Os reflexos das decisões do juízo cível federal nos processos de deserção em trâmite na Justiça Militar da União

14/10/2015 às 11:04
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O presente artigo tem como tema a problemática causada pelos reflexos das decisões do juízo cível federal nos processos de deserção em trâmite na Justiça Militar da União.

RESUMO: O presente artigo tem como tema a problemática causada pelos reflexos das decisões do juízo cível federal nos processos de deserção em trâmite na Justiça Militar da União. Seu estudo justifica-se uma vez que existem vários pronunciamentos judiciais concedidos em sede de Mandados de Segurança com trâmite na Justiça Federal em que é determinado o licenciamento por parte da Administração Militar daqueles que já concluíram o período de doze meses de serviço militar obrigatório, o que acaba trazendo conseqüências nos processos criminais por deserção com trâmite na JMU, em que o status de militar é condição de procedibilidade para a ação penal. Para tanto, buscou-se delimitar as competências da Justiça Federal e Militar em relação às causas de interesse das Forças Armadas, em que as ações de caráter administrativo-disciplinares são de competência da primeira e as causas criminais são de competência desta última. Buscou-se, também, analisar de maneira aprofundada as peculiaridades do delito de deserção e de seu respectivo processo especial e, ainda, a condição de procedibilidade prevista pela jurisprudência para instauração da referida ação penal militar. Feitas estas considerações, passou-se a analise no núcleo do presente trabalho, em que se estuda a maneira com que o Poder Judiciário vem decidindo as questões, bem como a direção que a jurisprudência está tomando para padronizar a solução dos casos. Ao final, conclui-se que a embora a jurisprudência do Superior Tribunal Militar venha mantendo o consagrado entendimento de que a perda da condição de militar nos processos instaurados para apurar crime de deserção acabe por fulminá-lo por perda de uma das condições específicas da ação, filiamos o entendimento que esta premissa é equivocada e acaba por levar a cabo de forma prematura as mencionadas ações penais, o que destoa do ideal de justiça e de pacificação social.

PALAVRAS-CHAVE: Competência – Licenciamento - Deserção – Condição de procedibilidade

ABSTRACT: The present article has as theme the problem caused by the reflexes of the federal civil court decisions about the desertion processes in discussion at the Union Military Justice. Its study is justified once there are several judicial pronouncements provided in the scope of Security Mandate and common shares processing in the Federal Justice where the licensing is determined by the Military Administration from those who have already accomplished the period of twelve months of compulsory military service, which brings consequences to the criminal prosecution for desertion with transaction at the UMJ, where the military status is the condition of procedure for the criminal action. Therefore, it was sought to delimit the competences of the Federal and Military Justice in relation to the interest causes of the Armed Forces, where the actions of administrative-disciplinary character are competences of the first and the criminal cases are competences of the latter. It was also sought to analyze in a detailed way the singularities of the desertion felony and their respective special process and, yet, the procedure condition estimated by the jurisprudence for the establishment of the military penal action referred. Having these considerations been made, the center of the present paper was analyzed, where the manner that the Judiciary is deciding the issues is studied, as well as the direction that the jurisprudence is taking to standardize the solution of the cases. At the end, it was concluded that, although the jurisprudence of the Military Superior Tribunal has been keeping the established understanding that the loss of the military condition on the introduced processes to ascertain desertion felony end up destroying it by the loss of one of the specific conditions for the action, we understand that this premise is mistaken and it ends up finishing the mentioned criminal actions in a premature way, which disagrees with the ideal of justice and social pacification.

KEYWORDS: Competence – Licensing – Desertion – Procedure condition

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A distribuição das competências entre a Justiça Federal e a Justiça Militar da União em relação às causas de interesse das Forças Armadas; 3 O crime de deserção e as peculiaridades do seu processo especial; 4 O status de militar como condição de procedibilidade nos processos de deserção; Os reflexos das decisões do juízo cível federal nos processo de deserção em trâmite na JMU; 6 Conclusão.

1 INTRODUÇÃO

O termo “jurisdição”, (do latim juris, "direito", e dicere, "dizer"), é o poder do Estado de aplicar o Direito ao caso concreto, ou, em outras palavras, de “dizer o direito” a ele aplicável. Dentro da tradicional divisão dos três poderes ou funções de Estado de Monstesquieau, a jurisdição está entre as atribuições típicas do Poder Judiciário. Embora se diga que a jurisdição seja una, no Brasil há a divisão das competências entre as chamadas justiças especializadas, sendo que tal divisão encontra-se no texto da Constituição Federal, tal a sua importância dentro da estrutura do Estado brasileiro. Nesta divisão, encontramos a Justiça Eleitoral, a Justiça do Trabalho, a Justiça Militar da União, e Justiça Federal e, com competência residual em relação as já citadas, a Justiça Comum dos estados membros da Federação. Vale lembrar que a Constituição Federal ainda prevê a possibilidade de criação das Justiças Militares Estaduais dentro da estrutura das unidades federadas.

