Reformas do Código de Processo Civil.

Repercussões no direito material da possibilidade de pronúncia da prescrição de ofício no direito processual

21/10/2015 às 11:48
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Busca-se nesse trabalho investigar se houve efetiva alteração da natureza jurídica da prescrição após a reforma processual realizada pela Lei 11.280 de 2006, que autorizou a pronúncia, de ofício, do instituto prescricional.

INTRODUÇÃO

            O Direito Processual Civil vem passando nos últimos anos por uma série de reformas cujo escopo básico e essencial é a promoção da celeridade e economia processuais, princípios e objetivos basilares do Direito Processual compreendido de um modo geral. Neste contexto, foi editada a lei 11.280, de 16 de fevereiro de 2006, que, dentre outras mudanças, perpetrou a alteração do § 5º do art. 219 do Código de Processo Civil, que, a partir de então, determinou a decretação de ofício da prescrição por parte do Juiz, independentemente da natureza os direitos objeto da demanda judicial, ao contrário da previsão anterior de tal dispositivo, que só admitia a pronúncia prescricional de ofício quando não se tratasse de direitos patrimoniais.

            Destarte, surgiram inúmeras discussões acerca das repercussões da referida alteração legislativa no ramo jurídico como um todo, uma vez que a possibilidade de pronúncia da prescrição, independentemente de manifestação das partes, quebra toda uma tradição doutrinária e jurisprudencial acerca do instituto em epígrafe. Nesse diapasão, resta indagar se a possibilidade de declaração de ofício da prescrição repercutiu de alguma forma no regime jurídico do referido instituto, alterando a sua natureza jurídica, transmudando a aplicabilidade das causas de interrupção, suspensão e impedimento à mesma bem como a faculdade de renunciá-la expressa ou tacitamente.

            Responder aos questionamentos supra aludidos manifesta-se de fundamental importância para a compreensão do atual contexto jurídico-processual pátrio, eis que o instituto da prescrição possui efeitos práticos diretos e substanciais no processo, por ser causa de extinção do processo com resolução do mérito, conforme inteligência do art. 269, IV, do CPC, implicação que, por si só, tem consequências drásticas para a as partes.       

1: PRESCRIÇÃO: CONCEITO, MODALIDADES E LIMITES

1.1. Conceito e modalidades

O tempo exerce função de relevo no mundo jurídico. Desde a questão da eficácia de uma lei, até condições de termo inicial e final de negócio jurídico, como na vida biológica humana, o direito sofre inferências temporais no seu exercício.

A prescrição é resultado da inércia do exercício de um direito durante dado lapso temporal, ocasionando a perda da pretensão de exigir que o Estado tutele determinado direito violado. Roberto Gonçalves sobre o tema salienta que:

Pode-se dizer, pois, que a prescrição tem como requisitos: a) a violação do direito, com o nascimento da pretensão; b) a inércia do titular; c) o decurso do tempo fixado em lei (GONÇALVES, 2006, p. 470).

            Entretanto, a prescrição pode ser tanto extintiva como também aquisitiva. No que concerne à extintiva, alvo deste trabalho, há a extinção da pretensão a qual se caracteriza como o poder de se exigir do Estado o cumprimento de um dever jurídico violado, com aparo no direito posto. Com efeito, o direito de ação por si, sempre existirá, mesmo decorrido o prazo prescricional estabelecido em lei, haja vista que a ordem jurídica o legitima como indisponível à luz do principio da inafastabilidade enunciado na Constituição. Segundo Pereira a lei, ao mesmo tempo em que reconhece a pretensão, estabelece que a mesma deva ser exigida em determinado prazo, sob pena de perecer.

