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Direitos sucessórios e legitimidade ativa do cônjuge sobrevivente na falência do espólio

27/10/2003 às 00:00
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1. Considerações iniciais.

De acordo com o art. 3º, I, do Decreto-lei 7661, de 21.06.45, pode ser declarada a falência do espólio [1] do devedor comerciante [2]. Dessa forma, resulta claro que não se trata de falência do morto, mas dos bens por ele deixados. Deve a falência do espólio, como dispõe o art. 4º, § 2º, da Lei de Falências, ser requerida no prazo decadencial de um ano da morte do comerciante, seja pelo credor, seja pelos cônjuge sobrevivente, herdeiros e inventariante. [3]

Sobre a legitimidade ativa na ação falimentar, dispõe o art. 9º, I, LF, que a falência pode ser requerida [4] "pelo cônjuge sobrevivente, pelos herdeiros do devedor ou pelo inventariante, nos casos dos arts. 1º e 2º, n. I", limitando-se, assim, o fundamento do pedido de falência, que só deve ser formulado com base no estado de insolvência do devedor comerciante, quer por decorrência do não-pagamento de dívida líquida, quer por impossibilidade de realizá-lo.

A depender do regime de bens que se formara entre o cônjuge sobrevivente e o devedor comerciante, discute-se o alcance da legitimidade ativa conferida pelo art. 9º, I, da Lei de Falências ao cônjuge supérstite. O tema é relevante, pois, como se sabe, faltando legitimidade processual, o pedido se falência sequer poderá ser conhecido, extinguindo-se o processo, sem julgamento de mérito, na forma do art. 267, VI, do Código de Processo Civil.

O Código Civil de 2002 trouxe inovações quanto aos direitos sucessórios do cônjuge sobrevivente, que serão adiante examinadas, na medida em que possam trazer conseqüências para o problema específico de sua legitimidade para o requerimento da falência do espólio.


2. Direitos sucessórios do cônjuge sobrevivente.

A nova Lei Civil conferiu mais direitos sucessórios ao cônjuge sobrevivente, que, conforme estatui o art. 1845, passou a ser considerado como herdeiro necessário.

Segundo dispõe o art. 1829, III, do Código Civil, o cônjuge sobrevivente ocupa a terceira posição na ordem de vocação hereditária. Dessa forma, ao cônjuge supérstite caberá metade da legítima, na falta de descendentes e ascendentes do autor da herança.

Em alguns casos, porém, o cônjuge sobrevivente herdará em concorrência com os descendentes. A definição desses casos tem dado origem a divergências no seio da dogmática jurídica civilista, o que se relaciona, em geral, à "imprecisão da linguagem do direito" e à "possibilidade, em casos especiais, de uma decisão que contraria textualmente um estatuto" [5].

Prescreve o art. 1829, I, do Código Civil, que a sucessão legítima defere-se "aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime de comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1640, parágrafo único) [sic]; ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares".

Assim, o cônjuge sobrevivente herda em concorrência com os descendentes, salvo algumas exceções.

A primeira exceção, sobre a qual não paira maiores dúvidas, refere-se cônjuge sobrevivo casado em regime de comunhão universal de bens, o qual importa, em regra, "a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas" (art. 1667, CC). No regime de comunhão universal, portanto, "os patrimônios dos cônjuges se fundem em um só, passando, marido e mulher, a figurar como condôminos daquele patrimônio" [6], são meeiros. Dessa forma, morrendo um dos cônjuges, caberá ao sobrevivo metade dos bens do casal, o que explica a primeira ressalva legal contida no art. 1829, I.

Tendo em vista a expressão literal do art. 1829, I, a segunda exceção diz respeito ao cônjuge supérstite que tenha casado com o regime de separação obrigatória de bens (art. 1641, CC), que se impõe: (I) às pessoas que contraírem casamento com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; (II) à pessoa maior de 60 (sessenta) anos; (III) a todos os que dependerem, para casar, se suprimento judicial.

De acordo com o que estabelece a Súmula 377 do STF, no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento. Se cabe ao cônjuge sobrevivo metade dos bens adquiridos na constância do casamento, justifica-se excluí-lo da possibilidade de herdar concorrentemente aos descendentes do de cujus.

Para o ilustre Prof. Miguel Reale, contudo, não parece aceitável que seja herdeiro necessário o cônjuge sobrevivo que se tenha casado no regime de separação de bens (art. 1687, CC). Com efeito, sobre a exegese do art. 1829, I, sustenta que "A interpretação desse dispositivo isoladamente pode levar a uma conclusão errônea, devendo, porém, o intérprete situá-lo no contexto sistemático das regras pertinentes à questão que está sendo examinada." [7], para, a seguir, com o apoio dos cânones sistemático, histórico e teleológico [8], afirmar que "A obrigatoriedade da separação de bens é uma conseqüência necessária do pacto concluído pelos nubentes, não sendo a expressão "separação obrigatória" aplicável somente nos casos relacionados no parágrafo único do artigo 1.641" [9].