Embora a competência destas justiças especializadas esteja bem delimitada no texto constitucional e que se reconheça a independência entre elas, eventualmente encontramos casos em que a decisão de uma acaba por trazer repercussão direta em processos com trâmites em outra(s). Com isso, os operadores do Direito, em especial os órgãos julgadores, devem estar atentos às conseqüências destas decisões que podem irradiar efeitos para fora do processo em que originalmente foram proferidas.

Dentro dessa linha de raciocínio é que abordaremos a problemática trazida pelas decisões proferidas pela Justiça Federal, em sede de ações cíveis em que é determinado o licenciamento do militar que já concluiu o serviço militar obrigatório; decisões estas que acabam por trazer reflexos nos processos criminais por deserção com trâmite na Justiça Militar da União, em que o status de militar é considerado como uma das condições especiais da ação.

Cumpre destacar, neste ponto, que não se tem a pretensão de tecer qualquer tipo de crítica ao mérito das decisões tomadas nas referidas ações cíveis. Também não há que se falar em intenção de condicionar os juízes federais que apreciam as referidas questões de autores que respondem a processos por deserção na Justiça Militar, uma vez que, como se sabe, a natureza das tutelas jurisdicionais requeridas nos dois juízos é completamente distinta e independente.

Dessa forma, pelo presente estudo busca-se avaliar esta irradiação de efeitos das decisões tomadas no juízo cível para dentro do processo criminal com trâmite da JMU, analisando a tendência atual da jurisprudência para resolver a questão, bem como será apresentado o nosso posicionamento sobre o tema.

2 A DISTRIBUIÇÃO DAS COMPETÊNCIAS ENTRE A JUSTIÇA FEDERAL E A JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO EM RELAÇÃO ÀS CAUSAS DE INTERESSE DAS FORÇAS ARMADAS

Conforme dito acima, a Constituição Federal delimita em seu texto a competência das chamadas “justiças especializadas”, onde se situam a Justiça Federal e a Justiça Militar da União. Em relação à primeira, a nossa Magna Carta prevê, nos onze incisos do artigo 109, a sua competência. Vejamos:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;

II - as causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e Município ou pessoa domiciliada ou residente no País;

III - as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional;

IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;

V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;

V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

VI - os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira;

VII - os habeas corpus, em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição;

VIII - os mandados de segurança e os habeas data contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais;

IX - os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar;

X - os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro, a execução de carta rogatória, após o "exequatur", e de sentença estrangeira, após a homologação, as causas referentes à nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à naturalização;

XI - a disputa sobre direitos indígenas.

Entre as hipóteses acima, destacamos as que estão previstas nos incisos I e VIII, que dão base à competência da Justiça Federal para apreciar as questões cíveis envolvendo militares, bem como os incisos IV e IX, que excluem de sua competência criminal os delitos afetos à Justiça Militar.  Já a competência da Justiça Militar da União está prevista na Constituição Federal em seu artigo 124, conforme vemos a seguir:

Art. 124. à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

Como é cediço, alguns anos após a promulgação do texto da Constituição Cidadã de 1988, a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, trouxe inúmeras mudanças no panorama do Poder Judiciário. Entre as inovações da denominada “Reforma do Judiciário” podemos destacar: a inserção no rol dos direitos e garantias individuais do princípio da celeridade dos processos judiciais e administrativos; a previsão de que tratados referentes a direitos humanos passam a ser incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro como norma constitucional, desde que aprovados pelas duas Casas do Congresso em dois turnos por três quintos dos votos dos parlamentares; a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), órgãos a quem competem exercer fiscalização administrativa e financeira do Poder Judiciário e do Ministério Público, respectivamente; a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal, de ofício ou mediante provocação, aprovar súmulas vinculantes; a modificação da competência para homologar sentenças estrangeiras que, agora, passa a ser do STJ e não mais do STF; entre outras. 

Com efeito, quase todos os ramos do Poder Judiciário sofreram algum tipo de modificação com a referida emenda. Entre as chamadas Justiças Especializadas, a Justiça Militar da União e a Justiça Eleitoral não foram contempladas com qualquer alteração, permanecendo inalteradas as suas respectivas competências, bem como a composição de seus órgãos. 

Como se pode notar, a partir do advento da “Reforma do Judiciário” implementada pelo constituinte reformador no ano de 2004, a Justiça Militar da União permaneceu apenas com competência criminal, diferentemente da Justiça Militar Estadual que passou a julgar ações cíveis e criminais. No âmbito da esfera federal, as ações cíveis que envolvem militares das Forças Armadas são julgadas pela Justiça Federal, com base no art. 109, inc. I e VIII, da Constituição Federal. Entre estas ações de competência da Justiça Federal, podemos citar as ações que visam discutir a legalidade da imposição de punições disciplinares, de reintegração, revisionais previdenciárias, entre outras. Neste universo, localizamos algumas ações que visam o licenciamento daqueles militares que concluíram o período de serviço militar obrigatório e continuam a integrar as forças militares.  