            Dessa forma, a impossibilidade de se exercer a pretensão não se confunde com a determinação do mérito, uma vez que o mesmo não foi examinado, não obstante o conhecimento da prescrição conduza a extinção do processo com resolução de mérito. Talvez este seja um mal necessário adotado pelo legislador ao admitir tal perspectiva, haja vista que a prescrição é um instrumento que possibilita a garantia da paz social e a segurança da ordem jurídica, vindo o legislador atribuir como estabelece o código processual, sua natureza de resolução do mérito. Sérgio Pinto Martins justifica a posição dos legisladores asseverando que:

A prescrição, assim como a decadência, é tema de direito material e não de direito processual. O reconhecimento da prescrição gera efeitos processuais, isto é, sua operacionalização. Entretanto, trata-se de direito material, tanto que é previsto em normas que versam sobre direito material, como no Código Civil, no Código penal, no código tributário, na CLT (art. 11) e não no CPC. A prescrição envolve o decurso de prazo, enquanto o processo é concernente à atividade do juízo ou das partes (MARTINS, 2006, p. 46).

            No que tange a prescrição aquisitiva ou usucapião esta é uma modalidade prescricional que visa punir o proprietário de um direito real em razão da sua inércia no que concerne o exercício do seu direito de propriedade. Nota-se que a prescrição não é apenas a perda da pretensão perante a jurisdição, mas também pode originar a aquisição de um direito a outrem em detrimento de seu proprietário em razão da inércia do exercício por este.  

            1. 2.  Limites à prescrição

             Embora a prescrição tenha suas finalidades devidamente delimitadas, existe a possibilidade de sua antecipação, paralisação ou até mesmo sua procrastinação. Esta perspectiva assume crucial relevância ao que atine a garantia dos direitos em razão de fatos ou circunstâncias ocorridas que obstam o exercício efetivo da pretensão, ocasionados por circunstâncias alheias a vontade de seu titular, acarretando a prescrição. O código civil, no que se refere à prescrição, enumera nos arts. 197, 198, 199 e 202, as causas ou circunstâncias que suspendem, impedem e interrompem o curso do lapso necessário a prescrição. São verdadeiros elementos que influem no prazo prescricional em razão da natureza dos protagonistas da relação jurídica – as ditas causas subjetivas (ou fatos ocorridos no mundo jurídico) e as causas objetivas.  Nas lições de Roberto Gonçalves compreende-se a diferenciação entre causas suspensivas e impeditivas:

Se o prazo ainda não começou a fluir, a causa ou obstáculo impede que comece (ex: a constância da sociedade conjugal). Se, entretanto, o obstáculo (casamento) surge após o prazo ter se iniciado, dá-se a suspensão. Nesse caso, somam-se os períodos, misto é, cessada a causa de suspensão temporária, lapso prescricional volta a fluir somente pelo tempo restante. Diferentemente da interrupção, que será estudada adiante, em que o período já decorrido é inutilizado e o prazo volta a correr novamente por inteiro. (GONÇALVES, 2006, p. 477).

Assim, as causas impeditivas da prescrição são justamente as circunstâncias que impedem que seu curso inicie e, as suspensivas, por seu turno, são as que paralisam temporariamente o seu andamento. Portanto, ultrapassado o fato que a suspende, a prescrição continua o seu curso, computando o tempo decorrido antes dele, tal causa funda-se, nos ensinamentos de Diniz, “em um status da pessoa, individual ou familiar, atendendo razões de confiança, amizade e motivos de ordem moral (DINIZ, p. 341, 2003)”. Por fim a interruptivas são as que prejudicam a prescrição iniciada, de modo que o seu prazo reinicia a partir da data do ato que a interrompeu ou do último ato do processo que a interromper. Vistos os elementos conceituais básicos da prescrição, passa-se ao exame da alteração legislativa propriamente dita bem como seus reflexos iniciais no ordenamento jurídico pátrio.

