem se valer do princípio da capacidade contributiva, como foi reconhecido no caso do ITBI, para julgamentos sobre o ITCMD o posicionamento seria análogo. Para melhor compreensão do posicionamento do ilustre doutrinador segue decisão do STF sobre o assunto:
Ementa: Constitucional. Tributário. Imposto de Transmissão de Imóveis, Inter Vivos – ITBI. Alíquotas Progressivas. C.F., art. 156, II, § 2°. Lei 11,154, de 30.12.91, do Município de São Paulo.
I – Imposto de transmissão de imóveis, inter vivos – ITBI: alíquotas progressivas: a Constituição não autoriza a progressividade das alíquotas, realizando-se o princípio da capacidade contributiva proporcionalmente ao preço da venda.
II – R.E. conhecido e provido.
(BRASIL. STF. RE 234.105-3/1999)
No mesmo sentido, Sabbag (2010, p.157 apud Damico, 2010) firma seu entendimento considerando incompatível com o texto constitucional a graduação de alíquotas para impostos de caráter real, salientando ainda, a vedação da progressividade para o ITCMD, asseverando ser esse o posicionamento majoritário da doutrina e da jurisprudência, e deixando claro o pensamento de que o Senado Federal foi além da competência que a Constituição Federal de 1988 lhe atribuiu.
Tendo em vista o caráter polêmico do assunto, diversos autores publicaram artigos científicos com a finalidade de exporem o seu posicionamento à luz do que já vinha sendo decidido pelos Tribunais e encontrava-se assentado na doutrina pátria.
Em artigo de autoria de Damico (2010), concluiu este pela inconstitucionalidade tanto das alíquotas em impostos reais, quanto pela previsão de tal progressividade em resolução senatorial, conforme segue:
[...] a imposição de alíquotas progressivas para o ITCMD deve ser considerada inconstitucional, eis que tal imposição é autorizada pela Constituição Federal somente em casos de impostos de caráter pessoal. No mesmo vetor, não prospera a possibilidade da instituição de alíquota progressiva prevista no Art. 2°, da Resolução n°. 9/92 do Senado Federal, eis que fere de pronto a competência que lhe fora atribuída pelo Art. 155, § 1°, IV, da Constituição Federal, sendo, portanto inconstitucional, também, nesse ponto.
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Miguel (2011), ao analisar a possibilidade jurídica do ITCMD ser progressivo, reafirmou o posicionamento já adotado pela jurisprudência e doutrina, salientando a incompatibilidade de tal previsão com a Constituição Federal e o excesso no agir do Senado Federal ao disciplinar na Resolução n°. 9/92 que as alíquotas do ITCMD poderiam atender à capacidade contributiva. Segundo o supracitado autor, o Senado Federal utilizou-se de poderes que não lhe foram conferidos pela Carta Magna para prever que as alíquotas do referido imposto fossem progressivas.
3.4 Posicionamento hodierno
Tendo em vista a grande explanação sobre o posicionamento antigo de todo o corpo jurídico brasileiro a respeito da progressividade do ITCMD, demonstrando-se o olhar da jurisprudência, da doutrina e dos diversos autores, passa-se agora à exposição do entendimento contemporâneo, cujo surgimento se deu após decisão memorável do Supremo Tribunal Federal no início do ano de 2013.
O posicionamento do Supremo Tribunal Federal, conforme já demonstrado, se encontrava sedimentado no sentido de não aceitar a progressividade das alíquotas nos impostos reais.