3 O CRIME DE DESERÇÃO E AS PECULIARIDADES DO SEU PROCESSO ESPECIAL

O Código Penal Militar tipifica no art. 187 a conduta daquele que se ausenta, sem licença, da unidade em que serve, ou do lugar em que deve permanecer, por mais de oito dias, cominando uma pena de detenção, de seis meses a dois anos; sendo que se o agente for oficial, a pena é agravada. 

Quanto a sua classificação doutrinária, trata-se de crime militar, em consequência do disposto no artigo 9°, inciso I, 2ª parte, do Código Penal Militar. É, também, uma conduta típica e propriamente militar, por se tratar de infração específica e funcional atribuída unicamente àquele que possui o status de militar da ativa. O seu elemento subjetivo é o dolo, que consiste na vontade livre e consciente de ausentar-se da Unidade em que serve ou lugar em que deveria permanecer, por prazo superior ao previsto em lei. É também classificado como delito de mera conduta, bastando para sua consumação, a ausência do militar, sem licença, da Unidade em que serve, por mais de oito dias. Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal Militar, a deserção é crime instantâneo de efeito permanente, permanecendo o trânsfuga em estado de flagrância enquanto não for capturado ou se apresentar voluntariamente, o que permite a sua prisão independentemente de ordem de prisão. 

Segundo Cícero Robson Coimbra Neves e Marcello Streifinger [2], o delito de deserção tutela o serviço militar afetado pelo fato de o agente não estar presente na caserna. Protege-se, ainda, o dever militar, o comprometimento, a vinculação do homem aos valores éticos funcionais da caserna e de sua profissão. 

Destarte, é inegável que a deserção é um crime de grande relevância, tendo em vista a função constitucional das Forças Armadas. A deserção afronta diretamente os princípios da hierarquia e da disciplina, uma vez que o militar que consuma tal delito simplesmente dá as costas para o serviço militar e para o cumprimento do seu dever legalmente imposto, o que inevitavelmente acaba por trazer graves repercussões no seio da Unidade Militar à qual está vinculado. 

Conforme bem salientado por Marcelo Ferreira de Souza [3], há um indicativo de que o crime de deserção tem íntima relação com o serviço militar obrigatório: é que o art. 132 do CPM prevê que a prescrição para o referido delito só extingue a punibilidade quando a praça que o pratica atinge a idade de 45 (quarenta e cinco) anos, isso porque a Lei do Serviço Militar (Lei nº 4.375/64) prevê a mesma idade como termo final da obrigação do cidadão para com o serviço militar. 

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No que tange à matéria processual, a lei adjetiva castrense prevê um procedimento especial de investigação e de processamento da deserção. Segundo o art. 452 do CPPM, O termo de deserção tem o caráter de instrução provisória e destina-se a fornecer os elementos necessários à propositura da ação penal, sujeitando, desde logo, o desertor à prisão. Esta prisão, segundo previsto no art. 453 do CPPM, durará o prazo máximo de 60 dias, findo o qual será posto em liberdade o desertor.  Cumpre destacar, ainda, que o CPPM impõe que, para que se instaure a ação penal, o militar sem estabilidade que anteriormente foi excluído do efetivo da respectiva Força, deve ser reincluído uma vez que seja considerado apto para o serviço militar após ser submetido à inspeção de saúde. Já para os casos de praças com estabilidade e oficiais, deverá ser procedida a sua reversão (art. 457, § 3º, do CPPM). 

Nas hipóteses em que o militar é considerado inapto na mencionada inspeção de saúde realizada logo após a sua captura ou apresentação voluntária, a lei adjetiva castrense prevê que o desertor sem estabilidade ficará isento da reinclusão e do processo, sendo os autos arquivados após o pronunciamento do representante do Ministério Público Militar (art. 457, § 3º, do CPPM). Assim, uma vez que o desertor não apresente condições médicas para ser reincluído, deverá o mesmo ser imediatamente posto em liberdade, bem como não haverá alternativa ao membro do Ministério Público Militar que não seja requer o arquivamento do feito. 

Por fim, vale destacar que, pela pouca complexidade verificada para a produção de prova nos processos por deserção, o CPPM prevê uma instrução processual sumária. Com efeito, após o recebimento da denúncia, determinará o Juiz-Auditor a citação do acusado, realizando-se em dia e hora previamente designados, perante o Conselho Permanente de Justiça, o interrogatório do acusado, ouvindo-se, na ocasião, as testemunhas arroladas pelo Ministério Público. Na seqüência, A defesa poderá oferecer prova documental e requerer a inquirição de testemunhas, até o número de três, que serão arroladas dentro do prazo de três dias e ouvidas dentro de cinco dias, prorrogáveis até o dobro pelo conselho, ouvido o Ministério Público. Concluída a instrução, o réu é julgado pelo Conselho de Justiça.

