O controle de convencionalidade da Lei da Ficha Limpa

Exibindo página 1 de 2
Leia nesta página:

Cuida-se do controle de convencionalidade da Lei da Ficha Limpa, em face do sistema americano de proteção aos direitos humanos

1. OS DIREITOS POLÍTICOS E A CORTE INTERAMERICANA[3]

O Brasil se filia ao sistema regional americano de direitos humanos cujo marco normativo é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos[4]. Na Costa Rica, situa-se a Corte Interamericana de Direitos Humanos (art. 33) e, em Washington, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos[5], os órgãos primordiais previstos na Convenção.

Ao ter se tornado “parte” deste tratado, o Estado brasileiro sujeitou-se à jurisdição da Corte, cláusula facultativa[6], bem assim aos procedimentos e meios de atuação do sistema regional, como as comunicações individuais (art. 44), as comunicações interestatais (art. 45) e as vistorias in loco[7]. Verifica-se, na mesma medida, obviamente, o dever de respeito aos direitos protegidos pela Convenção Americana e de implementação dos direitos e liberdades consagrados pela alteração, inclusive, da sua legislação interna.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) consagra os direitos políticos em seu artigo 23[8]. Os direitos políticos aqui tratados estão circunscritos àquele núcleo relacionado ao votar e ser votado, isto é, excluindo-se a dimensão de participação e acesso aos cargos públicos numa concepção mais alargada.

A Convenção, em razão da gravidade dos direitos políticos, ab ovo, enuncia as possibilidades específicas de sua restrição, devendo tal cláusula ser lida numerus clausus: motivo de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação por juiz competente em processo penal. Essas são as únicas restrições aos direitos e oportunidades de participação política acolhidas pela norma convencional, dada a repercussão desses direitos fundamentais. E, a magnitude de tais normas fica ainda mais nítida quando a Convenção Americana exclui, da possibilidade de suspensão das garantias (dispositivo emergencial da Convenção do art. 27), em momentos de grave turbação, exatamente, os direitos políticos[9] e aqueles necessários para seu usufruto.

Em conclusão, pode-se dizer que o tratado cuidou, com bastante parcimônia, daqueles elementos vitais para o funcionamento do regime democrático e da proteção dos direitos políticos fundamentais, deixando, para a margem de apreciação dos Estados signatários, o modo e meio de funcionamento de cada um.

Os direitos políticos convencionais têm, como núcleo, a participação na direção dos assuntos comunitários e a possibilidade de votar e ser eleito. Tamanha a relevância de tais dispositivos que suas formas de restrição estão expressamente assinaladas no próprio corpo do tratado. E é, então, que são admitidas restrições quanto à elegibilidade exclusivamente por idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental. Por fim, quanto às restrições eventualmente opostas por decisões judiciais ao direito de votar e ser eleito, taxativamente, estas se limitam às condenações em processo penal.

Ao contrário dos direitos políticos, é de se ressaltar que a liberdade de manifestação e expressão pode, sim, ser mitigada por critérios morais (“moral pública” ou a “proteção moral da infância e da adolescência”), por exemplo, por expressa disposição convencional, de onde se aduz que, quando quis, a Convenção dispôs sobre a matéria[10]. Da mesma maneira, o direito de circulação e de residência que pode ser restrito para a proteção da moral pública (art. 22.3), o direito de reunião art. 15 e a liberdade de associação (art. 16.2)[11], podem sofrer limitações em nome da moral pública.

Descabe, deste modo, realizar qualquer forma de admoestação dos direitos políticos, tendo, como fundamento, uma visão moral do mundo ou das pessoas[12], o mencionado “propósito moralizante” inscrito no acórdão do Supremo Tribunal Federal sobre a Lei nº 135/2010[13]. Este fim tampouco se confunde com a moralidade administrativa do artigo 37 da Constituição[14].

A discussão entre a moral e a política (e entre o direito), noutra parte, não é recente e não é o escopo deste trabalho, mas, se pode localizar o tema e as suas dificuldades conceituais, para explicar o tratamento dado pela Convenção ao tema. Não se quer afirmar, por outro lado, que a probidade não seja necessária para a assunção de cargos públicos, nem que o Direito tenha um conteúdo alheio à Moral, mas, apenas, que os titulares dos mandatos eletivos devem ser escolhidos pelo povo e por outras instâncias de filtragem, como os partidos políticos, sem a diminuição do universo de pretendentes calcada em “propósitos moralizantes” ditadas por outros que não seus atores mais diretos.

 No plano mais dogmático, Eneida Desiree Salgado e Eduardo Borges também não encontram fundamento constitucional para a moralidade[15], tal como exposta como fundamento determinante do controle concentrado realizado pelo Supremo Tribunal Federal:

Nada permite afirmar que a Constituição Federal de 1988 é compatível com uma leitura moralizadora e perfeccionista. O Texto Constitucional, embora traga valores compartilhados pela sociedade, como a solidariedade e a igualdade, não aniquila o espaço de liberdade e nem apresenta um projeto de vida boa a ser imposto aos cidadãos. O compartilhamento de valores públicos, expresso no preâmbulo e no artigo 3o, revela uma moralidade objetiva que não autoriza a imposição de uma moralização subjetivada, seja pelo legislador ou pelos magistrados, em nome de prevenção ou precaução.

Emendando o tema da laicização do Estado com a imposição de uma particular concepção de moral, aponta Allain Touraine, neste caso, a afronta a própria democracia[16]:

Se uma sociedade reconhece em suas instituições uma concepção de bem, corre o risco de impor crenças e valores a uma população bastante diversificada. Da mesma forma que a escola pública separa o que faz de seu ensino em relação ao que pertence à escolha das famílias e indivíduos, assim também um governo não pode impor uma concepção do bem e do mal, e deve garantir, antes de tudo, que cada um possa fazer valer suas demandas e opiniões, ser livre e protegido, de modo que as decisões tomadas pelos representantes do povo levem em consideração o maior número possível de opiniões manifestadas e interesses defendidos. Em particular, a ideia de uma religião de Estado, que corresponde à imposição pelo Estado de regras de ordem moral ou intelectual, é incompatível com a democracia.

E noutra passagem afirma, ainda: “para ser democrática, a igualdade deve significar o direito de cada um escolher e governar sua própria existência, o direito à individuação contra todas as pressões que se exercem em favor da “moralização” e normalização”[17].

Esta seleção de candidatos pelo exame de situações pretéritas, por exemplo, não há dúvida, se relaciona a um fundamento aristocrático para a participação política em oposição à escolha livre dos representantes. Também parece haver pouca dúvida que, num regime aristocrático, a qualidade dos homens públicos tende a ser melhor e que, nos regimes totalitários, a administração seja mais eficaz, porque alheios às tramas e procedimentos próprios do regime democrático, mas esta é a opção da Constituição Brasileira. Em outras palavras, uma certa ineficácia e a possibilidade de homens não tão qualificados alçarem mandatos eletivos é intrínseco à própria natureza democrática. Contudo, é por meio da democracia que a dignidade da pessoa humana tende a alcançar a plenitude e maior proteção.

 Tocqueville já antevera, em capítulo sobre as vantagens da democracia americana, esse dilema e contraste com a aristocracia[18], reconhecendo esta faceta específica da qualidade dos homens públicos nos dois regimes: “Nos Estados Unidos, onde os funcionários públicos não tem o interesse de classe a tornar predominante, a marcha geral e contínua do governo é benfazeja, se bem que os governantes sejam, com frequência, inábeis, e, algumas vezes, desprezíveis”.

Por outro lado, a qualidade de um corpo eleito tem direta e inafastável relação com os que o elegeram, como lembra Rousseau[19]: “assim como, antes de erguer uma edifício, o arquiteto observa e sonda o solo para verificar se sustentará o peso da construção, o instituidor sábio não começa por redigir leis boas em si mesmas antes examina se o povo a que se destinam mostra-se apto para recebê-las”. Isto pode parecer banal, mas a legislação tenta curar uma ausência de probidade olvidando essa regra lógica. Aristóteles já insinuara isso ao comentar as relações de poder partindo do pressuposto da igual virtude entre “dominador” e ‘dominado”[20]:

Se, por outro lado, um possui virtudes e outro não, teremos um caso surpreendente. Pois, se o que comando for despótico e injusto, como poderá dirigir bem? E, se ao dominado faltam virtudes, como poderá ser bem governado? Porque, se ele for desequilibrado e desobediente, não irá executar seus deveres . Desse modo, torna-se claro, que tanto dominador quanto dominado vem ter sua cota de virtudes; mas existem diferenças em cada caso, assim como as há também entre os que pretendem, por natureza, ser dirigidos.

Tal dimensão foi, expressamente, tratada por Aristóteles quando aduzira sua teoria política e especificou o objetivo maior da virtude: a justiça. Uma justiça com uma relação figadal com a igualdade. Embora reconheça a necessidade da virtude de justiça e da bravura militar na Administração do Estado, indaga, o filósofo, acerca da distribuição dos direitos políticos[21]:

O que queremos descobrir agora é a espécie de igualdade ou desigualdade; em que assuntos é a noção de igual relevante à teoria política? É possível argumentar que tal noção é relevante em todos os assuntos e dizer que a superioridade de qualquer tipo justifica a distribuição desigual de cargos públicos, admitindo que, em outros aspectos, os homens sejam iguais e similares; pois qualquer diferença entre as pessoas significaria diferentes justiças e diferentes méritos. Mas certamente, se isso for admitido, teremos que permitir que a superioridade em altura ou compleição ou em qualquer outro aspecto confira vantagens na distribuição de direitos políticos. Não há, aqui, uma falácia óbvia?

A bem da verdade, a questão é, ainda, mais profunda, porquanto, para Hobbes[22], por exemplo, a noção de honra deriva do poder, ou seja, na “mera opinião do poder” sobre alguém, enfatizando aqui um caráter aristocrático da própria noção de bem e mal: “Não altera o caso da honra que uma ação (por mais e mais difícil que seja, e consequentemente sinal de muito poder) seja justa ou injusta, porque a honra consiste na opinião do poder”. Nietzsche, ao tratar da origem do conceito de “bom”, faz coro com Hobbes sobre a honra, afirmando uma natureza aristocrática da própria linguagem[23]:

Foram os “bons” mesmo, isto é, os nobres, os poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição ao que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu. Desse pathos de distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade! (...)

