A nova legislação, recém conquistada pela sociedade brasileira, junta-se a outros instrumentos legislativos de suma relevância para a sociedade mundial, como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, adotada em 1993, pela Assembleia Geral das Nações Unidas; e a resolução da 57ª Sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher das Nações Unidas.
Quanto à inovação legislativa, na América Latina, existem mais 15 países que tipificam o feminicídio, dentre eles Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Peru, República Dominicana e Venezuela.
No decorrer do presente artigo, será fácil notar que o feminicídio é um problema social que para sua redução são necessários programas de amparo a mulheres vítimas de violências que precedem uma possível morte, tratamento psicológico e até mesmo formas de capacitações para que a mulher consiga independência financeira.
A título de reparação do direito feminino e melhorias ao atendimento às mulheres violentadas, o Brasil foi escolhido pela ONU Mulheres e pelo Alto Comissariado de Direitos Humanos como país piloto no processo de adaptação do Modelo de Protocolo Latinoamericano para Investigação das Mortes Violentas de Mulheres por Razões de Gênero, evento este que tive a honra de participar e que pude compartilhar experiências com colegas Delegados, Juízes, Defensores Públicos, Promotores e Peritos. (manter a escrita na primeira pessoa?)
Durante os debates para a formulação do Modelo de Protocolo Latinoamericano para Investigação das Mortes Violentas de Mulheres por Razões de Gênero, foi possível coletar fatores individuais, estruturais e técnicos para que se possa responder a esse tipo de crime que tantas mulheres são vítimas.
Retomando o assunto propriamente dito, feminicídio, este pode ser classificado em dois tipos:
- Feminicídio não íntimo: não há uma relação de afeto ou de parentesco entre o agressor e a vítima;
- Feminicídio íntimo: há uma relação de afeto ou de parentesco entre o agressor e a vítima;
É valido ressaltar que há doutrina que informe um terceiro tipo de feminicídio, sendo feminicídio - por conexão - que ocorre quando uma mulher, ao intervir na ação criminosa, é morta por um homem que desejava assassinar outra mulher. No entanto, em que pese pensamento diverso, tal fato é melhor analisado quando o assunto são as espécies erros trazido dentro do direito penal ou até mesmo outras qualificadoras e circunstâncias do crime.
O que é feminicídio
Feminicídio, como o próprio legislador informa, é matar uma mulher por razões da condição de sexo feminino, quando o crime envolver violência doméstica e familiar ou motivado pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Art. 121. Matar alguém:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
(...)
§ 2° Se o homicídio é cometido:
(...)
VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.
(...)
§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I - violência doméstica e familiar;
II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
(...)
Ao ler o citado artigo é possível constatar que agiu mal o legislador ao redigir de forma tão obscura e complicada, deixando brechas para interpretações.
O legislador inseriu o inciso VI no §2º do art. 121 e inseriu também o parágrafo 2º - A, em que explica quando haverá razões da condição de sexo feminino.
O art. 121, §2º-A, I, afirma que o crime será de feminicídio quando envolver violência doméstica, no entanto, a interpretação literal não é a melhor escolha, já que assim qualquer homicídio de mulher em ambiente doméstico seria visto como feminicídio.
Ao interpretar o tipo em comento, é preciso ampliar o campo normativo, contextualizando e buscando definições na lei 11340/06 já que seu art. 5º define o que é violência doméstica
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Entretanto, para que se configure o feminicídio, é preciso ficar atento que a violência seja baseada no gênero, razões de condição de sexo feminino, por exemplo, não configurará feminicídio quando, por exemplo, um irmã matar a outra por interesse em seu patrimônio.
Dessa forma, é necessário que a violência tenha fundamento na condição de sexo feminino e que se desenvolva no âmbito doméstico, ou seja, agressor que mata companheira por não aceitar separação ou traição.