4 O STATUS DE MILITAR COMO CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE NOS PROCESSOS DE DESERÇÃO

        Segundo as lições de Eugênio Pacelli de Oliveira [4], as denominadas condições da ação, no processo penal brasileiro, condicionam o conhecimento e o julgamento da pretensão veiculada pela demanda ao preenchimento prévio de determinadas exigências, ligadas ora à identidade das partes, com referência ao objeto da relação de direito material a ser debatida, ora à comprovação da efetiva necessidade da atuação jurisdicional. A doutrina costuma classificar estas condições em condições gerais ou genéricas e condições específicas da ação. Entre as primeiras, que são as mesmas previstas no processo civil, podemos enumerar o interesse de agir, a legitimidade das partes e a possibilidade jurídica do pedido. Alguns doutrinadores ainda mencionam a justa causa como uma destas condições gerais. 

Além destas, em certos casos o processo penal exige o preenchimento de determinadas condições específicas. Estas condições são chamadas de condições de procedibilidade, sendo que podemos citar, no processo penal comum, a representação do ofendido ou a requisição do Ministro da Justiça nos crimes que exigem esta manifestação prévia para que o titular da ação penal tome a iniciativa de pedir a instauração do processo. 

No que tange ao crime de deserção, a jurisprudência e a doutrina majoritárias entendem que o status de militar seria condição de procedibilidade. Em outras palavras, para que se possa iniciar o processo nos casos de deserção, além das condições genéricas da ação, é preciso que haja a reinclusão do militar que foi excluído e a reversão do militar que foi agregado. Conforme as lições de Célio Lobão[5], se o sujeito ativo do delito perde essa qualidade, arquiva-se a investigação provisória de deserção (IPD). Entretanto, se for proposta a ação penal a mesma deverá ser extinta por decisão do Conselho de Justiça ou por meio de Habeas Corpus, isentando o acusado do processo condenatório ou do processo de execução de sentença. Tal entendimento encontra-se sumulado pelo Superior Tribunal Militar:

Súmula 12: A praça sem estabilidade não pode ser denunciada por deserção sem ter readquirido o status de militar, condição de procedibilidade para a persecutio criminis, através da reinclusão. Para a praça estável, a condição de procedibilidade é a reversão ao serviço ativo.

Cumpre destacar que o status de militar do desertor é tido não somente como condição de procedibilidade, como também de prosseguibilidade. Sendo assim, uma vez que se o sujeito passivo da ação deixe de integrar os quadros de sua respectiva Força, o processo não deve seguir por falta de condição sine qua non para o seu regular desenvolvimento. 

Tal entendimento foi consolidado através da exegese do art. 457, §§ 1º e 2º, do CPPM, que prevê que o desertor sem estabilidade que se apresentar ou for capturado deverá ser submetido à inspeção de saúde e, quando julgado apto para o serviço militar, será reincluído, sendo que, em caso de incapacidade definitiva, o desertor sem estabilidade fica isento da reinclusão e do processo, sendo os autos arquivados, após o pronunciamento do representante do Ministério Público Militar. Conforme o mencionado regramento, entende-se que uma vez que o desertor perca o status de militar, perde-se a condição específica da ação, o que impede um pronunciamento judicial acerca do mérito da questão, devendo o processo ser extinto. Aliás, a ementa a seguir, de um julgado da lavra do Superior Tribunal Militar, refere expressamente esse entendimento:

HABEAS CORPUS. DESERÇÃO. AÇÃO PENAL REGULARMENTE INSTAURADA. PERDA SUPERVENIENTE DA CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE. DECISÃO DO CONSELHO PELO PROSSEGUIMENTO DO FEITO. IMPUGNAÇÃO DO ATO PELA DPU. 
A ação penal decorrente da prática do delito de deserção, conforme entendimento consolidado desta Corte por meio da Súmula nº 12, exige a condição de militar do agente para figurar no polo passivo da relação processual penal, conforme se verifica do artigo 457 e seus §§ 1º, 2º e 3º, do CPPM. Embora esses dispositivos se refiram à aptidão de saúde do desertor para sua reinclusão e a consequente instauração do processo, o legislador expressou o entendimento no § 2º do referido dispositivo de que a inaptidão por incapacidade definitiva o isenta do processo, determinando, por consequência lógica, o seu arquivamento. Por essa razão, não há de falar em violação do artigo 129, inciso I, da CF, conforme precedente da Excelsa Corte. 
Configurada a ausência de interesse da lei em manter sub judice o agente inapto para o serviço militar obrigatório. Uma vez licenciado das fileiras da Força, por meio da discricionariedade da autoridade administrativa militar, o acusado não mais se sujeita à ação penal militar de rito especial, ainda que seu desligamento seja superveniente à instauração do processo. 
Ratificada a liminar que suspendeu o curso da ação penal e, no mérito, concedida a ordem para trancá-la por manifesta perda de objeto. Decisão por maioria. (Habeas Corpus 0000217-65.2014.7.00.0000/DF Decisão: 19/02/2015 Data da Publicação: 04/03/2015 Veículo: DJE Ministro Relator William de Oliveira Barros) (Grifos nossos).

No entanto, há que se considerar que o CPPM fala tão somente nos casos em que existe um parecer médico concluindo pela inaptidão do desertor para o serviço militar, sem que sejam mencionadas outras causas de perda da condição de militar, como nos casos de exclusão a bem da disciplina, licenciamento por término do serviço militar obrigatório, etc. Sendo assim, constata-se que a doutrina e a jurisprudência acabam por fazer uma interpretação extensiva do que está previsto no art. 457, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Penal Militar. 