Importa, sobretudo, afirmar que o dissenso sobre este vago conceito de “moralidade” neste cenário de “fragmentação de valores” e a possibilidade de cada um expressar os seus juízos e “apetites individuais”, a seu próprio talante, fazem lembrar a própria causa hipotética para o surgimento do Estado, segundo Hobbes, o de conferir unidade à multiplicidade de vontades e opiniões dos homens, “à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa”[24]. Em outras palavras: o Estado veio para emprestar unidade a essa fragmentação que, em última análise, importa em redução da proteção ao cidadão.

É preciso, então, enfatizar: a Convenção Americana sobre Direitos Humanos não admite a restrição dos direitos políticos fundada na moral como parâmetro mínimo de proteção desses direitos. E isto se justifica na medida em que a lei civil serve, exatamente, para traçar a linha entre o bem e o mal[25].

 A respeito, há um precedente ilustrativo da Suprema Corte dos Estados Unidos da América sobre a constitucionalidade de um dispositivo da Constituição do Estado do Alabama que impunha a inelegibilidade aqueles condenados por crimes “envolving moral turpitude”. No caso Hunter v. Underwood, a Corte Constitucional, em 1985, compreendeu que a norma fora engendrada originalmente (1901) para alcançar a população negra[26] reconhecendo a incompatibilidade material com a cláusula da igual proteção da Emenda 14 da Constituição norte-americana.

Retomando o raciocínio, após este recorte, avulta-se a fundamentalidade do direito em tela pela menor possibilidade de sua restrição, a qual, no que toca à Administração da Justiça, somente pode ser mitigada pela existência de responsabilidade penal reconhecida como tal em condenação exarada pelo juiz competente. Mais do que isso: nos casos de suspensão das garantias (art. 27 da Convenção), quando irrompe grave comoção social, os direitos políticos são, expressamente, ressalvados[27] desta ruptura institucional.

Em desdobramento, pode-se afirmar, dada a extensão da presunção de inocência do tratado conferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, – que a condenação capaz de afastar a elegibilidade repousa, de forma exclusiva, em condenação em processo penal transitado em julgado.

E, esta impossibilidade tem assento, igualmente, na glosa (Comentário Geral nº 25 (57)) do Comitê de Direito Humanos na ONU sobre o Pacto dos Direitos Civis e Políticos do qual se colhe[28]: “pessoas privadas de sua liberdade mas que não foram ainda condenadas não podem ser excluídas de exercerem o direito ao voto”. O mesmo Comitê deixou assentado, na Comunicação nº 1134/2002, Fongum Gorji-Dinka v. Cameroon[29], que o direito de votar e ser eleito não pode ser suspenso, salvo se houver a estipulação legal objetiva e razoável. Neste caso, entendeu-se a violação do direito do candidato pela retirada de seu nome da lista de candidatos com fundamento em seu antecedente judicial. Afirmou-se, novamente, que somente a condenação poderia afastar o exercício do direito ao voto.

1.1.O Caso Yatama

Em 2005, a Corte Interamericana teve a oportunidade de se manifestar sobre os direitos políticos no Caso YATAMA v. Nicaragua[30], decisão de 23 de junho. Neste precedente, várias pessoas foram impedidas de participar do pleito municipal do ano 2000 nas regiões Autônomas do Atlântico Norte e Atlântico Sul, em razão de uma resolução restritiva emitida pelo Conselho Supremo Eleitoral.

Neste caso, percebe-se o confronto das comunidades tradicionais e indígenas daquele país com as exigências legais para a participação política adotadas pelo Estado da Nicarágua. Mesclam-se as práticas consuetudinárias dessas comunidades, a necessidade de preservação dessas minorias étnicas com o direito de participação política, ressaltando a interconexão e indivisibilidade dos direitos humanos[31] numa sociedade “multiétnica, multicultural y multilingüe” como a Nicaragua. É um caso lapidar sobre o debate entre culturalismo e universalismos dos direitos humanos.

Retomando o Caso YATAMA, seus candidatos já haviam participado das eleições de 1990 e 1996 como “organização de subscrição popular”. Estas associações permitiam a participação política desde que se reunisse um mínimo de 5% de eleitores na respectiva circunscrição eleitoral inscritos na lista de eleitores da eleição anterior.

Na eleição do ano 2000, foi suprimida pela lei eleitoral, esta figura de participação popular 9 (nove) meses antes das eleições, admitindo-se, exclusivamente, a atuação por meio de partidos políticos, meio impróprio e desconhecido daquelas populações indígenas.

O YATAMA terminou por não apresentar candidato, não tendo participado das eleições municipais do ano 2000, em virtude do indeferimento de seu registro, pela Justiça Especializada, pelo descumprimento do tempo mínimo de 6 (seis) meses da existência do partido antes das eleições.

A Corte Interamericana afirmou os limites da intervenção restritiva dos direitos políticos ressaltando a necessidade de obediência àqueles requisitos convencionais previstos no Artigo 23.2 da Convenção, ou seja, a mitigação somente pode ocorrer por “(...) idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal”[32].

 A exigência da constituição do partido político, tal como previsto na legislação paroquial foi compreendida, diante das circunstâncias específicas das vítimas atingidas[33], como atentadora aos direitos políticos dos envolvidos, porque representava um grave obstáculo à sua efetiva participação política. Na decisão, mencionou-se a inexigibilidade declarada pelo Comitê de Direitos Humanos na ONU da existência de um partido político, porque isso implica em limitação de forma excessiva do direito das pessoas de se apresentarem nas eleições como candidatas (§ 208). Inexiste qualquer disposição, na Convenção Americana, afirmando a necessidade de um partido político, como condição para o exercício desse direito político, sem desdouro da importância dessas instituições no desenvolvimento e fortalecimento da democracia, mas, também, reconhecem-se outras formas através das quais a realização desses fins comuns podem ser realizados (215) tendo, isso, inclusive, sido reconhecido pela Carta Democrática Interamericana[34].

De todo modo, o Estado da Nicarágua foi condenado pela violação do Artigo 23 da Convenção Americana, dentre outros dispositivos mencionados na decisão.

Observa-se que, no Comentário nº 25 da Comissão de Direitos Humanos (sistema ONU) sobre o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, restou, especificamente, resguardado, o direito à candidatura avulsa[35]:

Na mesma direção, o precedente do Comitê de Direitos Humanos (ONU) Lukyanchik v. Belarus, Com. 1392/2005, no qual se afirmou a criação de empecilhos indevidos para barrar uma candidatura avulsa[36], ou seja, sem critérios objetivos e razoáveis.

1.2. Caso Castañeda Gutman v. México

Noutra oportunidade, no Caso Castañeda Gutman v. México, em 6 de agosto de 2.008[37], novamente, o tema veio à baila. O Sr. Castañeda Gutman pretendeu concorrer ao cargo de Presidente do México sem ser filiado a partido político[38] e fora do prazo estabelecido pela legislação local com fundamento no Artigo 23 da Convenção Americana. Neste caso, é de se notar a exaração de medida cautelar pela Comissão Interamericana conferindo, ao Autor, o registro de candidato à Presidente.

Em primeiro plano, após a enunciação da relação umbilical entre os direitos políticos e a democracia, a Corte abordou o caráter taxativo, não enunciativo do Artigo 23.2 da Convenção quando trata das restrições possíveis desses direitos para enunciar o caráter numerus clausus das restrições convencionais que, somente, podem se dar – exclusivamente, repita-se – , “por motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal”.

A Corte entendeu a necessidade de filiação partidária como uma necessidade social imperativa (interesse público imperativo) pelas seguintes razões: i) a necessidade de criar e fortalecer os sistemas de partidos como uma resposta a uma realidade histórica, política e social; ii) a necessidade de organizar de forma eficaz o processo eleitoral num universo de eleitores de 75 milhões de pessoas; iii) a necessidade de financiamento predominantemente público para assegurar o desenvolvimento de eleições autênticas e livres em igualdade de condições e, finalmente, a necessidade de fiscalizar os recursos usados nas eleições.

Na mesma medida, no exame da necessidade da imposição do meio menos gravoso na restrição ao direito, a Corte afirmou que a necessidade de filiação partidária, não necessariamente, representa um obstáculo para o exercício dos direitos políticos no caso concreto, não se podendo afirmar, per si, que determinado modelo destoa da Convenção Americana. E, na análise da proporcionalidade, assentou ser uma medida idônea para produzir um resultado legítimo de organizar, de maneira eficaz, os processos eleitorais com o fim de realizar eleições periódicas, autênticas, por sufrágio universal e igual, com o fito de garantir a livre expressão da vontade dos eleitores.

Por fim, a Corte afastou a alegação de violação dos direitos políticos do Sr. Castañeda, mas, condenou o México pela vulneração ao direito de proteção judicial do Artigo 25 da Convenção, por não existir um recurso hábil e efetivo para a defesa de seu direito.

1.3. Caso López Mendoza v. Venezuela

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso López Mendoza v. Venezuela, decisão de 11 de setembro de 2011[39], discutiu, exatamente, a inelegibilidade do autor para participar da vida política de seu país por decisão lavrada por autoridade administrativa (Controladoria-Geral da República da Venezuela[40]) nas eleições regionais de 2008. O autor alegara uma sistemática campanha para disseminar inelegibilidades para os opositores do regime que, sob a roupagem de combate à corrupção, se valia de “instrumentos de persecução política” que “privam de seus direitos qualquer um que seja dissidente do governo e tenha aspirações claras e um alto índice de ganhar as eleições”[41].

A Corte Interamericana deixou assentada a violação aos direitos políticos de López apontando a desobediência aos requisitos para a restrição deste direito fundamental no caso concreto (art. 23.2), em especial, a ausência da condenação por um juiz criminal, não sendo qualquer sanção possível de causar a inelegibilidade.

1.4. Caso Gustavo Petro Urrego

Outro caso muito interessante ocorreu na Colômbia e dizia respeito ao candidato a Prefeito de Bogotá, Gustavo Francisco Petro Urrego que teve seus direitos políticos suspensos por uma resolução, de natureza “disciplinar”, emitida pela Procuradora-Geral da Nação, que o destituiu e o inabilitou por 15 (quinze) anos, em face de alegadas irregularidades quando de sua administração como prefeito da mesma cidade[42]. A Comissão Interamericana, assim, concedeu uma medida provisional suspendendo a decisão administrativa, em março de 2014, ressaltando a necessidade de preservação dos parâmetros convencionais para a restrição de direitos políticos[43].