Como se vê, trata-se de uma interpretação que vai de encontro ao sentido literal do estatuto, que expressamente se refere apenas à separação legal, embora haja referência equivocada ao art. 1640, parágrafo único. É necessário, assim, para a superação do argumento semântico, que haja argumentos de outra ordem, de maior peso.

Consideramos procedente a ponderação do Prof. Miguel Reale. Avulta o elemento teleológico, que tem "em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática" [10]. Assim, como observa o Prof. Glauco Barreira [11], "nessa premissa, o sentido literal do dispositivo ganha maleabilidade para se subordinar ao fim social colimado". Logo, se os nubentes decidiram contrair matrimônio no regime de separação de bens, não se justifica que o cônjuge sobrevivo passe a ser herdeiro necessário.

A terceira exceção, pela qual o cônjuge sobrevivente não herdará em concorrência com os descendentes, seria a do regime da comunhão parcial, não deixando o autor da herança bens particulares (art. 1659, I e II, CC). Pelo regime da comunhão parcial, em regra, "comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento"; diz-se em regra, pois os bens particulares estão excluídos da comunhão parcial. Desse modo, caberá ao cônjuge supérstite, que se casara pelo regime da comunhão parcial, metade do patrimônio formado na constância do casamento. De acordo com uma primeira leitura da parte final do art. 1829, I, caberá ainda ao cônjuge sobrevivo, como herança, uma quota dos bens particulares do falecido, caso existam. Ora, não havendo bens particulares, desnecessário prever o cônjuge sobrevivo como herdeiro necessário, tendo ele se casado no regime da comunhão parcial, vez que se comunicam os bens adquiridos na constância do casamento.

Por essa razão, parece-nos sem maior fundamento a argumentação levada a efeito pela Desembargadora Maria Berenice Dias, que propõe uma segunda leitura, ou releitura da parte final do art. 1829, I, tendo em vista a implicação do "ponto-e-vírgula" na apreensão do sentido do dispositivo. Segundo sustenta, "o sinal de pontuação ponto-e-vírgula, que tem por finalidade estabelecer um seccionamento entre duas idéias" [12]. Esse separação de idéias teria o condão de inverter o sentido da terceira exceção, que apontamos acima.

Do ponto de vista gramatical, questionamos essa conclusão, tendo em vista a função da conjunção alternativa "ou", que serve, como sua denominação indica, para estabelecer uma relação de alternância com as exceções anteriores. Não havendo essa conjunção, haveria espaço para especular sobre o "seccionamento" de idéias.

No aspecto jurídico, é desnecessário prever o cônjuge sobrevivo, casado no regime da comunhão parcial, como herdeiro, não havendo bens particulares. Situação oposta se dá, havendo bens particulares: a omissão legal a respeito da sucessão quanto a esses bens impediria o cônjuge supérstite de receber, por herança, uma cota deles, em concorrência com os descendentes. Se se considera "injusto" [13] que o cônjuge sobrevivo concorra com os descendentes, sobretudo no caso em que provenham de outro casamento, essa não foi a orientação adotada pelo legislador civil.


3. Legitimidade do cônjuge sobrevivente no requerimento da falência do espólio.

O exame dos direitos sucessórios do cônjuge sobrevivo, que, como se viu, se relacionam com os diversos regimes de bens, contribuem para a identificação da legitimidade ativa do cônjuge supérstite, no requerimento da falência do espólio [14], pelo menos no que toca ao interesse patrimonial. Havendo interesse patrimonial, não há dúvida quanto à legitimidade ativa do cônjuge sobrevivente.

Então, consideremos os diversos regimes de bens.

Se o cônjuge sobrevivente fora casado com o de cujus no regime de comunhão universal, tem interesse patrimonial no espólio, logo não há dúvida quanto à sua legitimidade para o requerimento da ação falimentar.

Se casado fora no regime da comunhão parcial, há interesse patrimonial, vez que se comunicam os bens adquiridos na constância do casamento. Além disso, havendo bens particulares deixados pelo morto, tem o cônjuge sobrevivo direito a uma cota desses bens, em concorrência com os descendentes.

Caso o regime de bens seja de separação legal ou convencional, que possui os mesmos efeitos sucessórios como exceções à herança em concorrência com os descendentes do de cujus, conforme orientação adotada neste trabalho, não há, em princípio, interesse patrimonial do cônjuge sobrevivo no espólio do devedor comerciante. Mas, tendo em vista a Súmula 377 do STF, pela qual no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, há interesse patrimonial no que concerne à metade desses bens.

Para Luiz Tizirulnik [15], "o cônjuge sobrevivente só terá a faculdade dessa iniciativa [requerer a falência], desde que tenha interesse econômico em relação ao espólio". Embora não concordemos que a legitimidade ativa sub examine tenha por fundamento apenas o interesse patrimonial, reconhecemos que o interesse econômico, presente, como se disse acima, afasta qualquer dúvida sobre a existência da legitimidade, confirmando-a.

Parece-nos com razão José da Silva Pacheco [16], quando menciona que a faculdade concedida ao cônjuge supérstite liga-se ao interesse familiar. Assim sendo, "pouco importa o regime de bens, ao cônjuge sobrevivente é dada a faculdade de requerer a falência do espólio". Contudo, como não se trata de enunciado de dogmática jurídica que goza de unanimidade, convém ter presente a análise do interesse econômico.


Notas

01. Segundo Miranda Valverde, citado por Raitani, Francisco. Falência e Concordata. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1956, p. 82, "Admitindo a falência da herança, acentuamos a tendência para nos aproximar do sistema germânico, segundo o qual a falência ou, melhor, o concurso de credores reveste as características de um processo de execução forçada sôbre o patrimônio do devedor comum. Por isso mesmo, só abrange o patrimônio existente ao tempo da abertura do processo ".

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02. Consoante ressalta Pereira, Aristeu; Timm, Bernardo. Falências e Concordatas. t. I. Rio de Janeiro: José Konfino, 1954, p. 90, "pode ser declarada a falência do espólio do devedor comerciante; mas, para que essa medida possa ser aconselhada e venha a verificar-se, necessário é que hajam [sic] motivos plausíveis de falência; que a morte do devedor tenha trazido descontrôle dos seus negócios, ao ponto de ameaçar interêsses de terceiros, tornando periclitantes os direitos de credores, principalmente ".

03. Almeida, Amador Paes de. Curso de Falência e Concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 48, faz referência à opinião de Elias Bedran, segundo a qual o prazo decadencial "só diz respeito ao credor".

04. Nesse sentido, Requião, Rubens. Curso de Direito Falimentar. v. I. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 89, "Além da confissão diretamente feita pelo devedor, seja pessoa natural ou jurídica, outras pessoas a ele ligadas podem, segundo a lei, solicitar a falência por seu próprio interesse".

05. Alexy, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Trad. de Zilda H. Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001, p. 17.

06. Rodrigues, Silvio. Direito de Família. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 176.

07. Reale, Miguel. O cônjuge no novo Código Civil. In: Intelligentia Juridica. n. 30. [Internet] http://www.intelligentiajuridica.com.br/bate-boca.html [Capturado 30.Mai.2003].

08. Conforme destaca Alexy, ob. cit., p. 18, "Mais importante do que o problema do número de cânones é o problema de sua ordem hierárquica. Cânones diferentes podem levar a resultados diferentes".

09. Reale, lugar citado.

10. Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 124.

11. Magalhães Filho, Glauco Barreira. Hermenêutica Jurídica Clássica. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 40.

12. Dias, Maria Berenice. Ponto-e-vírgula. In: Intelligentia Juridica. n. 30. [Internet] http://www.intelligentiajuridica.com.br/bate-boca.html [Capturado 30.Mai.2003].

13. Id., ib.

14. Sobre quem pode pedir a quebra post mortem, no direito argentino, diz-nos Martinez, Francisco Garcia. El Concordato y la Quiebra, t. I. 2. ed. Buenos Aires: Victor P. de Zavalia, 1953, p. 106, que "La quiebra póstuma pude ser solicitada por uno o varios acreedores, sean o no a su vez herederos o legatarios del causante, con las excepciones (...) ".

15. Direito Falimentar. 3. ed. São Paulo: RT, 1994, p. 67.

16. Processo de Falência e Concordata. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 177.


Referências bibliográficas citadas.

ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Trad. de Zilda H. Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001.

ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de Falência e Concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

DIAS, Maria Berenice. Ponto-e-vírgula. In: Intelligentia Juridica. n. 30. [Internet] http://www.intelligentiajuridica.com.br/bate-boca.html [Capturado 30.Mai.2003].

MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica Jurídica Clássica. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001

MARTINEZ, Francisco Garcia. El Concordato y la Quiebra. t. I. 2. ed. Buenos Aires: Victor P. de Zavalia, 1953.

PACHECO, José da Silva. Processo de Falência e Concordata. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

PEREIRA, Aristeu; TIMM, Bernardo. Falências e Concordatas. t. I. Rio de Janeiro: José Konfino, 1954.

RAITANI, Francisco. Falência e Concordata. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1956.

REALE, Miguel. O cônjuge no novo Código Civil. In: Intelligentia Juridica. n. 30. [Internet] http://www.intelligentiajuridica.com.br/bate-boca.html [Capturado 30.Mai.2003].

REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Falimentar. v. I. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1983.

RODRIGUES, Silvio. Direito de Família. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

TZIRULNIK, Luiz. Direito Falimentar. 3. ed. São Paulo: RT, 1994.

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Sobre o autor
Marcel Mota

Professor de Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito Constitucional e Conceitos Jurídicos Fundamentais da Faculdade Farias Brito. Doutorando em Ciências Jurídicas, na especialidade de Ciências Jurídico-Civis, pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito (Ordem Jurídica Constitucional) pela Universidade Federal do Ceará (2009). Especialista em Direito Processual Civil (2007). Especialista em Direito Tributário (2009). Especialista em Direito Penal e Processual Penal (2010). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (Turma 2003.2). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOTA, Marcel. Direitos sucessórios e legitimidade ativa do cônjuge sobrevivente na falência do espólio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 115, 27 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4377. Acesso em: 7 nov. 2024.

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