O entendimento acima encontra guarida, inclusive, nos julgados do Supremo Tribunal Federal, como podemos ver na ementa abaixo:

PENAL. PROCESSO PENAL MILITAR. DESERÇÃO (ART. 187 DO CÓDIGO PENAL MILITAR). LICENCIAMENTO A BEM DA DISCIPLINA. IMPOSSIBILIDADE DE EXECUÇÃO DA PENA. AUSÊNCIA DE CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDADE OFÍCIO. I - Paciente condenado pela prática do crime de deserção, que foi licenciado a bem da disciplina, não mais ostentando a qualidade de militar. Ausente, pois, condição de procedibilidade para o prosseguimento da ação e, por conseguinte, para a execução da pena imposta pelo crime de deserção. Precedentes. II – Ordem concedida de ofício. (HC 108197/PR Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI Julgamento: 13/12/2011 Órgão Julgador:  Segunda Turma) (Grifo nosso).

Como se pode ver, no julgado acima, entendeu o Pretório Excelso que a perda da condição de militar após a condenação era suficiente para obstar a execução da pena. Cumpre destacar que este posicionamento acerca do licenciamento acabar sendo óbice à execução da pena pelos condenados pelo crime de deserção também é adotado de maneira pacífica pelo Superior Tribunal Militar. 

Com efeito, esta construção da jurisprudência consagrada na súmula 12 do STM acaba por prever uma situação que inibe o jus puniendi estatal, impedindo que o órgão julgador pronuncie-se sobre o mérito da ação, redundando em uma causa extralegal de extinção da punibilidade. Com isso, se eventualmente um militar consumar a deserção, e, após a instauração da competente ação penal militar, durante o curso do processo, completar o período de doze meses de serviço militar obrigatório, seria razoável que fosse providenciado pela Administração Militar o seu licenciamento. No entanto, se o réu for licenciado, perderá a condição de prosseguibilidade da ação penal, não restando alternativa ao Conselho de Justiça que não seja extinguir o processo sem resolução do mérito, com o conseqüente decreto de extinção da punibilidade. Com isso, os réu que respondem por deserção acabam por ter o período de prestação de serviço militar prorrogado até os ulteriores termos do processo e, se for o caso, da execução da pena em caso de condenação. 

A nosso ver, esse modo de proceder é equivocado e destoa dos fins almejados pelo legislador, uma vez que um fato típico, ilícito e culpável, estaria imune a um julgamento de mérito por uma interpretação extensiva da lei adjetiva castrense, ficando, assim, criada uma modalidade anômala de extinção da punibilidade. Também não se pode ignorar o fato de que a prorrogação do período de prestação de serviço militar pelo réu para garantir a aplicação da lei penal militar destoa do que prevê a Lei nº 4.375/64 – Lei do Serviço Militar, que só permite a permite nos casos em que assim requeira o incorporado e seja conveniente para as Forças Armadas.

5 OS REFLEXOS DAS DECISÕES DO JUÍZO CÍVEL FEDERAL NOS PROCESSOS DE DESERÇÃO EM TRÂMITE NA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO

 Feitas as devidas considerações acerca do entendimento consolidado da jurisprudência e da doutrina sobre a necessidade do preenchimento da condição específica para a instauração da ação penal nos casos de deserção, passamos a nos debruçar sobre o núcleo do presente trabalho. Destarte, considerando que as ações administrativo-disciplinares envolvendo militares das Forças Armadas são da competência da Justiça Federal, é natural que, em alguns casos, a referida justiça especializada tenha que se pronunciar sobre questões envolvendo o licenciamento ou o desligamento de militares dos quadros de sua respectiva Força. 

Recentemente, tem se verificado um crescente número de ações ordinárias e mandados de segurança em que é discutida a legalidade da permanência no efetivo militar daqueles que já concluíram o período de doze meses de serviço militar obrigatório. Normalmente, a pretensão é ajuizada em favor de militares que figuram como réus em processo por deserção com trâmite na Justiça Militar da União. Entre as pretensões apresentadas normalmente é requerida a concessão de antecipação de tutela ou medida liminar para que a Administração Militar reconheça a quitação com o serviço militar, devendo efetivar o imediato licenciamento do autor, inclusive com a entrega do Certificado de Reservista. Na maioria dos casos, o juízo federal concede parcialmente a antecipação dos efeitos da tutela ou a medida liminar, conforme o caso, para determinar que a Administração Militar licencie o militar, bem como para determinar que a União se abstenha de adotar qualquer medida em sentido contrário, inclusive promover sua forçada reinclusão ao serviço castrense. 