2. DA ALTERAÇÃO DO REGRAMENTO LEGAL DA PRESCRIÇÃO E DA CONTROVÉRSIA JURÍDICA OCASIONADA

2. 1. Da alteração legislativa

A inovação introduzida pela Lei 11.280/2006 trouxe consigo inúmeras controvérsias em torno do instituto da prescrição, uma vez que perpetrou substancial mudança no tratamento do referido instituto jurídico. Antes da alteração legislativa, a decretação da prescrição de ofício pelo Juiz só ocorria em casos de direitos não patrimoniais, partindo-se do pressuposto de que estes são indisponíveis; agora, pela interpretação literal da norma, a prescrição será declarada em todo e qualquer caso submetido ao Poder Judiciário, independentemente da natureza das questões debatidas em Juízo.

            Os civilistas e processualistas pátrios até o momento não chegaram a um denominador comum acerca das repercussões da mudança do § 5º do art. 219 do CPC no Direito material pátrio, sobretudo no Direito Civil. Afirmam alguns que o instituto passou a ter natureza de ordem pública, outros, porém, sustentam que a prescrição não pode ter seu regime jurídico alterado em razão de uma alteração no diploma processual civil, razão pela qual permanece a prescrição tendo natureza privada, de interesse exclusivo das partes, motivo pelo qual alegam a inconstitucionalidade da alteração com fulcro em determinados fundamentos, dentre os quais o de maior destaque é o princípio da ampla defesa, de previsão constitucional.

Destarte, tendo como parâmetro a indiscutível importância do instituto da prescrição para o dia a dia forense, intenta-se aprofundar-se as devidas investigações acerca do mesmo, objetivando, assim, propor possíveis alternativas para o deslinde das constantes controvérsias surgidas após a vigência da Lei 11.280, de 16 de fevereiro de 2006, que em nada contribuem para o crescimento do Direito bem como para a prestação jurisdicional pátria.

2. 2. Da controvérsia jurídica oriunda da alteração legal

            Perpetrada a alteração do § 5º do art. 219 do CPC, celeuma imediata surgiu acerca da possível mudança de natureza jurídica do instituto da prescrição. Com posições diametralmente opostas quanto ao assunto em epígrafe, vários doutrinadores manifestaram-se acerca do tema. Lívia Heinzmann, por exemplo, asseverou que:

Desse modo, seja por harmonizar-se com a natureza pública do instituto e, sob esse aspecto, atribuir verdadeira efetividade aos fins a que se destina, seja por se confirmar enquanto matéria de ordem pública e que, como tal, pode - e leia-se “deve” - ser declarada de ofício em qualquer grau de jurisdição, bem como, por fim, preservar por completo o direito ao contraditório e à ampla defesa, o reconhecimento de ofício da prescrição veio, em última análise, tornar congruente o instituto com as suas próprias razões de ser, razão pela qual se afigura salutar a alteração em comento, a despeito das severas críticas aventadas pela doutrina. (HEINZMANN, p. 14).

                        Por outro lado, houve também autores que não apenas divergiram com a festejada alteração da natureza jurídica do instituto, como também advogaram posição contra a mudança por si só, a exemplo de André Luiz Camargo Mello, que afirma que:

Ousamos, pois, nesta linha de raciocínio, interpretar a nova lei como retrocesso no campo de defesa vez que ao autor da demanda é facultado o direito de alegar em desfavor do demandado toda sorte de argumentos relativos a situações que, em tese, reclamam aparo judicial, e mesmo que totalmente desprovidas de fundamento jamais seriam dirimidas, posto que qualquer alegação por parte do demandado sucumbiria ao instituto da prescrição e sua declaração ex officio. (MELLO, pag. 7).

                        Dessa forma, é possível verificar manifestações doutrinárias absolutamente divergentes: a primeira entende que a prescrição civil passou a ser matéria de ordem pública; por sua vez a segunda sustenta que a prescrição continua mantendo sua natureza jurídica de matéria privada, portanto dependente de alegação da parte beneficiária do decurso do lapso temporal. Dissertando sobre o assunto na área trabalhista, alguns autores também expuseram posições de extrema importância para a presente pesquisa, eis o que esclarece Eduardo Rockenbach Pires:

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A prescrição, de acordo com a nova regra do § 5.º do art. 219 do CPC, deve ser declarada de ofício pelo juiz, Isso não é pouco. Ao dizê-lo, o legislador transformou o instituto da prescrição, de exceção em objeção. A prescrição deixa de ser matéria que deve ser alegada pelo réu e passa a exigir um pronunciamento de ofício do magistrado, assim como ocorre com as questões relativas às condições da ação e pressupostos processuais (CPC, art. 267, § 3.º) (PIRES, 2008, p. 25).