Contudo, após a edição da Emenda Constitucional n°.29/2000, tal linha de interpretação começou a perder força e não encontrar mais guarida em nosso ordenamento jurídico. Tal fato se deu em virtude da autorização dada aos municípios pela referida emenda, para que estes tenham a possibilidade de adotar a progressividade das alíquotas em função do valor do imóvel na cobrança do Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU), utilizando-se assim, tanto do caráter fiscal, quanto extrafiscal do imposto. Mesmo a autorização tendo sido dada apenas aos IPTU, nota-se a abertura de precedente para a progressividade em impostos reais e a possibilidade de questionamento a respeito da matéria. (ALEXANDRINO & PAULO, 2003, p. 195)
Em junho de 2013, o Estado do Rio Grande do Sul interpôs junto ao Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário n°. 562.045, que versava sobre a inconstitucionalidade de um dispositivo da lei gaúcha que previa o ITCMD progressivo. (SABBAG, 2015, p. 1190)
Com o julgamento do supracitado Recurso Extraordinário, a Suprema Corte realizou revolucionária alteração no posicionamento tradicional que o mesmo manteve durante anos, entendendo ser constitucional a graduação de alíquotas do ITCMD segundo a capacidade econômica do contribuinte. (ALEXANDRE, 2013, pp. 97-98).
No momento da votação houve uma pequena divergência entre os ministros: a bancada vencida entendeu haver a possibilidade de progressão em impostos reais apenas quando a previsão fosse estipulada pela Constituição Federal, conforme seu artigo 145, §1°. A maioria vencedora fundamentou sua decisão no sentido de que a Carta Magna não distingue impostos reais de pessoais, mencionando em seu artigo 145, §1° somente a expressão “caráter pessoal”, que segundo estes, faz parte de todos os impostos, tendo vínculo com o princípio da capacidade econômica do contribuinte. (SABBAG, 2015, p. 1190)
Segundo Sabbag (2015, p.1195), os votos vencedores defenderam a posição de que pelo fato do ITCMD ter como hipótese de incidência a transferência de bens e direitos a título gracioso, há a presunção de acréscimo econômico, o que fundamenta a aplicabilidade da graduação de suas alíquotas conforme a capacidade contributiva. Nesse sentido, o ITCMD fica cada vez mais análogo ao ITR (Imposto Territorial Rural) e distinto do ITBI (Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis e direitos a eles relativos).
O Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, órgão julgador do Recurso Extraordinário n°. 562.045/RS, proveu o citado recurso, dando repercussão geral ao mesmo, declarando ser a progressividade do ITCMD compatível com o texto constitucional, aplicando tal entendimento a outros nove Recursos Extraordinários, quais sejam, REs 544298, 544438, 551401, 552553. 552707, 552862, 553921, 555495 e 570849 ambos advindos do Rio Grande do Sul.
Para melhor entendimento do posicionamento e da dimensão do julgado, seguem algumas das ementas dos recursos supracitados e, posteriormente, a ementa de um Agravo interposto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul seguindo a linha de pensamento do STF:
Recurso Extraordinário. Constitucional. Tributário. Lei Estadual: Progressividade de Alíquota de Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Bens e Direitos. Constitucionalidade. Art. 145, § 1º, da Constituição da República. Princípio da Igualdade Material Tributária. Observância da capacidade contributiva. Recurso Extraordinário Provido. (Brasil. STF. RE: 562045/2013-RS)
Recurso Extraordinário. Constitucional. Tributário. Lei Estadual: Progressividade de Alíquota de Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Bens e Direitos. Constitucionalidade. Art. 145, § 1º, da Constituição da República. Princípio da Igualdade Material Tributária. Observância da Capacidade Contributiva. Recurso Extraordinário Provido. (Brasil. STF. RE: 544.298/2013-RS)
Agravo. Inventário. Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doações. ITCD. Progressividade das Alíquotas. Repercussão Geral Reconhecida pelo STF. Julgamento do RE Nº 562.045. Processamento do Agravo de Instrumento. 1) Noticiado, no sítio do Supremo Tribunal Federal, o julgamento do RE nº 562.045/RS, em 06.02.2013, no qual fora reconhecida a existência de Repercussão Geral sobre a matéria. 2) Concluiu o Plenário do Pretório Excelso, por maioria, que a progressividade das alíquotas do ITCD, prevista na Lei nº 8.821/89, não é incompatível com a Constituição Federal, nem com o princípio da capacidade contributiva. 3) Em sede de retratação, resguardada a posição do Relator, comporta parcial provimento o Agravo, para permitir o regular prosseguimento do Agravo de Instrumento interposto pelo Estado do Rio Grande do Sul contra a decisão interlocutória que ordenou a aplicação da menor alíquota prevista na Lei nº 8.821/89. Agravo parcialmente provido, em monocrática. (Agravo Nº 70052347481, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl, Julgado em 20/02/2013). (Brasil. TJ-RS. 8ª Câmara Cível. Agravo Nº 70052347481/2013-RS)
De acordo com Alexandre (2013, p. 98), a Suprema Corte ainda cogitou a possibilidade de serem revistas as Súmulas 656 e 668, com o intuito de se ampliar a aplicabilidade de alíquotas progressivas a outros impostos reais com fulcro na capacidade econômica do sujeito passivo (contribuinte).