O fundamento dessas decisões encontra guarida no art. 6º da Lei nº 4.375/64 – Lei do Serviço Militar, que estabelece expressamente que o serviço militar obrigatório terá a duração normal de doze meses, período que pode ser prorrogado uma ou mais vezes, desde que assim requeira o incorporado e seja conveniente para as Forças Armadas, nos termos do art. 33 do mesmo diploma legal. Como nos casos em discussão não há requerimento do incorporado nem conveniência para as Forças Armadas, havendo apenas óbice de natureza processual em razão da instauração de ação penal militar para apurar o crime de deserção, óbice este sem previsão legal, o juízo cível acaba por determinar o licenciamento. Cumpre destacar que o referido entendimento encontra consonância com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp 328.927/SC). 

Conforme já mencionado na presente pesquisa, considerando que o status de militar é tratado como condição de procedibilidade da ação penal militar para os casos de processo por deserção, com as referidas decisões do juízo cível federal, origina-se uma situação crucial para o órgão julgador castrense. 

É cediço que toda situação jurídica nova levada à apreciação do Poder Judiciário costuma inaugurar um período de debates sobre a melhor forma de resolver a questão, até que surja uma corrente majoritária. Aliás, é com este processo de formação contínua de tese e de antítese, com a posterior síntese do tema, que o Direito, de maneira geral, costuma evoluir através da dialética entre os seus operadores.  Não foi diferente no que tange à formação de uma jurisprudência sobre o tema pelo Superior Tribunal Militar: a questão gerou algum debate, sendo que hoje já há um posicionamento majoritário sobre o tema. 

Para bem ilustrar o tratamento dado à questão, colacionamos o seguinte julgado do STM:

HABEAS CORPUS. PACIENTE LICENCIADO POR FORÇA DE DECISÃO LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA CONCEDIDO PELA JUSTIÇA FEDERAL. PROCESSO DE DESERÇÃO EM CURSO NA PRIMEIRA INSTÂNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. SOBRESTAMENTO DA AÇÃO PENAL. 
O Impetrante postula em sede liminar o trancamento da Ação Penal em curso. No mérito pede a confirmação da liminar e o arquivamento do feito. 
Com o cumprimento da medida liminar concedida ao Paciente pela Justiça Federal, ele foi imediatamente licenciado da Força, com a consequente perda da condição de prosseguibilidade da ação penal militar. 
Portanto, prudente aguardar o trânsito em julgado da Decisão do Mandado de Segurança, pois, em que pese os efeitos emanados da Decisão liminar serem imediatos, possuem caráter precário. 
Ordem de habeas corpus concedida tão somente para sobrestar a ação penal a que o Paciente responde pelo crime de deserção. Maioria. (HC nº 0000169-43.2013.7.00.0000/RS, Decisão: 22/10/2013 Data da Publicação: 07/11/2013 Ministro Relator Marcus Vinicius Oliveira dos Santos)

Como podemos ver, trata-se de um Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de um desertor que havia sido beneficiado por uma decisão liminar da Justiça Federal em sede de Mandado de Segurança, determinando o seu imediato licenciamento. No caso em tela, o paciente já havia cumprido doze meses de serviço militar obrigatório e, por essa razão, foi licenciado das fileiras do Exército, perdendo, ainda que de maneira precária, o status de militar. Diz-se que de maneira precária porque a decisão liminar precisaria ser confirmada por sentença definitiva. No entanto, como já mencionamos, ainda que a decisão que determinou o licenciamento não seja definitiva, é suficiente para esvaziar o preenchimento da condição específica da ação penal por deserção: a situação de militar do acusado. 

Na decisão acima, o Superior Tribunal Militar, de forma majoritária, entendeu que, ad cautelam, o mais sensato seria aguardar o trânsito em julgado da decisão do Mandado de Segurança, considerando a natureza precária do provimento jurisdicional em sede de pedido liminar. Com isso, a ação penal militar foi sobrestada até a decisão final em sede de Mandado de Segurança. 

Embora este entendimento pelo sobrestamento dos feitos em trâmite na JMU venha sendo adotado na Egrégia Corte Castrense, ganham destaque dois posicionamentos divergentes. Um deles, defendido pelo eminente Ministro José Coêlho Ferreira, considera que, embora a decisão liminar tenha caráter precário, o decisum oriundo da Justiça Federal já exauriu todo o conteúdo mandamental da inevitável sentença concessiva de segurança, uma vez que estas decisões proferidas em sede de cognição sumária normalmente estão sedimentadas pela jurisprudência dos tribunais. Com isso, em sua visão, seria o caso de trancamento definitivo da ação penal, e não de mero sobrestamento. 

No mesmo julgamento do Habeas Corpus acima referido, Já o eminente Ministro Artur Vidigal de Oliveira possui um posicionamento bastante diverso dos dois já mencionados. Segundo esta terceira corrente, em casos como o ora analisados, ainda que o Paciente tenha sido licenciado do serviço ativo do Exército, tal fato não teria o poder de interferir no andamento da Ação Penal Militar a qual responde pela prática do crime de deserção, entendendo que o feito deveria prosseguir normalmente seu curso e ser realizado o julgamento daquela Ação. Pela clareza de suas palavras, transcrevo alguns trechos de seu voto:

O ordenamento jurídico vigente indica que a ação penal militar, para a apuração do crime de deserção, é pública incondicionada, que a tipificação do crime de deserção no CPM tutela o dever e o serviço militares, e é vedado estabelecer outras condições de procedibilidade e de prosseguibilidade distanciadas da lei, sob pena de submeter a tutela almejada pela Constituição Federal à vontade de uma ou outra autoridade administrativa ou judiciária. É a inteligência do art. 35 do CPPM, que se transcreve:

Art. 35. O processo inicia-se com o recebimento da denúncia pelo juiz, efetiva-se com a citação do acusado e extingue-se no momento em que a sentença definitiva se torna irrecorrível, quer resolva o mérito, quer não. Parágrafo único. O processo suspende-se ou extingue-se nos casos previstos neste Código. (Grifo nosso).