Note-se que a Corte Interamericana, conforme lição de Flávia Piovesan[44] é o único tratado internacional de direitos humanos a dispor sobre medidas provisórias judicialmente cabíveis, tendo se utilizado de tal prerrogativa nos casos do Presídio Branco em face do Brasil e na proteção de quatorze membros de organizações de direitos humanos no Estado da Guatemala.

1.5. As restrições possíveis

A Comissão de Direitos Humanos, noutra oportunidade, no Informe intitulado “Democracia e Direitos Humanos na Venezuela”[45], de 2009, afastou a convencionalidade da imposição da inelegibilidade por órgão administrativo, à Controladoria Geral da Venezuela, reiterando a exclusividade temática do Artigo 23 (§ 56 e 57) como empecilho eleitoral, afastando, mais uma vez, a criação de inelegibilidades por autoridades administrativas.

A Corte Interamericana, ao analisar a restrição de um direito fundamental, indaga se tal limitação é necessária para o funcionamento de uma sociedade democrática, como no caso da exigência – reputada como convencional – de filiação partidária do candidato, levando em consideração o disposto nas suas normas próprias de interpretação (art. 29, 30 e 32 da Convenção Americana). E, examina se as hipóteses para o afastamento da capacidade eleitoral passiva se encontram naqueles casos taxativos, exclusivos apontados pela Convenção Americana em seu Artigo 23.

Para Jorge Amaya, a atuação da Corte, quando aborda os direitos e liberdades consagrados na Convenção Americana, obedece aos seguintes itens: i) a legalidade da medida restritiva, ou seja, a limitação deve decorrer de expressa previsão legal, constar, assim, em lei formal e material; ii) a finalidade da medida restritiva, no caso dos direitos políticos, deve estar dentre aquelas causas específicas do art. 23 e, finalmente; iii) a necessidade em uma sociedade democrática e a proporcionalidade da medida[46].

Este último item iii desdobra-se, conforme pauta de interpretação assentada, de forma paradigmática, no Caso Castañeda Gutman v. Estados Unidos Mexicanos do seguinte modo (§ 181): “a) satisface una necesidad social imperiosa, esto es, está orientada a satisfacer un interés público imperativo; b) es la que restringe en menor grado el derecho protegido; y c) se ajusta estrechamente al logro del objetivo legítimo[47])”[48]. Noutros termos, tem-se adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito que devem ser obedecidas na ordem estabelecida e, sucessivamente, adimplidas para se afirmar que tal providência restritiva de um direito fundamental é proporcional.

Cabe aqui o desdobramento dessa pauta de interpretação, conforme exposição de Amaya, para ver da possibilidade de vingarem outras formas de limitação aos direitos políticos, utilizando-se, por exemplo, o conteúdo do art. 32, inciso 2: “Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, em uma sociedade democrática”.

Em relação à finalidade da medida restritiva, no Caso Castaneda Gutman restou assentado se tratar de restrição admitida pela Convenção como a finalidade de proteção da ordem ou da saúde pública do Artigos 12.3, 13.2, das limitações possíveis à liberdade de expressão (“a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas” art. 13.2. b) ou 15[49] ou de normas que estabeleçam finalidades gerais legítimas como “ a segurança de todos” ou as “justas exigências do bem comum em uma sociedade democrática” do art. 32[50]. E tudo isso inserido num regime democrático, ou seja, a finalidade deve prover e promover este fim precípuo da Convenção.

 Como se sabe, no Artigo 23, não há previsão convencional de restrição, além das hipóteses listadas. Isso significa que a finalidade da medida restritiva deve ser no interesse de algum dos direitos assinalados no Art. 23, ou seja, para promoção dos direitos políticos, como, por exemplo, a decisão da necessidade de filiação partidária no Caso Castaneda Gutman v. México. Ali entendeu-se que a restrição criada com a obrigatoriedade da filiação partidária promovia, em última análise, os direitos políticos, e, assim, pode sobreviver ao crivo do controle de convencionalidade.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

No Informe da CIDH de 2009[51], já mencionado, sobre a democracia na Venezuela se abordou a decisão da Sala Constitucional daquele país que interpretara o Artigo 23.2 da Convenção Americana, afastando os temas ali propostos e, com arrimo nos Artigos 30 e 32, em especial da expressão “segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum”, (§ 66) entendeu possível outras restrições nos direitos políticos. E o fecho da decisão merece reprodução pela contundência da Sala Constitucional venezuelana ao impor à Convenção Americana “(...) a sanção de fatos que atentem contra a ética e a moral administrativa” e fazer prevalecer “os interesses coletivos envolvidos na luta contra a corrupção sobre os interesses particulares dos envolvidos em ilícitos administrativos[52].

No sistema europeu, a Comissão Veneza (Comissão Europeia pela Democracia pela Lei) produziu o Código de Boas Práticas em Temas Eleitorais[53] (2002), sob os auspícios da Convenção Europeia de Direitos Humanos. No que diz respeito à privação dos direitos políticos (votar e ser eleito) são os seguintes requisitos cumulativos[54]: i) deve constar em lei; ii) a proporcionalidade deve ser observada; as condições para a privação do direito de participar de uma eleição podem ser menos rígidas do que a privação do direito de votar; iii) a privação deve ser baseada em incapacidade mental ou condenação criminal oriunda de um crime grave (“serious offense”); ademais, a retirada de direitos políticos ou a descoberta de incapacidade mental poderá somente ser imposta por decisão expressa de uma Corte de Justiça. (tradução nossa)

Em 2004, a mesma Comissão de Veneza produziu um relatório sobre a “Abolição das Restrições ao Direito de Votar em Eleições Gerais”[55], com o fito de subsidiar o Conselho Europeu sobre o tema abordando as várias formas de restrição ao direito de votar, para concluir que as limitações relacionadas à idade, nacionalidade e residência, ficha criminal e incapacidade mental são encontrados em quase todos os países democráticos. A Comissão manteve as conclusões exaradas em seu Código para admitir as restrições aos direitos políticos somente na presença daqueles requisitos cumulativos.

Delineado o conteúdo dos direitos políticos e do devido processo legal, sob os auspícios da Corte Interamericana, impõe-se examinar a juridicidade e forma de implementação desse conteúdo transnacional em solo pátrio.

2. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE[56] DA LEI COMPLEMENTAR Nº 135/10 EM FACE DO DEVIDO PROCESSO CONVENCIONAL E DOS DIREITOS POLÍTICOS

O Supremo Tribunal Federal, ao realizar o controle concentrado de constitucionalidade da Lei Complementar nº 135/10, afastou as objeções constitucionais, mas, olvidou a necessidade da “dupla compatibilidade vertical material/ duplo controle”, ou seja, da congruência daquele ato normativo com a Convenção Americana de Direitos Humanos ou qualquer outro acordo internacional do qual o Brasil é parte (bloco de constitucionalidade). Melhor dizendo, não se tomou, como paradigma no controle concentrado, uma “Constituição convencionalizada”[57], como define Sagués,aquela depurada de ingredientes anticonvencionais”[58] e de acordo com a interpretação da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Pacto de Direitos Civis e Políticos.

Assim, num apanhado geral, há questões de três ordens que precisam exame: i) a questão procedimental do art. 5º; ii) as objeções materiais propriamente ditas (a proibição do retrocesso, presunção de inocência e o devido processo convencional, as presunções); e iii) a vigência da lei no tempo (retroatividade).

2.1 O Procedimento

O artigo 5º da Lei das Inelegibilidades afasta o comparecimento coercitivo das testemunhas, retirando, do candidato, um meio absolutamente necessário para a prova em seu prol.

No Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos[59], os Estados se  comprometem a assegurar o acesso a recurso a qualquer pessoa cujo direito tenha sido violado e de ter o “direito determinado pela competente autoridade judicial, administrativa ou legislativa ou por qualquer outra autoridade competente prevista no ordenamento jurídico do Estado em questão” (art. 2º), o de não ser privado arbitrariamente de sua vida (art. 6º) ou de sua liberdade, “salvo pelos motivos previstos em lei e em conformidade com os procedimentos nela estabelecidos” (art. 9º). Uma das garantias do Artigo 14  assinala o direito de “interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e de obter o comparecimento e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições de que dispõem as de acusação”.

A Convenção Americana, em seu artigo 8º, expressamente, aduz ser um direito da defesa “de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos”.

No procedimento, cuja pena pode redundar em perdimento da capacidade eleitoral passiva por muitos anos, a impossibilidade de se coarctar testemunhas e peritos para comparecerem em juízo, é quebra insofismável do devido processo convencional.

Destarte, o procedimento formal estabelecido pela Lei das Inelegibilidades destoa, de forma incisiva, do conteúdo do bloco de constitucionalidade acima transcrito, ao impedir e privar o réu da ampla defesa e da convocação de testemunhas, devendo ser considerado inconvencional.

2.2 A Proibição de Retrocesso dos Direitos Políticos

Flávia Piovesan[60] é objetiva ao cuidar da diferença de tratamento pelos tratados entre os direitos civis e políticos e aqueles direitos sociais, econômicos e culturais. Se nestes últimos sua aplicação é progressiva, porque demandam uma forte atuação do Estado, em relação aos direitos políticos, é de se reconhecer que são autoaplicáveis. Mesmo assim, requerem esses direitos, um aparato estatal adequado para sua fruição, sendo inadequada, para Piovesan, a percepção simplista que empresta a mera exigência de prestações negativas do Estado em relação aos direitos políticos. Por isso mesmo, a noção de desenvolvimento progressivo desses direitos é perfeitamente aceitável.

Portanto, admitida a necessidade de afloramento progressivo dos direitos políticos, a primeira objeção à legislação é, sem dúvida, relacionada ao retrocesso severo dos direitos políticos, amesquinhados, reduzidos e limitados, sob novas formas, com maiores prazos de inelegibilidade, com a inclusão de novos sujeitos, em contrariedade ao caráter progressivo dos direitos humanos, em claro atentado ao desenvolvimento e ao princípio da proibição do retrocesso, conforme Parecer Consultivo nº 4/84 da Corte Interamericana[61] e artigo 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos[62].