            Vê-se, nesta manifestação, que o autor sustenta a alteração radical da natureza do instituto da prescrição, tese esta também sustentada também por outros autores de escol.

Assim, fica evidente que a doutrina pátria não é uníssona no que tange à prescrição de ofício, utilizando-se de fundamentos dos mais diversos, tanto na seara estritamente civil, como em outras áreas, a exemplo do âmbito trabalhista.

3. DOS FUNDAMENTOS UTILIZADOS PELAS DUAS CORRENTES EXISTENTES

3. 1. Da prescrição como matéria de ordem pública

Para parte da doutrina, o fato da prescrição poder ser pronunciada de ofício transformou radicalmente sua natureza jurídica, tendo passado a se configurar em objeção processual, matéria de ordem pública, cognoscível de ofício pelo Estado-juiz. Com efeito, declarar-se a prescrição, de ofício, independentemente de requerimento das partes, possui efeitos processuais consideráveis, uma vez que o próprio Estado passa a controlar pretensões outrora de cunho eminentemente privado. Garcia, nesta linha de raciocínio, informa que:

A Lei 11.280/2006, no caso, certamente por ser a prescrição matéria de ordem pública, passou a determinar que seja reconhecida, de ofício, pelo juiz. A prescrição, visando à segurança jurídica, estabelece limite temporal para a exigibilidade dos direitos violados, sendo de interesse geral para a coletividade. (GARCIA, 2014, pág. 1194).

                Assim, segundo essa linha de pensamento, a declaração da prescrição passou a interessar a toda a sociedade, e não apenas às partes, em caráter particular. À sociedade, elemento inerente ao Estado, interessa que os conflitos cuja pretensão já esteja fulminada pela prescrição sejam solucionados da forma mais rápida possível. Com efeito, essa corrente de entendimento equipara o status jurídico da prescrição ao nível das condições da ação e dos pressupostos processuais do processo, que devem ser reconhecidos pelo Estado-Juiz a qualquer tempo, extinguindo-se a relação processual por expressa determinação legal.

            Essa corrente utiliza-se, outrossim, de argumentos de cunho constitucional para defender a substancial mudança de natureza jurídica da prescrição; trata-se dos princípios da legalidade, devido processo legal e razoável duração do processo.

            Defende-se a natureza de ordem pública e, por corolário, a aplicação irrestrita do § 5.º do art. 219 do CPC aos processos judiciais com fulcro no princípio da legalidade. O raciocínio utilizado é o seguinte: se o regime jurídico que regula a aplicação do instituto da prescrição prevê sua pronúncia de ofício, impõe-se a necessidade de respeito ao Direito vigente, à norma posta, à lei.  A aplicação de ofício da prescrição, segundo os defensores de sua natureza pública, não é faculdade dada ao magistrado, mas seu dever legal, imposto pelo Estado de Direito. Segundo afirmam, a interpretação da norma deixa evidente que não se trata de opção posta na lei, mas de imposição, uma vez que o § 5.º do art. 219 do CPC utiliza o verbo no imperativo. Neste diapasão, vale destacar o que asseverou o professor Manoel Antônio Teixeira Filho:

O Juiz declarará (é um seu dever, portanto) por sua iniciativa, a prescrição. Até então, o Juiz somente poderia pronunciar ex officio a prescrição no caso de direito não-patrimonial. Em consequência, foi expressamente revogado o art. 194 do Código Civil, segundo o qual o Juiz não poderia suprir, de ofício, a falta de alegação de prescrição (TEIXEIRA FILHO, 2006, p. 298).