Com essa decisão, o Supremo Tribunal Federal firmou seu entendimento no sentido de que todos os impostos são vinculados à capacidade econômica do contribuinte e que a progressividade, pode ou não, ter fundamento na Constituição Federal, como foi o caso agora reconhecido. (SABBAG, 2015, pp. 1190-1191)
Neste sentido, vislumbra-se ao longo da pesquisa realizada, a existência de um fenômeno do Direito Constitucional que versa sobre as alterações informais realizadas no texto das constituições. A referida alteração se justifica em razão da evolução da sociedade e é denominada mutação constitucional.
Segundo Dantas (2015, p. 103), a mutação constitucional diz respeito a uma forma de alteração no modo de se interpretar o texto constitucional, não ocorrendo uma modificação efetiva. Esse fenômeno tem o intuito de adequar informalmente o texto constitucional às constantes evoluções sociais, políticas e econômicas enfrentadas ao longo da história, sem a necessidade de alteração efetiva (formal) da Constituição.
4 Conclusão
Ante o exposto, conclui-se ser constitucional a adoção pelos estados federados de alíquotas progressivas na cobrança do Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação de quaisquer bens ou Direitos (ITCMD). Esta conclusão fundamenta-se em decisão emblemática do Supremo Tribunal Federal, que trouxe nova interpretação ao texto constitucional, especificamente ao artigo 145, §1°, entendendo ser aplicável o princípio da capacidade contributiva aos impostos de uma maneira mais ampla e dando repercussão geral ao tema.
Mesmo o Senado Federal prevendo a possibilidade de instituição das alíquotas progressivas do ITCMD e agindo além da competência que lhe fora atribuída pela Constituição Federal, tal exorbitância em nada mais influi no cenário jurídico brasileiro uma vez que se tornou compatível com o posicionamento contemporâneo da Suprema Corte.
Cabe ressaltar que o fenômeno discutido no artigo é um claro exemplo do instituto da mutação constitucional por ter sido uma forma de alteração informal da interpretação conforme a Constituição Federal, motivada pela evolução social.
5 REFERÊNCIAS
ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário esquematizado. 7. ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013.
ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Tributário na Constituição e no STF: teoria, jurisprudência e 400 questões. – 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2003.
AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro/ Luciano Amaro. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6023: referências: elaboração. Rio de Janeiro, ago. 2002.
_____. NBR 10520: informação e documentação: apresentação de citações em documentos. Rio de Janeiro, ago. 2002.
BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei n. 5.172. Brasília, 25 de outubro de 1966. Lex: Vade Mecum Tributário, Alexandre Mazza; coordenadores André Luiz Paes de Almeida, Alexandre Mazza. - 11. ed. – São Paulo: Rideel, 2014.
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_____. Congresso. Senado. Resolução n. 9, de 1992. Disponível em: <http://www.legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=136383>. Acesso em: 9 mar. 2015 às 10h35m.
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