O Parecer nº 4/84 cuidou de indagação do Parlamento da Costa Rica acerca da convencionalidade, nos termos do artigo 20 da Convenção Americana, de emenda constitucional que previa aumento de restrições para a aquisição da nacionalidade naquele país[63]. Após afirmar que a nacionalidade é um estado natural do ser humano e fundamento de sua capacidade política e civil, o Parecer aponta que a reforma constitucional pretendeu restringir as possibilidades de que um estrangeiro pudesse adquirir a cidadania costarriquense. Ao final, por unanimidade, entendeu-se que a Costa Rica violou a Convenção por estabelecer uma discriminação incompatível ao criar condições de preferência para a naturalização, em razão do matrimônio em favor de, apenas, um dos cônjuges.

Interessa aqui, sobretudo, o voto dissidente do Juiz Rodolfo Piza acerca da extensão do princípio da proibição do retrocesso aos direitos civis e políticos[64]: “É assim que os princípios de desenvolvimento progressivo contidos no artigo 26 da Convenção, se bem que literalmente referido a normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura contidas na Carta de Organização dos Estados Americanos, devem, em meu juízo, entender-se aplicáveis a qualquer dos direitos civis e políticos consagrados na Convenção Americana (...)”.

Pode-se dizer que o caminho percorrido, pelo Brasil, no que diz respeito aos direitos políticos não foi o do desenvolvimento progressivo e sim, foi na direção oposta, a de uma involução ou um desenvolvimento regressivo de limitação dos direitos políticos.

2.3 A Presunção de Inocência e o Devido Processo Convencional

A Convenção Americana de Direitos Humanos assegura, no seu artigo 8º, a presunção de inocência (“enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”) e, logo em seguida, a noção de retroatividade permitida.

A presunção de inocência, expressamente prevista no Artigo 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos, no julgamento do Supremo Tribunal Federal, tomou um forte revés, porque mitigada a interpretação histórica dada ao conceito[65] em argumentos relacionados às “cobranças da sociedade civil de ética no manejo da coisa pública”[66].

Aliás, segundo Machado Horta, o conceito se apresenta, desde a primeira Constituição de 1824, só sendo suprimido, em toda a história constitucional brasileira, pela Carta de 1937[67].

Compreendeu-se que a decisão colegiada de segundo grau, nas hipóteses das alíneas do artigo 1º (“h”, “j”, “l”, “n” e “p”)[68], bastaria para atrair a inelegibilidade. Deu-se efetividadeimediata” à decisão “precária” permitindo que esta tivesse efeitos “definitivos” sobre a vida do cidadão, mesmo com a possibilidade de ser revista por órgão superior.

Mais graves, contudo, são aquelas inelegibilidades constituídas sem decisão judicial ou pela interrupção de processo administrativo sancionador, em que, sequer decisão judicial, mesmo precária, houve ainda. Nesses casos, soma-se, à violação da presunção de inocência, o “devido processo legal convencional”, porquanto, a defesa, sequer, é exigível para o resultado funesto da inelegibilidade, bastando, para tanto, o pedido de renúncia ou o pedido de exoneração/aposentadoria. Melhor dizendo, com a renúncia do parlamentar, o processo de cassação perde seu objeto e a defesa, sequer, pode ser apresentada.

Isto porque a inelegibilidade, também, passou a ser atraída no caso de “renúncia” de mandatário “desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município” “para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura” (art. 1º, inc. I, “k”). Observa-se que a inelegibilidade abarca o período remanescente do mandato. Assim, se um Senador da República renunciar no primeiro ano de seu mandato ficará, os 7 (sete) anos remanescentes, inelegível, acrescidos dos 8 (oito) anos seguidos após o término da sua legislatura[69].

 No mesmo rol, estão os Magistrados, membros do Ministério Público aposentados, compulsoriamente, por decisão sancionatória administrativa, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos (art. 1º, inc. I, alínea “q”).

Observa-se que o procedimento administrativo sancionatório não carece de chegar ao fim, não sendo, sequer, a “verdade” buscada. A inelegibilidade surge de uma presunção jure et jure da renúncia ou pedido de aposentadoria ou exoneração (Magistrados e membros do Ministério Público) como confissões de ilícitos, para, daí, gerar a cominação, em claro desrespeito à ampla defesa e ao contraditório que não poderão ser exercidos após esses atos unilaterais, em violação direta ao devido processo convencional e à presunção de inocência.

A Convenção Americana, de seu turno, repudia esta antecipação, porquanto, expressamente, afirma, no seu artigo 9º, que a presunção de inocência deve perdurar “enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”. Ora, a culpa somente será comprovada ao término do procedimento judicial (afastado o mero procedimento administrativo) e não durante, em um ponto aleatório escolhido pelo legislador como a decisão colegiada, sendo, ela, pressuposto da cominação da sanção. Do contrário, poder-se-ia afirmar que a mesma presunção de inocência vale até o momento do ajuizamento de uma ação de improbidade ou de uma denúncia criminal ou da primeira audiência, por exemplo, esvaziando-se a proteção conferida pela ideia de não se presumir o resultado antes que ele ocorra.

Marcus Vinícius Coelho, mencionando acórdão do Supremo Tribunal Federal, afasta a presunção de inocência do direito eleitoral, afirmando que “o princípio penal da presunção de inocência não se aplica ao direito eleitoral e que o trânsito em julgado é pressuposto constitucional para a suspensão dos direitos políticos – votar e ser votado – não, para a declaração de inelegibilidade”[70].

Noutro sentido, a Corte Interamericana no Caso Cabrera García e Montiel Flores v. México, acórdão de 26 de novembro de 2010, teve uma decisão relevante e, malgrado se trate de uma questão de natureza penal, o caráter sancionatório da Lei Complementar nº 135/10 permite o uso do exemplo: “Assim, uma clara evidência de culpa é um pré-requisito indispensável para a punição criminal, de modo que o ônus da prova cabe à acusação e não ao acusado”[71] (tradução nossa). E a prova de ver plena exauriente para se permitir a imposição de sanção: “O Tribunal também decidiu que, como dito no Artigo 8.2 da Convenção, este princípio exige que uma pessoa não possa ser condenada, a menos que haja evidência plena de sua responsabilidade criminal. Se contra ela a prova é incompleta ou insuficiente, não é apropriado condená-la. Senão absolvê-la”[72] (tradução nossa).

A hipótese da alínea “g” talvez tenha sido a que represente a maior dificuldade para o exercício do devido processo convencional.

É necessária uma distinção. A função de julgamento de contas do Chefe do Executivo, por exemplo, é do Parlamento local (art. 49, IX da Constituição). O Tribunal de Contas tem a função opinativa (art. 71, inciso I), a não ser, naqueles casos em que sua competência é de julgar as contas como as relativas aos convênios[73].

Pode-se afirmar que, independente do teor do parecer técnico das Cortes de Contas,  sem que haja qualquer irregularidade, o Chefe do Executivo que não conta com a maioria parlamentar corre o risco de se tornar inelegível pelo juízo estritamente político dos Parlamentos. Torquato Jardim, apreciando a matéria, após ponderar a impossibilidade de sindicabilidade judicial sobre o mérito deste ato político, dá a dimensão desconcertante desta questão[74]:

O juízo legislativo, particularmente no julgamento de contas, é o mais eminentemente político, é o que menos carece de fundamentação, porque é quando a minoría política afirma sua posição em face da maioria. É um juízo político onde se a afirma a minoría política, em face da Administração. Mudada a composição de cadeiras do Poder legislativo, não raro, sucede uma nova votação, cuja motivação, por ser juízo político, não judiciável, escapa do Poder Judiciário.

E mesmo nesta função residual, observa-se que a função dos Tribunais de Contas é julgar contas, inexistindo qualquer referência, em sua lei orgânica, acerca da consideração do dolo do agente na empreitada ímproba. Neste ponto, já se dá uma inicial dificuldade para a defesa, porque estará se defendendo, ali, sem levar, em consideração, a necessidade de mencionar a ausência de dolo e de improbidade administrativa, porque, se isso for verificado posteriormente, haverá a grave sanção da inelegibilidade.

O exame da existência de irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa é da Justiça Eleitoral, ou seja, após o fim do processo de contas, a Justiça Especializada analisará a presença de elementos sobre os quais a defesa não pode ser realizada, porque inexistente na peça exordial, seja em tomada de contas especial ou outra modalidade de prestação. E, num processo em que não se buscou a existência de “ato doloso de improbidade administrativa”.

Outra questão se situa na irregularidade[75] insanável. O Tribunal de Contas da União, por exemplo, mediante o pagamento da multa estipulada afasta a responsabilidade do ordenador, desde que haja boa-fé[76]. São consideradas, também, irregulares, as contas que contenham “infração à norma legal ou regulamentar de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou patrimonial”.

 Observa-se que, indiretamente, a violação da norma regulamentar, destarte, pode ensejar a irregularidade das contas e, assim, a imposição da inelegibilidade, o que não é admitido pela Corte Interamericana.

Isto serve para demonstrar o quão inadequada é a colheita de juízos administrativos relacionados às contas para a seara da restrição de direitos eleitorais. Ainda que o cidadão reverta a decisão, a diminuição de seu status, durante a eleição, altera, significativamente, o resultado e a normalidade do pleito. E se conseguir superar o desgaste e vier a participar do pleito, fatalmente, a decisão da Justiça Eleitoral será antes do desfecho na Justiça comum, o que levará à declaração de nulidade de seu diploma ou cassação de seu registro, sendo o afastamento da função, imediatamente, após o julgamento final pelo órgão colegiado.

2.4 As Presunções

A legislação brasileira – e isto a partir da Constituição[77], dispõe sobre inelegibilidades fundadas em presunções jure et jure. São situações objetivas atrativas da inelegibilidade a pretexto de evitar a imposição de desigualdade entre os candidatos pelos benefícios que determinada posição oferece a um dos candidatos ou em função da alteração da própria normalidade e legitimidade dos pleitos. 