                Destarte, a lei deve ser aplicada pelo Juiz em razão do simples fato de que o Direito positivo determina.

            O princípio do devido processo legal também serve de fundamento à mudança de natureza jurídica da prescrição, como base em razão de ordem jurídico-constitucional, a seguir exposta. Trata-se da mudança do regime processual da prescrição. Conforme afirmam alguns estudiosos do direito, embora a prescrição seja instituto de direito material, ela é aplicada, de fato, no processo, uma vez que se trata de instituto que fixa perda da pretensão do autor em face do réu (art. 189 do Código Civil), ou seja, o fim da exigibilidade judicial de determinado direito violado. Pois bem, com a alteração do panorama processual da prescrição (Lei 11.280/2006), procedeu-se inexoravelmente a mudança da natureza jurídica do referido instituto, que deixou de ser matéria de defesa, mais precisamente prejudicial de mérito, e passou a ter natureza de matéria de ordem pública (CPC, art. 267, § 3.º). Independentemente de qual subespécie seja, o indubitável é que se a prescrição pode ser pronunciada de ofício pelo Juiz, ela passou a ser matéria de ordem pública, não mais sujeita a preclusão.

            Com base nesta nova natureza jurídica da prescrição, afirma-se que não conhecê-la de ofício fere o devido processo legal, uma vez que não se observou previsão legal que regulamenta o processo judicial pátrio. De acordo com esta tese, o Juiz, como condutor de um processo que possui regras claras nos diplomas processuais, não tem poderes para optar por aplicar ou não um dispositivo de lei em vigor que regulamenta matéria de ordem pública. Neste contexto, Eduardo Rockenbach Pires também observa que

Como se expôs em linhas antes, a prescrição é uma só, e constitui um instituto inteiramente regulado pelo Direito comum. Cabe aos operadores do Direito do Trabalho aplicá-la ao processo especializado, e pronunciá-la de ofício, até porque, se assim não fizerem, não existirá “outra” prescrição a aplicar. Não mais existe no Direito braseiro, frise-se, a prescrição que dependa de alegação do devedor (PIRES, 2008, p. 26).

            Por fim, outro fundamento utilizado por parte da corrente que advoga a aplicação irrestrita do § 5º. do art. 219 do CPC aos processos judiciais é a previsão contida no inciso LXXVIII do art. 5º. da CF/88. Segundo os defensores deste argumento, como o objetivo do novel dispositivo é acelerar a tramitação de processos, referida alteração legal está em conformidade com a Constituição e, em vista disso, deve ser plenamente aplicado aos processos judiciais brasileiros, uma vez que a mudança do regime jurídico da prescrição tem respaldo constitucional. Dessa forma, a aplicação de ofício da prescrição, sendo medida com respaldo constitucional, corrobora com a ideia segundo a qual a prescrição teve sua natureza jurídica profundamente alterada.

3.2. Da prescrição como instituto de Direito Material e de interesse privado

Em contrapartida, há corrente de entendimento que sustenta que a prescrição, não obstante esteja regulamentada por novos ditames normativos no Direito Processual Civil, manteve incólume sua natureza jurídica de Direito Material e de matéria de interesse estritamente privado. Segundo esta tese, a alteração de regras processuais concernentes ao instituto não tiveram o condão de transmudá-lo profundamente, transformando em uma matéria de ordem pública, isto é, em uma objeção processual. A prescrição continua constituindo-se em prejudicial de mérito, só que com regramentos processuais diferentes.