No que se refere ao inciso II, §2º, do citado artigo, para que se configure o feminicídio, é necessário que tenha sido por menosprezo, desprezo, etc, ou seja, o agressor matar uma mulher porque estaria competindo por uma vaga de emprego.
No que tange a discriminação à condição de mulher, o Brasil é signatário da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, e em seu art. 1º, encontra-se a definição de discriminação contra a mulher como sendo “toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”.
Sujeitos do crime de feminicídio
Quanto ao sujeito ativo, por se tratar de um crime comum, tanto o homem quanto a mulher pode ser autor.
No que tange ao sujeito passivo, a legislação impõe que seja mulher, condição biológica, por razões da condição do sexo feminino.
Em relação às demais orientações sexuais, segue o entendimento:
- Vitima homossexual: não se aplicará a qualificadora. A lei falou em mulher, assim, por analogia não podemos aplicar a lei penal contra o réu. Não se pode admitir o feminicídio quando a vítima é um homem (ainda que de orientação sexual distinta da sua qualidade masculina).
- Vítima travesti: essas pessoas possuem identidade de gênero diverso do sexo biológico, portanto, não haverá feminicídio se o sexo biológico for masculino.
- Vítima transsexual: aquela que já passou por cirurgia de transgenitalização e já alterou o registro civil, no entanto, sob perfil genético, ela continuará sendo do sexo masculino, o que impossibilita a tipificação do feminicídio.
Os raciocínios expostos acima não impedem que as vítimas tenham os seus direitos constitucionais assegurados, impossibilitando apenas que a situação do réu seja mais gravosa em razão de interpretações prejudiciais, haja vista que o legislador optou por proteger a mulher e não o gênero feminino, pois o projeto de lei inicial previa o homicídio praticado "contra a mulher em razões de gênero".
É importante ressaltar que além da sexualidade da vítima, não importa que ela seja filha, esposa, mãe, sogra ou avó.
Tentado ou consumado
O feminicídio pode ser tentado ou consumado.
Tipo subjetivo
O feminicídio pode ser praticado com dolo direto ou eventual.
Natureza da qualificadora
O feminicídio é uma qualificadora de natureza subjetiva, estando relacionada ao íntimo do agente. Assim, em caso de concurso de pessoas, a qualificadora do feminicídio não se comunicará com os demais agentes, salvo se o outro estiver cometendo o crime com a mesma motivação.
Causas de diminuição de pena - privilegiadoras
Em seu § 1º, o art. 121 do CP traz a causa de diminuição de pena que possui natureza subjetiva. Dessa forma, não será possível que o feminicídio seja qualificado e privilegiado ao mesmo tempo, sendo que a jurisprudência pátria admite apenas nos casos em que a qualificadora possui natureza objetiva.
Causas de aumento de pena
A legislação que alterou o feminicídio trouxe consigo três causas de aumento de pena de suma importância e que rotineiramente ocorrem nos feminicídio, sendo elas:
§ 7º A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:
I – durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;
II – contra pessoa menor de 14 (quatorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;
III – na presença de descendente ou de ascendente da vítima.
O aumento de pena trazido pelo inciso I e II, faz-se necessário em razão do estado de saúde da vítima, tanto físico quanto psicológico, sendo ainda mais reprovável a conduta do autor.
Por outro lado, o aumento de pena previsto no inciso III dá-se em razão do choque provocado em âmbito familiar, gerando transtornos psicológicos. Ainda é necessário destacar que irmãos e tios (parentes colateriais) não estão inseridos no aumento de pena.
Cabe ressaltar que é prescindível que o ascendente ou descendente esteja presente fisicamente no lugar do crime, podendo estar observando de longe ou até mesmo ouvindo pelo telefone.
Por fim, evitando a responsabilidade penal objetiva, deve o autor do crime saber que está cometendo o crime perante tais pessoas.