Maquiavel ao falar sobre Atenas pontuava que “os cidadãos era punidos não só pelos seus crimes, mas pela sombra de um equívoco”[78]. Tal se dá no modelo brasileiro,  ainda que não cuidem de inelegibilidades cominadas – fruto de uma sanção, na prática, aqueles colhidos, nesta situação, não podem participar das eleições, havendo, em espécie, conforme Adriano da Soares da Costa, uma inelegibilidade inata.

É o caso das inelegibilidades por parentesco surgidas com a Constituição de 1891. A Constituição afirma a inelegibilidade do “cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal” e, também, de seus substitutos no período de seis meses antes do pleito, “salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição”. Faz mais, ao obrigar o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos a renunciar 6 (seis) meses antes do pleito para concorrerem a outros cargos. Repare-se que, se o cargo for o mesmo, não há necessidade de afastamento, permitindo a reeleição ao mesmo tempo em que se administra um ente federativo para a mesma posição já ocupada.

A presunção mais presente, contudo, é aquele fundamento determinante do controle concentrado esposado pelo Supremo Tribunal Federal: a necessidade de “moralização” da representação parlamentar num cenário de absoluta degradação dos costumes, pode-se dizer. Nas palavras do Min. Ayres Brito, “é chegada a hora de se dar a essa Constituição, bem chamada de cidadã e de Constituição coragem, uma interpretação condizente com esse propósito de limpeza dos costumes sobretudo eleitorais, de pureza ou decantação do regime democrata”[79].

Observa-se que o discurso de proteção do Estado Democrático e de Direito, mormente a “luta contra a delinquência”, a busca da pureza, é pedra de toque para os regimes de força, como já anteviu a Corte Interamericana no Caso Escher e outros v. Brasil[80], 6 de julho de 2009. Veja-se a relação entre a segurança pública e os direitos fundamentais e os comentários de Sérgio García Ramírez[81], em seu voto:

12. (...) Esta retórica inadmissível e perigosa – que é preciso denunciar constantemente – propõe a redução dos direitos sob o pretexto de segurança, ou ameaça com a redução da segurança ocasionada pelos direitos. Em várias ocasiões, impugnei este falso dilema, que põe em risco o Estado de Direito e os direitos fundamentais, com agravo ou perigo para todos.

Aliás, repita-se o argumento do Estado da Venezuela – devidamente afastado pela Corte Interamericana- sobre a possibilidade de se criar mais restrições para além daquelas previstas no art. 23. Nos termos do Informe da CIDH de 2009[82], adrede citado, a Sala Constitucional venezuelana opôs à Convenção Americana “(...) à sanção de fatos que atentem contra a ética e a moral administrativa” e fez prevalecer “os interesses coletivos envolvidos na luta contra a corrupção sobre os interesses particulares dos envolvidos em ilícitos administrativos[83].

E isto é sentido nas ações eleitorais, pois, como se sabe, a prova é de difícil colheita e os abusos de poder econômico, de poder dos meios de comunicação, da captação ilícita de sufrágio terminam, não raro, em situações de extrema dúvida. E, nesses hardcases, o fundamento determinante, a ratio decidendi daquele controle concentrado reina, em oposição às técnicas de restrição a direitos fundamentais como a impossibilidade de interpretações extensivas, da exigência de lei formal para imposição de gravame, etc.

Torquato Jardim, há muito, já percebia este impulso de menoscabo aos direitos políticos assentando sobre a reelegibilidade, o que vale para o direito eleitoral em geral[84]:

Mais do que isto: a cultura estabelecida na Constituição, nas leis, nos tribunais e na sociedade civil é de presunção negativa para com o candidato a cargo eletivo: toda a construção legislativa e jurisprudencial é para restringir e controlar os seus atos. Assim o prazo de desincompatibilização, as inelegibilidades por parentesco, a noção de abuso do poder econômico ou de autoridade, as limitações ao uso frequente de franquias parlamentares, e até há pouco, a irreelegibilidade. Num ambiente em que a desconfiança começa na Constituição, passa por um lei complementar de inelegibilidade, por uma lei ordinária geral com normas dúbias sobre a conduta dos agentes públicos candidatos e pela jurisprudência, até chegar à opinião pública e à mídia, a tarefa dos chefes dos executivos candidatos à reeleição e de seus conselheiros de construírem uma nova versão de democracia eletiva constitui um desafio notável.

A possibilidade da moralidade impor, per si, afastamento dos direitos políticos, como fundamento autônomo encontra eco na seguinte manifestação: “é perfeitamente possível que a moralidade eleitoral (sob o ponto de vista público e não privado) seja uma condição de elegibilidade implícita e, como tal, não sujeita à inelegibilidade (somente matéria de lei complementar) e, sim, à sanção eleitoral de cassação de registro e/ou diploma via AIRC, e sendo matéria constitucional, via AIME ou RCD, também. Neste caso, o TSE pode baixar resolução disciplinando o que entende como moralidade eleitoral, e esta terá apenas o condão de provocar sanção eleitoral de cassação de registro e/ou diploma, via AIRC em primeiro plano e, perdido o prazo desta, sendo matéria constitucional, via AIME ou RCD”[85].

A jurisprudência do TSE, igualmente forte nesta percepção, cria inelegibilidades como na hipótese da impossibilidade daquele condenado não poder participar em eleição para cuja anulação dera causa e a forma de preenchimento dos cargos na hipótese de vacância nos dois últimos anos de mandato, conforme crítica de Ruy Samuel Espíndola[86]:

Para dar concretude a nossa crítica, exemplificamos casos ocorridos no TSE: a “norma jurisprudencial”[87], antes da emergência da lei ficha limpa, que prescrevia que aquele que deu causa a anulação da eleição, ex vi do decantado princípio da proporcionalidade, não poderia participar da eleição suplementar, criando-se, com tal exegese contra constitutione, inelegibilidade por jurisprudência, e não por lei complementar (...) Questionável jurisprudência do TSE[88], para a qual nos cargos de Chefia do Poder Executivo, se a vacância de governadorias ou prefeituras, por questões ligadas a processos eleitorais, se der nos dois últimos anos de mandato, a escolha não será mais por eleição direta das urnas, mas por eleição indireta pelas casas parlamentares. Eleições em que só podem votar os parlamentares e só podem se candidatar eles mesmos. Ou seja, a liberdade de votar e de receber votos foi subtraída dos cidadãos eleitores ou cidadãos candidatos, e colocada, em termos aristocráticos, ao exercício privilegiado e diminuto de uma assembleia parlamentar que as exercerá diretamente; fará tudo entre os próprios pares, sem acesso de qualquer outro cidadão que não o parlamentar em exercício de mandato no momento da eleição parlamentar indireta.

Noutro exemplo, Adriano Soares da Costa aponta a ampliação dos termos do Artigo 41-A da Lei nº 9504/97 para alcançar terceiros, desde que com relação com o candidato, em contrariedade ao texto legal[89], bem assim da desnecessidade de individualização dos eleitores corrompidos:

Nada obstante, o Tribunal Superior Eleitoral atribuiu a norma jurídica um sentido que ela não possuía, para fazer alcançar a sanção ao candidato que tenha concordado ou anuído com o ato ilícito (...)Portanto, o TSE não apenas permite a apuração de fatos anteriores ao registro de candidatura, como também admite enquadrar no descritor da norma os atos praticados por terceiros, desde que o candidato tenha explicitamente anuído às condutas que hipotisem captação de sufrágio. A interpretação ofertada ao texto legal é amplíssima, buscando trazer para a incidência da norma o maior número possível de fatos, a justificar uma execução imediata, inexistente para as hipóteses de abuso de poder econômico ou político. (...)

Assim, da desnecessidade de identificação do eleitor que obteve a vantagem indevida para a desnecessidade de demonstração da vantagem de natureza pessoal foi um salto normal e perigoso. De fato, se formos analisar a evolução da jurisprudência do TSE na aplicação do art.41-A, veremos que cada vez mais se foi dando elastério à sua interpretação, de tal sorte a abarcar todos os ilícitos eleitorais. A norma originariamente introduzida pelo art.41-A foi modificada pela interpretação pretoriana, sendo hoje irreconhecível em sua vivência.

Em torno desse “moralismo”, a lista de presunções negativas é extensa.

Há a presunção da ocorrência de um ilícito, por exemplo, mesmo na antessala da decisão final sobre os fatos como na inelegibilidade daqueles (art. 1º, inciso I, “i”) “que, em estabelecimentos de crédito, financiamento ou seguro, que tenham sido ou estejam sendo objeto de processo de liquidação judicial ou extrajudicial, hajam exercido, nos 12 (doze) meses anteriores à respectiva decretação, cargo ou função de direção, administração ou representação, enquanto não forem exonerados de qualquer responsabilidade”. Assim, presume-se e se antecipa uma condenação que pode não ocorrer e que não tem qualquer relação com o pleito eleitoral.

Outro caso inspira atenção. Há limites para doação às campanhas eleitorais. No caso de pessoa jurídica, a doação deve obedecer ao limite de 2% (dois por cento) do faturamento do ano anterior à eleição e, em não havendo faturamento, é proibida a doação (art. 81, parágrafo primeiro, da Lei nº 9.504/97 – objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 promovida pelo Conselho Federal da OAB[90]). Se a doação ultrapassar o limite assinalado, incide multa no valor de (5) cinco a (10) dez vezes a quantia em excesso. Mais do que a multa, a empresa estará sujeita à proibição de participar de licitações públicas e de celebrar contratos com o Poder Público pelo período de 5 (cinco) anos. Seus dirigentes, por meio de procedimento próprio, poderão, inclusive, ser declarados inelegíveis por 8 (oito) anos.

Portanto, a irregularidade de doação de pessoa jurídica pode levar à inelegibilidade das pessoas físicas, nos termos da alínea “p”, Artigo 1º, inciso I, assim vazado: “p) a pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações eleitorais tidas por ilegais por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão, observando-se o procedimento previsto no art. 22;”.

Não causa espécie, somente, a derrogação da distinção entre a responsabilidade de pessoas físicas e jurídicas, mas a possibilidade de um gerente, funcionário de uma determinada empresa, mas, responsável, na estrutura orgânica, pelos pagamentos, ser apenado com uma generosa inelegibilidade de 8 (oito) anos, sem que seja imprescindível a sua participação no processo, em clara violação ao devido processo convencional[91].