Com efeito, segundo essa corrente, a reforma processual não conduziu a nenhuma metamorfose da prescrição, uma vez que esta tem fundamentos teóricos próprios e peculiares, razão de existir absolutamente vinculada a interesses privados. Tanto é assim que a lei civil ainda autoriza a renúncia, a suspensão e a interrupção do lapso temporal, não obstante o Estado constate de plano a decorrência do respectivo prazo. Nesse sentido, manifesta-se Patrícia Cunha Carvalho, in verbis:

Trata-se de uma norma de natureza processual versando sobre instituto de direito material, qual seja, a prescrição. Contudo, não se pode admitir que haja a mudança da natureza jurídica do instituto, uma vez que lei de natureza processual não pode alterar uma norma de direito material. A interpretação do § 5º, do art. 219 do CPC tem que ser realizada com bastante cautela para que não resulte em um absurdo jurídico. E isto porque, se considerarmos que a prescrição agora não seria mais uma exceção, mas sim que teria transmudado em objeção, teríamos uma afronta a outro instituto a ela coligado e que ainda se contra vigente, a renúncia.  (CARVALHO, 2015, pág. 2).

            Fica clarividente, portanto, a posição dessa segunda corrente: a prescrição continua sendo matéria de interesse privado, exceção processual, e não elemento de ordem pública, apesar da possibilidade de pronúncia de ofício. Também nessa linha de raciocínio manifesta-se o professor Fredie Didier Júnior:

Não é porque o juiz pode reconhecer de ofício, que a prescrição torna-se direito (exceção substancial) indisponível. Também por tudo isso, ainda vige, plenamente, a regra que veda o pedido de repetição do que se pagou para solver dívida prescrita (art. 8852 do CC-2002). (DIDIER JR, pág. 484, 2012).

                Também pertence a essa segunda corrente ora explicitada os professores Rodrigo Mazzei, que afirma que “permanece íntegro o desenho material da prescrição” e Humberto Theodoro Júnior, in verbis:

O sistema do Código Civil está todo comprometido com a livre disponibilidade da prescrição consumida. (...) A estrutura jurídica do sistema é, inquestionavelmente, a de uma exceção de direito material, que se mantenha ou não a disposição do art. 194 da lei substancial. (THEODORO Jr., p. 57, 2006).

                Arrematando a questão, o profesor Fredie Didier assevera que “a alteração legislativa seria aceitável se o sistema das obrigações no direito privado também fosse alterado, o que não aconteceu”. Destarte, segundo essa segunda linha de pensamento, a prescrição continua com natureza jurídica de direito privado, de prejudicial de mérito, não tendo passado a constituir-se em objeção processual de ordem pública. Dessa forma, a reforma perpetrada pela Lei 11.280/2006 não teve o condão de transmudar o núcleo substancial do instituto prescricional, apenas alterou as regras do jogo processual.

            À luz dos elementos até aqui analisados, manifestamos total concordância com esta segunda linha de compreensão da matéria, eis que, efetivamente, não se pode concluir que um instituto que regulamenta, em regra, interesses meramente privados, possa ter sua natureza jurídica totalmente alterada por alterações de cunho eminente processual, razão pela qual, com o devido respeito que merecem as opiniões em contrário, a segunda corrente parece ter razão nessa controvérsia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Com sustentáculo em tudo o que foi explicitado no presente trabalho, conclui-se que a possibilidade de pronúncia, de ofício, da prescrição em nada transmudou o núcleo substancial da prescrição. Isto é, a natureza jurídica do instituto permanece a mesma.

            A prescrição é instituto de cunho eminentemente privado, tanto é que a lei autoriza sua renúncia por parte daquele por ela beneficiado, razão pela qual não tendo havido revogação das normas relacionadas à renúncia do benefício prescricional, permanece incólume a natureza jurídica da prescrição. Esta, é bom que se registre, tem sua definição e regramento básicos no Direito Civil, já que se trata, indiscutivelmente, de instituto de Direito material.

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VENOSA, Sílvio Salvo. Direito Civil. Parte Geral. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.

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Sobre o autor
Ênio Pacheco Lins

Professor de Direito Material e Processual do Trabalho para Concursos Públicos e Exame de Ordem. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho. Especialista em Direito Processual Civil. Especialista em Educação em Direitos Humanos. Analista Judiciário da Área Judiciária na Justiça do Trabalho. Ex-Técnico Judiciário da Área Administrativa na Justiça do Trabalho.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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