Por esse ângulo, não há que se falar em processo e julgamento de civil, em virtude de licenciamento por conclusão do serviço militar inicial obrigatório, mas em militar que cometeu um delito e que necessita ser processado e julgado pelo ato que praticou, a fim de que haja a preservação do serviço e do dever militares e se evite a impunidade daqueles que afetam esses princípios.

Segundo o Ministro Artur Vidigal, no caso dos crimes de deserção, dentre as condições de procedibilidade ou de admissibilidade do processo, além do interesse de agir, da legitimidade das partes e da possibilidade jurídica do pedido, há a aptidão para o serviço ativo, apreciada em inspeção de saúde, e a reinclusão do acusado às fileiras das Forças Armadas, em decorrência da apresentação voluntária ou da captura do desertor. 

Nessa linha de raciocínio, o ato administrativo de reinclusão e a submissão à inspeção de saúde, tem por único objetivo oportunizar à Administração Militar verificar se aquele que foi considerado desertor, por exemplo, tenha sofrido abalos significativos na higidez física que o tenha tornado incapaz definitivamente para o serviço militar, situação essa que impediria a instauração da ação penal militar e o seu prosseguimento. Com isso, cumpridas essas condições de procedibilidade, o processo penal militar deve ser iniciado e seguir o curso normal até o julgamento final da causa, ainda que no decorrer do processo o acusado seja licenciado do serviço ativo das Forças Armadas. 

Em suma, podemos dizer que, segunda esta terceira corrente, a aferição das condições genéricas e específicas da ação penal devem ser analisadas no momento de sua proposição. Uma vez que a ação penal militar tenha sido iniciada, eventual perda do status de militar já no curso do processo não obstaria o seu deslinde com o conseqüente julgamento de mérito. Em outras palavras, o status de militar seria condição de procedibilidade do processo de deserção, mas não de prosseguibilidade. Com base neste posicionamento, no Habeas Corpus cuja ementa foi transcrita acima (HC nº 0000169-43.2013.7.00.0000/RS), o Ministro Artur Vidigal votou pela denegação da ordem de Habeas Corpus, entendendo que a ação penal militar deveria seguir o seu curso natural. 

Cumpre destacar que o entendimento até então pacificado pela jurisprudência começa a ser revisto. Podemos citar, como exemplo, o julgado abaixo, bastante recente:

HABEAS CORPUS. PACIENTE CONDENADO E POSTERIORMENTE LICENCIADO DAS FILEIRAS DO EXÉRCITO. SÚMULA Nº 12 DO STM. DENEGADA A ORDEM. MAIORIA. 
Paciente sentenciado pelo crime de deserção (art. 187 do CPM) que, diante do seu licenciamento das fileiras da força no curso da execução penal, pretende ver declarada extinta sua punibilidade por faltar-lhe a condição de militar para prosseguir cumprindo sua pena. Súmula STM nº 12. O entendimento majoritário desta Corte Castrense é no sentido de que o status de militar deve ser aferido tão somente no momento da propositura da Ação Penal e do recebimento da Denúncia. Verifica-se, portanto, a presença de todas as condições de prosseguibilidade, in casu, ainda que tenha ocorrido o licenciamento do militar. A perda da qualidade de militar não obsta o prosseguimento da ação penal. Denegada a Ordem por falta de amparo legal. Maioria. (Habeas Corpus nº 0000084-86.2015.7.00.0000/AM Decisão: 28/05/2015 Ministro Relator Marcus Vinicius Oliveira dos Santos)

Como se pode ver, o STM entendeu, de maneira majoritária, que o status de militar seria condição de procedibilidade para a ação penal, e não de prosseguibilidade. Sendo assim, a Corte castrense entendeu que, no caso em tela, embora o paciente, condenado por deserção, tenha perdido a condição de militar na fase de execução penal, não haveria óbice ao cumprimento da pena, uma vez que o status de militar deveria ser aferido por ocasião do recebimento da denúncia. Dessa forma, o STM prestigiou o posicionamento adotado pelo Ministro Artur Vidigal e defendido no presente artigo em nossas considerações finais.

6 CONCLUSÃO

Ao final da pesquisa ora desenvolvida, após analisarmos as questões envolvendo os efeitos endoprocessuais nas ações penais militares por deserção decorrentes de decisões oriundas do juízo cível que determinam o licenciamento dos acusados, podemos extrair algumas conclusões. 