Nesta esteira das presunções restritivas de direitos, está a alínea “i”, do Artigo 1º que atinge “i) os que, em estabelecimento de crédito, financiamento ou seguro, que tenham sido ou estejam sendo objeto de processo de liquidação judicial ou extrajudicial, hajam exercido, nos 12 (doze) meses anteriores à respectiva decretação, cargo ou função de direção, administração ou representação, enquanto não forem exonerados de qualquer responsabilidade;”. Observa-se que se suspende a elegibilidade de uma pessoa até que ela comprove que não tem qualquer responsabilidade, sem qualquer limitação temporal. Inobstante a norma não aludir em qual prazo, o Tribunal Superior Eleitoral já decidiu que este dispositivo não é inconstitucional ao condicionar a duração da inelegibilidade à exoneração de responsabilidade sem fixação de prazo. Ac.-TSE nº 22.739/2004.

A possibilidade dos órgãos de classe imporem, indiretamente, a inelegibilidade de alguém, também, espanta. Dispõe o Artigo 1º, alínea “m” que aqueles que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional, ficarão inelegíveis por (8) oito anos. Novamente, aqui, vale a menção à necessidade de lei para a imposição da inelegibilidade, conforme a Corte Interamericana. A expressão “leis” do artigo 30 da Convenção Americana, como adrede mencionado, foi objeto da Opinião Consultiva 6/86 de 9 de maio de 1986 e do Caso Tristán Donoso (parágrafos 27 e 32).

Tome-se um exemplo da OAB. O Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94) aponta, como sanção para as infrações ético-displinares, exclusivamente, a pena de censura (art. 36, III). Para ser excluído dos quadros da OAB, o advogado deve (art. 38): “XXVI - fazer falsa prova de qualquer dos requisitos para inscrição na OAB; “XXVII - tornar-se moralmente inidôneo para o exercício da advocacia; XXVIII - praticar crime infamante;”. Além disso, há a hipótese da aplicação da pena de suspensão por 3 (três) vezes. Sujeitam o advogado, à suspensão, várias condutas como a de “reter, abusivamente, ou extraviar autos recebidos com vista ou em confiança” (XXII) ou a “deixar de pagar as contribuições, multas e preços de serviços devidos à OAB, depois de regularmente notificado a fazê-lo” (XXIII)[92]. Em suma, o advogado que for suspenso por três vezes por reter os autos em carga ou deixar de pagar as contribuições à OAB poderá ser excluído e, assim, ficar inelegível por 8 (oito) anos.

O Conselho Federal de Psicologia conta com a pena de exclusão de seus quadros e identifica as condutas subsumíveis às hipóteses de cassação do registro. O Código de Ética do Conselho Federal de Psicologia (art. 2º) dispõe que é vedado, ao psicólogo: “i) induzir qualquer pessoa ou organização a recorrer a seus serviços;” bem como “o) pleitear ou receber comissões, empréstimos, doações ou vantagens outras de qualquer espécie, além dos honorários contratados, assim como intermediar transações financeiras;”. O Artigo 21 do mesmo diploma afirma que as transgressões dos preceitos deste Código constituem infração disciplinar com a aplicação de várias formas de penalidades nas quais se ergue a cassação do exercício profissional, ad referendum do Conselho Federal de Psicologia[93].

A bem da verdade, talvez ninguém saiba, ao certo, todas as inelegibilidades surgidas com esta alínea, pois há um sem número de “órgãos profissionais competentes” e tantas outras infrações em seus estatutos próprios, como visto. O que se pode afirmar é que muitas das exclusões chamadas de ético-disciplinares não têm qualquer relação sequer com a noção do “Estatuto da Moralidade Eleitoral”, mas, se referem, muitas vezes, a dispositivos precariamente redigidos, portanto, de duvidosa legalidade que, nada obstante, poderão gerar a inelegibilidade por 8 (oito) anos.

A indignidade do oficialato como causa de inelegibilidade é outro exemplo que espanta. Essa indignidade é declarada como pena acessória (art. 98, II do Código Penal Militar) daqueles militares condenados por vários crimes[94], dos quais se destaca a pederastia militar (art. 235 pederastia ou outro ato de libidinagem), cuja leitura do texto não exige maiores comentários sobre a inadequação de sancionar a homossexualidade com 8 (oito) anos de inelegibilidade:

Art. 235. Praticar, ou permitir o militar que com êle se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar:

Some-se, a essas presunções pro societate, onde a política chega a ser vista como coisa abjeta, infestada de malfeitores, a oscilação da jurisprudência eleitoral e a ausência de uma doutrina firme sobre a matéria. Não sem razão, clama Adriano Soares da Costa “a necessidade de se domesticar os institutos jurídicos eleitorais, tornando-os compreensíveis e minimamente seguros na prática cotidiana. Todavia, o que mais se tem assistido é o processo inverso de esvaziamento de seus significados, de um perigoso subjetivismo na aplicação das normas, cuja consequência imediata é sensação de impotência dos operadores do Direito Eleitoral, bem como de parte de uma perplexidade crescente na comunidade jurídica”[95].

Deste modo, na busca da pureza de alma e do corpo dos candidatos, o legislador se esmerou em depurar o processo eleitoral impedindo todos aqueles que cometeram ou estão sendo investigados por algum fato inidôneo “pela sombra de um equívoco”. Todavia, reconhece-se o nobre e quase infantil objetivo de incrementar a representação do regime democrático pela diminuição do universo de potenciais transgressores.

2.5 A Retroatividade

Quanto ao artigo 9º da Convenção[96], as dificuldades da Lei Complementar nº 135 se iniciam na sua aplicabilidade imediata colhendo referências e condutas passadas e, nos casos de condenação judicial, anteriormente fixadas pelo Poder Judiciário em definitivo, para se impor o alargamento do prazo da sanção de 3 (três) para 8 (oito) anos, ou seja, ofensa clara à coisa julgada.

Adriano Soares da Costa reporta-se a três hipóteses, a saber: a (i) “retroatividade da própria juridicização”; (ii) inserção de fatos passados para a incidência “no hoje da norma” e, finalmente; a (iii) ”retroatividade de efeitos dos fatos jurídicos juridicizados”. Se a norma de hoje empresta relevo ao fato de ontem, dando-lhe vida e esta implica em restrição de direito, há proibição. O autor menciona o exemplo da renúncia do parlamentar (art. 1, I “k”, LC 64/90) para afirmar que a lei atual não poderá emprestar relevo à esse ato realizado no passado, como causa geradora de inelegibilidade, podendo, no entanto, valer para as hipóteses de renúncia ocorridas após a vigência da norma nova[97].

A garantia da irretroatividade das leis é presente no ordenamento pátrio desde a Constituição Republicana de 1824, repetindo a declaração de direitos da sua congênere imperial, tendo assegurado, em seu artigo 72 e §§, com nítida influência da constituição norte-americana[98], “a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade” e, mais importante, a garantia do cidadão de ser sentenciando pela autoridade competente, em virtude de lei anterior e na forma por ela regulada, sendo que aos “acusados se assegurará na lei a mais plena defesa, com todos os recursos e meios essenciais a ela, desde a nota de culpa, entregue em 24 horas ao preso e assinada pela autoridade competente com os nomes do acusador e das testemunhas”. E, de maneira expressa, vedou, à União e Estados, a edição de leis retroativas (art. 11, parágrafo 3º[99]).

A Constituição de 1934, diploma constitucional que inovou no tratamento das inlegibilidades, por seu turno, expressamente, ressalvou nas suas Disposições Transitórias:

Art 3º - (...)§ 7º - Para as primeiras eleições dos órgãos de qualquer Poder, não prevalecerão inelegibilidades, nem se exigirão requisitos especiais, exceto as qualidades de brasileiro nato e gozo dos direitos políticos.

Enfim, aquele que fora colhido por sanção em decisão transitada em julgado, mesmo tendo sido cumprido o prazo definido no provimento jurisdicional, teve elevado, o prazo de afastamento da efetiva participação política, da sua capacidade eleitoral passiva.

O Min. Luiz Fux se valeu da noção de retrospectividade[100] em Canotilho para afastar a vedação da retroatividade da lei apontando que a elegibilidade, sendo a adequação do indivíduo a um regime jurídico, pode ser alterada a qualquer tempo, levando-se, em consideração, os efeitos dos atos jurídicos pretéritos para a definição presente do status jurídico do cidadão.

Embora se reconheça a engenhosidade do argumento, não há dúvida que houve a alteração da condição jurídica da pessoa com a imposição de excessivo gravame ao seu jus honorum nas hipóteses do aumento do prazo de inelegibilidade de 3 (três) para 8 (oito) anos, sem que houvesse qualquer ação do envolvido. Isto é, a sanção, e verdadeiramente, não se pode apontar a restrição ao direito de ser eleito senão como sanção na medida em que se limita um direito, nos casos que tal se dá por conta da ocorrência de um ilícito eleitoral, foi majorada retroativamente.

E naqueles casos em que o prazo foi fixado por decisão judicial, há ofensa à coisa julgada, sendo certo que os argumentos demasiadamente retóricos relacionados à moralidade não têm o condão de afastar o fato de que uma pessoa determinada foi condenada a uma pena posteriormente alterada e agravada por lei superveniente[101]. Mesmo assim, o Tribunal Superior Eleitoral tem entendido aplicável a legislação aqui sob comento[102].

Noutro exemplo lapidar Adriano Soares da Costa lança luzes sobre a inelegibilidade decorrente da demissão do serviço público e escancara a inadequação da conclusão do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria com irretorquível e impiedosa lógica[103]:

Ora, a perda de cargo público decorre de ato jurídico administrativo, que demite servidor público por infração funcional. O seu efeito é cortar a relação jurídica estatutária entre ele e a Administração Pública. O fato punctual esgotou-se no passado. Após a demissão não há mais relação jurídica entre a Administração Pública e o servidor público. A lei nova que apanha aquele fato extintivo (demissão) invade o passado, retroagindo, ainda que seja para aplicar os seus efeitos no presente ou futuro.

O que importa aqui, no que diz respeito à garantia judicial da retroatividade da lei, é não haver surpresa relacionada ao sancionamento, à regularidade das condutas ou aos efeitos dessas condutas no futuro. É a possibilidade de o cidadão poder levar sua vida de acordo com as legítimas expectativas geradas na lei do presente. E a retroação, caso haja, somente virá em seu favor.