Competência para julgamento
Por se tratar de crime contra a vida, quando praticado de maneira dolosa, há competência constitucional para que seja julgado pelo Tribunal do Júri. No entanto, nada impede que sua primeira fase (até a pronúncia) seja feita em Vara de Violência Doméstica, cabendo à lei de organização judiciária prever tal hipótese. Ressalta-se que, em relação a matéria, o STF já se manifestou sobre a possibilidade.
Crime hediondo
A lei 8072/90, art. 1º, elenca o homicídio qualificado como crime hediondo, assim, em razão da inserção do feminicídio como qualificadora do homicídio, automaticamente, o feminicídio também se torna hediondo.
Dessa forma, as mudanças reais e concretas para o autor de um feminicídio será que ele terá que cumprir 2/3 da pena para ter o livramento condicional, 2/5 ou 3/5 para progressão de regime, se primário ou reincidente, 30 dias de prisão temporária, dentre outros.
Vale destacar que anteriormente à lei 13.104/15 os crimes, em sua maioria, eram qualificados por motivo fútil, torpe ou até mesmo por ter sido praticado de maneira que dificulte a defesa da vítima, passando a ser hediondo.
Lei 11.104/15 e a Constituição Federal
Com a publicação da lei 13.104/15 houve rumores de inconstitucionalidade por ferir o princípio da igualdade. contudo o Supremo Tribunal Federal já decidiu, em relação à lei 11.340/06, a possibilidade de haver uma proteção maior às mulheres, promovendo a igualdade pelo fato de a mulher ter sido vítima de discriminações e sofrimentos durante séculos.
Irretroatividade da lei
De acordo com o art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal, e o art. 1º do Código Penal, o crime e a pena devem estar previstos em lei prévia, ou seja, a lei deve existir antes que ocorra o fato a ser punido.
Insta salientar que a proibição da aplicação da lei penal ocorre também durante a vacatio legis.
Feminicídio X Femicídio
No feminicídio, o agressor mata a mulher motivado pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Já no femicídio, o agressor mata a mulher sem que haja menosprezo ou discriminação à condição de mulher, independe se for no âmbito familiar ou em outro ambiente.
Delegacia de Homicídio e Proteção à Mulher no Espírito Santo
A Delegacia de Homicídio e Proteção à Mulher, única do Brasil, instalada no final do ano de 2010, possui atribuição para investigar homicídio de mulher, trabalhando de maneira eficiente em suas investigações.
Durante os anos de sua existência, diversos dados foram registrados, entretanto, apenas a título didático, seguem os dados dos anos 2013 e 2014:
- 2013: foram 96 mortes de mulheres
- 2014: foram 86 mortes de mulheres
Assim, é possível notar uma redução de 11% em relação ao ano anterior, sendo a redução fruto de um trabalho eficaz em que se preza por investigações rápidas para que as provas não se percam no tempo e para que a sociedade perceba que a prática de crime gera punição, não sendo verdadeiro o jargão "a justiça tarda, mas não falha", pois a justiça que tarda será uma justiça falha.
Até a presente data de publicação, é possível notar que neste ano de 2015 houve uma redução de 20%, pois atualmente são 50 mulheres mortas, sendo que no mesmo período de 2014 foram mortas 63 mulheres. Vale ressaltar que nem todos os casos foram tipificados como feminicídio.
Após o advento da alteração legal introduzindo feminicídio na região metropolitana da Grande Vitoria foram 10 feminicídios, sendo todos já concluídos e com os autores presos.
Por fim, insta salientar que a Delegacia de Homicídio e Proteção a Mulher concluiu 75% de seus Inquéritos Policiais solucionando crimes do final do ano de 2010 até a presente data.
Bibliografia
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BITTENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal. Ed. São Paulo:Saraiva, 2015.
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Lei nº 11.340/06 de 7 de Agosto de 2006. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. acesso em 08/07/2015
Lei 8.072/90 de 25 de julho de 1990. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8072.htm. acesso em 07/07/2015