A primeira delas, é que a construção jurisprudencial e doutrinária há muito pacificada no meio jurídico de que o status de militar é condição de procedibilidade para a instauração da ação penal militar por crime de deserção merece uma reflexão. Com efeito, reconhecendo a importância da problemática ora estudada, recentemente o Superior Tribunal Militar acatou o pedido da Advocacia-Geral da União (AGU), para ingresso da União como "amicus curiae" em ações penais que analisam casos de deserção de militares. Os advogados da União objetivam a revisão da Súmula 12 do STM, para evitar que processos dessa natureza sejam extintos após o licenciamento dos desertores. De acordo com a AGU, o entendimento consolidado pelo STM na Súmula é prejudicial à União, pois acaba trazendo um sentimento de impunidade no âmbito das Unidades Militares, abalando, assim, os princípios da hierarquia e da disciplina. 

A nosso ver, salvo melhor juízo, a lei adjetiva castrense, ao fazer a previsão da art. 457, §§ 1º e 2º, não está a criar uma regra geral extensiva a todos os casos de desligamento das Forças Armadas, mas sim, é muito clara ao prever as situações específicas em que o desertor sem estabilidade ficará isento de processo. Assim, entendemos que considerar o status de militar como condição de procedibilidade/prosseguibilidade nos processos de deserção, supedaneando este entendimento no que prevê a referida regra do CPPM, nos parece um pouco forçoso. A rigor, com base neste posicionamento, temos que a doutrina e a jurisprudência acabaram por criar uma causa extralegal de extinção da punibilidade, tolhendo o Estado do regular exercício do jus puniendi

É cediço que muitos doutrinadores defendem que o status de militar é condição específica da ação nos processos de deserção uma vez que se trata de delito propriamente militar e, com isso, não seria aceitável que um civil figurasse no polo passivo da ação. No entanto, entendemos que nesses casos, se o agente era militar ao tempo do recebimento da denúncia, ou seja, quando da instauração do processo, e posteriormente perdeu esta condição, não podemos dizer que se trata de um civil, mas sim de um ex-militar figurando como réu. Com isso, entendemos como mais justa e acertada a posição verificada de maneira minoritária no Superior Tribunal Militar, defendida pelo Ministro Artur Vidigal, que considera o status de militar condição de procedibilidade, mas não de prosseguibilidade da ação penal militar instaurada para apurar o crime de deserção. 

De fato, é inegável que na sociedade contemporânea vivemos uma forte crise de confiança que abala as instituições públicas e o próprio Estado. No que se refere especificamente ao sistema penal brasileiro, sabemos que um dos fatores que mais colabora para a perda de credibilidade é o sentimento de impunidade que invariavelmente fica no ar. Em muitos casos, essa sensação de impunidade é causada pela ineficiência da lei material que prevê penas brandas demais para os delitos; em outros, é a lei processual que acaba dando margem para a falta da devida resposta estatal às condutas típicas, ilícitas e culpáveis. 

Com efeito, no que tange aos militares, sabemos que as relações humanas vividas entre os muros dos quartéis são regidas pelos princípios da hierarquia e disciplina. A rigor, são estes postulados que mantém o equilíbrio e a harmonia de todo o sistema e fazem as Forças Armadas mais fortes. 

Destarte, consideramos a deserção um grave delito que deve ser coibido de maneira eficiente, sob pena de, em alguns anos, vermos a credibilidade das Forças Armadas ruir por completo, como vem acontecendo com outras instituições públicas. Com isso, levando em consideração esse grave contexto, entendemos que considerar que a perda do status de militar é causa de extinção da ação nos casos de deserção, embasando esta decisão em uma causa extralegal de extinção do processo e da punibilidade, é deixar perigosamente impune um fato altamente lesivo ao dever e ao serviço militar.

7 REFERÊNCIAS

Advocacia-Geral da União. Notícias. Disponível em: <http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/270553>. Acesso em: 10 Jun. 2015.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

DE SOUZA, Marcelo Ferreira. O status de militar como condição de Prosseguibilidade do processo por crime de deserção – uma construção equivocada. Revista do Ministério Público Militar – Ano 38, n. 23 (Nov 2013). Brasília: Procuradoria-Geral de Justiça Militar, 2013.

LOBÃO, Célio. Direito Processual Militar. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

NEVES, Cícero Robson Coimbra. Manual de Direito Processual Penal Militar. São Paulo: Saraiva, 2014.

NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREINFINGER, Marcelo. Manual de Direito Penal Militar. São Paulo: Saraiva, 2012.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.


[2] NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREINFINGER, Marcelo. Manual de Direito Penal Militar. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 879.

[3] DE SOUZA, Marcelo Ferreira. O status de militar como condição de Prosseguibilidade do processo por crime de deserção – uma construção equivocada. Revista do Ministério Público Militar – Ano 38, n. 23 (Nov 2013). Brasília: Procuradoria-Geral de Justiça Militar, 2013, p. 294.

[4] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 106.

[5] LOBÃO, Célio. Direito Processual Militar. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 387.

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