A Corte Europeia dos Direitos do Homem decidiu no acórdão Jami, de 8 de junho de 1995, A 317-B, que a majoração de sanção com efeitos retroativos implica em desobediência ao princípio da legalidade[104]. Ireneu Cabral Barreto, ao lembrar acórdão da Corte Europeia, afirma que “a conversão de uma multa ou de outra medida em prisão, em condições que tornem esta mais longa que a decorrente das regras existentes na altura da prática do facto é contrária a este artigo”[105].

O próprio Canotilho usado no voto do Min. Fux salienta, expressamente, que “são inequivocamente inconstitucionais em face da Constituição: [...] as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos com efeitos retroactivos (art. 18/3)”. Canotilho, embora não empreste sinal absoluto à irretroatividade, aponta

o princípio do estado de direito, densificado pelos princípios da segurança e da confiança jurídica, implica, por um lado, na qualidade de elemento objetivo da ordem jurídica, a durabilidade e permanência da própria ordem jurídica, da paz jurídico-social e das situações jurídicas; por outro lado, como dimensão garantísticas jurídico-subjetiva dos cidadãos, legitima a confiança na permanência das respectivas situações jurídicas. Daqui a ideia de uma certa medida de confiança na atuação dos entes públicos dentro de leis vigentes e de uma certa proteção dos cidadão de mudança legal necessária para o desenvolvimento da atividade de poderes públicos[106].

A Corte Interamericana já dispôs, igualmente, sobre a segurança jurídica no Caso López Mendoza v. Venezuela[107]:

  1. A Corte considera que o marco das garantias estabelecidas no artigo 8.1. da Convenção Americana se deve salvaguardar a segurança jurídica sobre o momento em que se pode impor uma sanção. A esse respeito, A Corte Europeia tem estabelecido que a norma respectiva debe ser: adequadamente acessível; ii) suficientemente precisa e iii) previsível. (tradução nossa)

E, para Canotilho, a retroatividade admitida é aquela que não fira, de forma autônoma, uma diretriz constitucional, sem a necessidade de se recorrer à tautologia de se dizer simplesmente que “devem se proteger os direitos adquiridos por serem direitos adquiridos”. No caso concreto, é consabido, há ofensa clara e direta ao direito fundamental de participação política com a retroação havida, consubstanciado no Artigo 23 da Convenção Americana e na Constituição Federal (art. 14).

A propósito, quando Canotilho menciona a retrospectividade ou retroatividade quanto aos efeitos jurídicos, cita, expressamente, os casos das normas modificadoras de uma profissão, regras de promoção nas carreiras públicas, normas que regulam relações jurídicas contratuais duradouras e normas dos regimes previdenciários. São todos casos em que preexiste uma relação jurídica e esta se prolonga no tempo, diferentemente dos direitos políticos. Adriano Soares da Costa também viu esta anomalia e é peremptório ao afirmar que “não há a característica continuativa do enquadramento do cidadão na legislação eleitoral”[108].

Mais do que isso, o alerta do autor luso afasta, por completo, sua indevida utilização: “Todavia, a proteção do cidadão procura-se por outros meios, designadamente através dos direitos fundamentais – saber se a nova normação jurídica tocou desproporcionada, desadequada e desnecessariamente dimensões importantes dos direitos fundamentais, ou se o legislador teve o cuidado de prever uma disciplina transitória justa para as situações em causa”[109]. A conclusão do Min. Fux, ao que tudo indica, implica em atribuir, à obra de Canotilho, uma conclusão que não lhe pertence.

Exatamente por isso, é vazio, de todo sentido, o esforço hermenêutico de afirmar-se a inelegibilidade como um regime jurídico e que, assim, poderia ser alterado ao alvitre do legislativo, sem se olvidar a afronta aos direitos individuais. Em rigor, a interpretação do Supremo afirma que não há direitos a serem defendidos, porque aquilo que se busca não é um direito propriamente dito (direito à elegibilidade), pois integrante de um regime jurídico que pode ser alterado[110]. Altera-se a forma para poder se fustigar o conteúdo, quando o adequado se assenta no reconhecimento da restrição e em seu enfrentamento sob a luz da proporcionalidade.

Nada obstante, no Brasil somente a lei pode obrigar a fazer ou deixar de fazer. Nesta medida, o direito sempre será constituído por uma norma, sendo fato ínsito à sua natureza. Em outras palavras, não há direito sem norma que o preveja. Isto significa que todo direito se enquadra num regime legal e, portanto, a própria existência do conceito de direito adquirido cai por terra. Assim fazendo, afirmando-se este direito fundamental como integrante de regime jurídico, afasta-se o ônus argumentativo de sua restrição, cabendo, nesta vala, toda sorte de maldades indisputadas.

Há uma inequívoca ab-rogação do direito fundamental de participação política, por meio de argumentos recorrentes à uma noção bastante fluída de moralidade também. Observa-se, aqui, a moralidade como forma de se solapar o direito fundamental de ser eleito, retirando-se, do sufrágio universal, a prerrogativa de escolha de seus candidatos, em clara subversão ao funcionamento normal das democracias representativas cuja equação erro/acerto integra o aprendizado democrático e a depuração do sistema.

A preponderar o argumento do Supremo Tribunal Federal, sobrepõe-se, à elegibilidade, qualquer requisito que poderá ser criado, a qualquer tempo, obedecida a anterioridade anual do Artigo 16, buscado no passado, porque será mera alteração de um regime jurídico que não socorre o direito adquirido e a irretroatividade da lei, nem mesmo, a coisa julgada.

A possibilidade de manejo malicioso das exceções para contaminar específicas candidaturas abre-se com uma perspectiva clara e se vulnera o conceito da exclusividade da retroatividade convencional benigna.

Os contornos do artigo 9º da Convenção, segundo a Corte Interamericana, não deixam dúvida quanto à inconvencionalidade da majoração mencionada face à sua superveniência ao fato, como se retira do precedente (Caso Vélez Loor vs. Panamá, 23 de novembro de 2010)[111].

Sob outro lume, imerece prosperar o argumento de que a garantia da presunção de inocência somente se aplica aos procedimentos de natureza criminal. Como já visto, o devido processo convencional se impõe como limitação à ação do Estado com vistas à turbação do patrimônio, da vida e da liberdade do cidadão, em qualquer área e em ingerência de qualquer natureza, porque o que importa é a imposição do poder estatal sobre a pessoa, independente da roupagem desta intervenção, como se colhe do Caso García Asto e Ramírez Rojas vs. Peru, acórdão de novembro de 2005 : “O 187.Tribunal tem assinalado que no Estado de Direito, os princípios da legalidade e irretroatividade preside,  a atuação de todos os órgãos do Estado, em suas respectivas competências, especialmente onde o exercício do seu poder punitivo está em questão”[112]. (tradução nossa)

E neste caso, também, se tocou a retroatividade, pormenorizando-a para incluir a impossibilidade do aumento de pena posterior para fatos pretéritos: “191. De acordo com o princípio da não retroatividade da lei penal desfavorável, o Estado não deve exercer o seu poder punitivo, aplicando de modo retroativo leis penais que aumentem penas, estabeleçam circunstâncias agravantes ou criem figuras agravadas do delito. Este princípio também implica que uma pessoa não pode ser apenada por um fato que não era delito ou não era punível ou objeto de perssecução quanto foi cometida”[113]. (tradução nossa)

Noutra hipótese, igualmente significativa, se cuida da superveniência de lei mais benéfica com a alteração, pela edição de um novo código penal, da pena do crime de difamação de prisão com a possibilidade de apenação alternativa em multa, em que o Estado do Peru se negou, durante um período, a reconhecer a incidência da retroatividade benigna a Ricardo Canese. Deste modo, reconheceu-se a violação pelo Estado do Peru do Artigo 9º da Convenção Americana[114].

A Corte Interamericana tem decidido desta forma ao afirmar que ambas as sanções (administrativa e penal), como dito, “implicam menoscabo, privação ou alteração dos direitos das pessoas como consequência de uma conduta ilícita”[115]:

Neste precedente (Caso Baena Ricardo e outros v. Panamá, 2 de fevereiro de 2001[116]), discutia-se a convencionalidade da Lei nº 25 do Estado do Panamá que determinou a demissão de servidores que viessem a participar de manifestações em desfavor do governo, bem assim daqueles que já haviam tomado parte nos eventos[117].

Esta lei permitiu a demissão de 270 (duzentos e setenta) trabalhadores por fatos passados, ou seja, trata-se de um diploma normativo que não existia ao tempo das manifestações. Em rigor, a lei combatida permitiu que a vida pregressa dos trabalhadores viesse em seu desfavor para lhes retirar o emprego pela participação em atos políticos contra a “democracia e a ordem constitucional”. Saliente-se que, ao tempo das reuniões, tais condutas não eram consideradas ilícitas ou geradoras de demissão. O Estado do Panamá foi condenado ao pagamento de todos os salários impagos e demais direitos trabalhistas, à reintegração aos cargos e ao pagamento de dano moral.

A semelhança com o caso eleitoral é evidente, porque, em ambos os casos, as condutas não gerariam a sanção majorada de 8 (oito) anos num caso e a demissão em outro. A lei nova pretendeu extrair efeitos de fatos ocorridos no passado para causar um gravame, o que foi considerado inconvencional pela Corte Interamericana. E aqui é ainda mais evidente a inclusão dos demitidos num regime jurídico trabalhista.

Os interregnos, de seu turno, para a contagem deste prazo, superam, em muito, o prazo máximo de 8 (oito) anos fixado na lei em alguns casos.

2.6 A Contagem dos Prazos de Inelegibilidade

A inicial objeção se refere à uniformidade do prazo para qualquer tipo de ofensa. Foge do razoável, impor 8 (oito) anos de forma retilínea a todas as formas de inelegibilidade, sem qualquer relação com a ofensa em si.

Esta necessidade está presente em alguns precedentes do Comitê de Direitos Humanos (sistema ONU) ao tratar do conteúdo do Pacto dos Direitos Civis e Políticos.

Com efeito, no Caso Rolandas Paksas versus Lithuania de junho de 2011, restou decidido pelo Comitê de Direitos Humanos que a desqualificação dos direitos políticos por toda a vida de um candidato atentava contra o artigo 25 do Pacto[118].

Noutro precedente, Dissanayake, Mudiyanselage Sumanaweera Banda v. Sri Lanka, março de 2005, o Estado não conseguiu demonstrar, de forma objetiva e razoável, a relação entre a ofensa e o tempo de inelegibilidade de 7 (sete) anos após o cumprimento da pena[119], sendo condenado pela violação do artigo 25 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos.

De acordo com a alteração promovida pela Lei nº 135/10, os interregnos para a contagem do prazo de inelegibilidade superam, de seu turno, em muito, o prazo máximo de 8 (oito) anos fixado na lei, em alguns casos, como será visto.

 Observe-se o conteúdo das alíneas “e” e “l” do art. 1º, inciso I, da Lei Complementar nº 135/10[120].

Na hipótese de condenação criminal, a inelegibilidade surge com a decisão colegiada ou com o trânsito em julgado (alínea “e”), mas, o prazo se prolonga para 8 (oito) anos após o cumprimento da pena. Em realidade, há um prazo indefinido entre a condenação colegiada/trânsito em julgado e o cumprimento da pena ao que são acrescidos 8 (oito) anos. O prazo de inelegibilidade deixa, então, de ser fixado em lei para tomar, como marco, uma situação de absoluta variabilidade que, necessariamente, irá superar aquela apenação, levando, em consideração, o prazo de duração do processo.

Isto significa que a interposição de recurso pela parte impende em aumento de sua pena, porque o trânsito em julgado vai se lançar para o futuro em data incerta e, destarte, o cumprimento da pena. O Min. Cezar Peluso, nos debates do julgamento da ADIn sobre a Lei da Ficha Limpa, acentuou (acórdão, fls. 177):

Esse raciocínio transforma uma garantia constitucional primária da área processual, que é o direito ao recurso, num empecilho jurídico, num agravamento da pena, num agravamento da sanção. Isto é, aquilo que o sistema concebe como garantia do cidadão se transforma em causa de exarcebação de restrição de direitos.

O simples exercício da ampla defesa e do devido processo legal (art. 5º, inc. LV) no seu sentido procedimental, deste modo, redunda em automático e severo prejuízo à parte, porquanto, o início do prazo de inelegibilidade de 8 (oito) anos somente vai começar no cumprimento da pena e esta somente será adimplida, quando o processo chegar a seu termo.

Ademais da violação do devido processo convencional, a variabilidade do tempo da condenação atenta, claramente, contra a noção mais singela de previsibilidade e de segurança jurídica.

3.A LEI DAS INELEGIBILIDADES

Como visto, a interpretação dada ao artigo 23 da Convenção pela Corte Interamericana aponta numerus clausus as causas para o afastamento dos direitos políticos, exclusivamente, os seguintes fatores: “(...) idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação por juiz competente em processo penal”.

Em cotejo com a lei brasileira que impõe a inelegibilidade, observa-se o surgimento de numerosas e criativas formas de afastamento do direito de ser votado e de participação política por meio do exercício de mandato popular. São muitas, as situações ensejadores de inelegibilidade pela Lei Complementar nº 64/90.

Todas as inelegibilidades fundadas em critérios outros que esses listados pelo documento convencional violam o devido processo convencional, porquanto, restringem um direito de modo e forma não autorizados pela Convenção Americana.

Também é de ressaltar que, a única inelegibilidade, fruto de sanção pela ocorrência de um ato ilícito decorre, exclusivamente, de ilícito penal e pelo juiz competente. A menção específica ao juiz competente permite afastar todos os empecilhos à capacidade eleitoral passiva com supedâneo em sanções administrativas ou políticas.

Embora plausível o fim último; a virtude no regime democrático ou a boa governança, estas não podem ser impostas pela restrição desmedida ao universo de candidatos. Esse bem comum não se coaduna com o funcionamento de uma sociedade democrática ou com a limitação permitida de direitos políticos (art. 23), antes pelo contrário, trava o seu florescimento. É preciso admitir e conviver com o fato inerente ao regime democrático: ao povo, é dado o direito de escolher mesmo maus governantes.

Noutra dimensão, a restrição possível é aquela restrição proporcional, ou seja, aquela que é adequada, necessária e proporcional. A Lei das Inelegibilidades não soa sequer adequada, porque não promove a pureza alardeada, não sendo capaz de “fomentar os objetivos visados”.

Segundo dados da Transparência Internacional sobre a percepção da corrupção, em 2013, o Brasil ficou em 72º (nota 43) de uma lista de 175 países[121]. Relevante é que em relação a 2012 (69º de 174 países, nota 49) e 2011 (73º de 182 países, nota 3.8[122]) não houve alteração significativa neste quadro, o que demonstra, em princípio, não ter havido qualquer alteração nesta percepção, em face do recrudescimento da legislação eleitoral.

E talvez por esta constatação, ou seja, da ausência de relação entre a corrupção e a limitação do universo de eleitores por critério morais - na Convenção Interamericana Contra a Corrupção inexiste qualquer medida limitadora dos direitos políticos[123]. A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção[124], de seu turno, em seu artigo 7. 2 assinala que os países considerarão “a possibilidade de adotar medidas legislativas e administrativas apropriadas” “(…)a fim de estabelecer critérios para a candidatura e eleição a cargos públicos”. No entanto, na outra remissão ao tema, afirma a possibilidade de instituição da inabilitação para o cargo público (art. 7. a) para as pessoas condenadas pelos delitos descritos na convenção[125], ou seja, está prevista tão somente, como causa para a inelegibilidade, a condenação por juiz criminal.

Além do exposto até aqui, a ausência de qualquer menção à possibilidade de restrição dos direitos políticos para a diminuição da corrupção nos tratados internacionais sobre a matéria, aliado aos limites materiais do artigo 23 da Convenção Americana, demonstram tanto à inadequação de tal medida, como sua inconvencionalidade.

Pode-se, assim, afastar por inconvencionais[126] e de “dissonância”, de pronto:

  1. A linearidade do prazo de inelegibilidade, ou seja, a ausência de relação entre a ofensa e o prazo de 8 (oito anos);
  2. O procedimento para a comprovação das inelegibilidades pela impossibilidade de chamamento coercitivo de testemunha ou perito (art. 5º);
  3. As inelegibilidades emanadas de autoridades administrativas (art. 1º, inc. I, alíneas “g”, “m”, “o” “q”[127]);
  4. As inelegibilidades advindas de autoridades políticas (art. 1º, inc. I, alíneas “b”, “c”, “g”, “k”[128]);
  5. As inelegibilidades geradas por presunção[129] (art. 1º, inc. I alíneas “i”,  inc. II, 1 a 16, alíneas “b”,“d”,”f”,”h”,”g”,”i”,”j”[130]);
  6. As inelegibilidades fundadas em condenação judicial civil (art. 1º, inc. I, alíneas, “c”,”d”,”g”,”h”,”j”,“l”, “n”, “p”[131]);
  7. aquelas inelegibilidade violadoras da coisa julgada ou em retroatividade maligna.

4. CONCLUSÃO

O cruzamento da lei brasileira com os parâmetros mínimos de proteção aos direitos políticos emanados da Convenção Americana redunda em afirmar o cabal descumprimento da norma local dos limites para as restrições desses direitos humanos. O legislador, no afã e na sofreguidão de emprestar legitimidade, normalidade, além de assegurar a igualdade entre os postulantes atentou, claramente, contra este cenário internacional mínimo de proteção, restringindo, não apenas os direitos subjetivos dos diretamente implicados, mas atingindo o direito de votar e de escolha dos cidadãos, tolhidos de fazer valer suas opções – por piores que pareçam a quem quer que seja.

A pretensão do ordenamento eleitoral brasileiro é sem precedentes. A pretexto do direito fundamental à boa Administração, tal qual inscrito na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (art. 41) (numa perspectiva bem mais elaborada daquilo apresentado no controle concentrado da lei sob discussão), ou da defesa de uma mal explicada moralidade, terminou-se por reduzir dramaticamente os direitos políticos.

Há uma conclusão essencial neste trabalho: não há qualquer relação entre a boa Administração (inclua-se aqui a moralidade no exercício das funções públicas) e a restrição de direitos políticos. Pelo contrário, nenhum tratado internacional sobre corrupção leva em consideração a necessidade de tolhimento dos direitos políticos como meio para sanear a integridade de suas instituições. Segundo Aragon, além do Brasil, somente dois países na América Latina tem como requisito a moralidade (vida honesta) para o exercício do sufrágio: México e El Salvador[132].

A lei brasileira, com o objetivo de atingir este estágio ideal na República, tentou aprisionar em conceitos objetivos aquelas pessoas indesejáveis para a participação em eleições. Para as eleições de 2014, estima-se como inelegíveis (“pessoas potencialmente inelegíveis”), fichas-sujas, o surpreendente número preliminar de 346.742 (trezentos e quarenta e seis mil, setecentos e quarenta e dois) pessoas[133]. Ao fazê-lo, diminuindo, sobremaneira, o universo de candidatos e promovendo o expurgo de centenas de milhares de pessoas de seus direitos políticos terminou por afastar, igualmente, o direito do voto dos cidadãos e da livre escolha de seus representantes na tríplice dimensão dos direitos políticos apresentada.

No caso sob lume, a pretensão de tutela moral da sociedade pela escolha elitista do rol de candidatos ou num direito difuso à boa governança, além de não impedirem a malversão dos dinheiros públicos ou a má qualidade do regime, surrupiam o aprendizado ínsito ao processo eleitoral, acomodando o eleitor com mais certezas que a própria realidade permite. E revive a possibilidade de suspensão de direitos por incapacidade moral, herança do artigo 71 da Constituição de 1891, inspiração do Conselho Moral Republicano (art. 274 da Constituição da Venezuela[134]) e dos exemplos do período de exceção. Cria-se a ideia de “periculosidade” eleitoral[135].

É preciso admitir e conviver com o fato inerente ao regime democrático: ao povo, é dado o direito de escolher mesmo maus governantes.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Marcelo Ramos Peregrino Ferreira

advogado, autor do livro “O Controle de Convencionalidade da Lei da Ficha Limpa: direitos políticos e inelegibilidades”. Editora Lumenjuris, RJ, 2015.Mestre em Direito pela PUC/SP, Ex-juiz TRE/SC 2012-2014.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos