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Ainda sobre obrigação e crédito tributário:

resposta a Tácio Lacerda Gama

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20/10/2003 às 00:00
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4. "Criação das normas" como processo de positivação e como processo de interpretação.

Tácio Lacerda Gama faz a distinção, segundo ele com base no pensamento de Paulo de Barros Carvalho, entre (a) norma como documento normativo (texto de direito positivo) e (b) norma como significação. Outrossim, divide a norma como significação em duas espécies: (b.1) norma como produto de interpretação autêntica e (b.2) norma como produto de interpretação não-autêntica [31]. Para ele, no caso dos textos de direito positivo, a competência para a sua criação "...será daquele sujeito prescrito como competente pelo próprio sistema de direito positivo...". Doutra banda, ainda segundo ele, "...tomando a norma jurídica como significação construída na mente do intérprete, pouco importa o sujeito competente. Isto porque, nesta acepção, criar normas significa interpretar, atribuir sentido aos textos do direito positivo..." [32]. Adiante, no mesmo local, faz considerações preciosas: "... Reservar a uma seleta classe de sujeitos, ditos competentes, o papel exclusivo da construção de sentido das normas jurídicas é negar o direito como sistema comunicacional. Se não cabe a todos a faculdade de interpretar normas, como pode o direito atuar como instrumento de regulação social? Conseguiriam os cidadãos cumprir condutas que estão impedidos de conhecer? Nem Kafka conseguiria engendrar esse paradoxo" [33]. Ora, sendo a norma jurídica a significação construída na mente do intérprete, portanto construída através de um ato de vontade (não de conhecimento) por cada um sujeito individualmente, como poderia o direito regrar a atividade humana em sociedade, se cada intérprete tem a faculdade de construir a "sua" norma? Onde tudo é tudo, nada é nada (Pasqualini). Se todos constroem significações e todas elas são válidas, como saber qual a norma (entre tantas normas criadas pelos diversos intérpretes) é aplicável e deve ser seguida? Como construir um sentido comum que permita aos cidadãos saberem a fronteira entre o lícito e o ilícito? Em resumo: como se dá o salto da construção individual da norma para a sua percussão social? Essa pergunta é fundamental para o direito e não há, na teoria carvalhiana, resposta possível, sem abrir mão de todos os seus postulados.

Essa aporia fica ainda mais evidente e irrespondível quando Tácio Gama busca explicar a distinção entre a norma produzida por uma interpretação autêntica daquela produzida por uma interpretação não-autêntica. Segundo ele, a interpretação não-autêntica teria como resultado "a criação de significação intra-subjetiva da norma ou a produção de textos de dogmática jurídica", ao passo que a interpretação autêntica seria "um ato de vontade, cujo produto é a criação de linguagem de direito positivo" [34]. Ora, se a interpretação não-autêntica cria uma norma intra-subjetiva, apenas na mente do intérprete, como poderia ser ela vinculante para outras pessoas? Ou seja, poderia ser ela uma norma heterônoma, com eficácia erga omnes? Se a resposta for positiva, o passo seguinte seria a teoria carvalhiana demonstrar como a norma criada na mente de um sujeito cognoscente passa a vincular também outras pessoas. E, além disso, teria que explicar como essa norma, criada individualmente a partir de um documento normativo, se sobreporia à norma individualmente criada por um outro intérprete, a partir daquele mesmo texto. Ou, ainda, explicar como poderiam conviver validamente diversas normas criadas por diversos intérpretes, a partir de um mesmo texto positivo, sem dissolver a própria prescritividade ínsita ao direito. Em resumo: como poderia conviver o sentido com o contra-sentido e os múltiplos-sentidos contraditórios e contrários, sem gerar a absurdidade do sem-sentido normativo? No entanto, para Tácio Gama, na interpretação não-autêntica, assim como na autêntica, em ambos os casos "... as normas jurídicas valem para todos" [35]. Nesse ponto, os textos da dogmática jurídica (que criariam normas através de interpretação não autêntica) passam a ter função prescritiva, não sendo mais linguagem descritiva (doutrina) sobre a linguagem-objeto (norma jurídica prescritiva), fugindo assim às premissas tomadas em todo o corpo da obra de Paulo de Barros Carvalho [36]. A confusão teórica ressalta.

Quando chamei a atenção para o problema dos destinatários das normas, reputado por Tácio Lacerda Gama "uma questão insólita" [37], deveu-se ao fato de ter Paulo de Barros Carvalho adotado as lições de Bobbio para proceder a distinção entre as normas gerais, individuais, abstratas e concretas, que tem como critério justamente os seus destinatários. Havia sublinhado que Guastini usava a mesma classificação, embora através da eleição de outros critérios, mais apropriados ao cerne da tese segundo a qual a norma jurídica é criação do intérprete [38]. Se for criação individual do intérprete, intra-subjetivamente, como se falar em norma geral, se a generalidade implica justamente pluralidade de destinatários? Logo, a questão dos destinatários das normas jurídicas não é insólita, mas crucial no seio da classificação adotada por Paulo de Barros Carvalho. Insólito é o que é inabitual, infreqüente, incomum. Se há algo aqui insólito é justamente a afirmação de que a norma criada intra-subjetivamente por um sujeito psicologizado possa ser vinculante e valer, per saltum, para todos, como afirmara Tácio Gama.

Outro ponto relevante na afirmação de que todos criam, intra-subjetivamente, a norma jurídica, é a negação da tese fundamental da teoria carvalhiana de que toda norma jurídica há de ser documentada. De fato, sem relato em linguagem competente, insiste a teoria carvalhiana, não há norma nem fato jurídico. Pois bem, a norma criada pelo sujeito, em sua interpretação não-autêntica, poderia ser reputada norma jurídica dentro do sistema de referência carvalhiano? Dá-nos categórica resposta Tácio Lacerda Gama: "... Uma vez aceita a premissa de que o direito é um conjunto de normas, que se manifestam em linguagem, não dá para conceber que acontecimentos sociais, destituídos de uma linguagem competente, promovam qualquer tipo de alteração a esse conjunto" [39]. Para o realismo lingüístico, sem a emissão de linguagem competente não há falar em norma jurídica, razão pela qual a norma criada pelo intérprete, intra-subjetivamente, não poderia ser havida por "norma jurídica", muito menos válida para todos. Sobraria, portanto, dentro da lógica da teoria carvalhiana, a norma produzida por interpretação autêntica, em linguagem competente, com a emissão de um texto de direito positivo, expedido justamente por aquela "seleta classe de sujeitos, ditos competentes", na expressão muito bem cunhada por Tácio Lacerda Gama.

A redução de complexidades levada a cabo pela teoria carvalhiana implica a mutilação do direito, a perda da sua dimensão intersubjetiva e social. Se a única linguagem possível é a documental e escrita, é evidente que apenas aquela "seleta classe de sujeitos competentes" poderia válida e vinculativamente editar normas jurídicas, reduzindo o direito àquele produzido pelas repartições públicas (juiz, administrador e legislador), em atos formais de ponência de normas. Aplicar o direito, desse modo, seria reduzi-lo à linguagem escrita e documental dos tribunais e da burocracia estatal. O próprio particular, para criar normas individuais e concretas válidas, teria de comunicá-las ao poder público, consumando o processo de positivação [40]. Esse labirinto kafkiano transpassa toda a construção da teoria carvalhiana, razão pela qual a denominei de realismo lingüístico.


5. Ato de cumprimento como modalidade de norma individual e concreta.

É fundamental, para a teoria carvalhiana, o postulado segundo o qual a norma geral e abstrata apenas incide através da edição de uma norma individual e concreta, consumando o processo de positivação do direito. Assim, não se transitaria livremente do mundo do dever-ser para o mundo do ser, pois "... Normas não tocam nas condutas, da mesma forma que condutas não tocam nas normas. Todo e qualquer ato de cumprimento, para que seja jurídico, deverá ser introduzido no sistema de direito positivo por meio de linguagem competente, de norma, portanto. Quando alguém simplesmente cumpre uma conduta, sem produzir qualquer norma que a relate, esse cumprimento, embora socialmente relevante, não interessa à dogmática jurídica, pois não integra o seu objeto de estudos: o conjunto de normas" [41]. Ou seja, ainda que o intérprete crie a norma jurídica através da interpretação não autêntica e venha a cumpri-la, tal atividade seria sem qualquer interesse para a dogmática jurídica, porque o seu objeto de estudo limita-se, por redução de complexidades, ao conjunto de normas jurídicas expedidas em linguagem competente. Mais uma vez observa-se a impossibilidade, no seio da teoria carvalhiana, de se dar relevo à norma criada pela chamada interpretação não autêntica, nada obstante o esforço de Tácio Gama em demonstrar o contrário.

A separação entre o mundo do ser e do dever-ser é absolutizada pela teoria carvalhiana, concebidos como mundos intocáveis, separados por um fosso intransponível. Ademais, pela redução do direito a uma de suas partes (norma jurídica), todo o direito passa a ser o conjunto de normas jurídicas, tomando a parte pelo todo, no sentido que antes explicitamos. Assim, os atos materiais de cumprimento passam a reivindicar o revestimento em norma jurídica, mercê da homogeneidade do campo objetal da dogmática. Aliás, para o autoproclamado construtivismo jurídico, até os atos de cumprimento são normas jurídicas, ou não teriam relevo para o direito.

A distinção entre ser e dever-ser, embora amiúde enfatizada, não é tematizada na obra de Paulo de Barros Carvalho, não se sabendo ao certo o que ele compreende por "dever-ser": se ele o tomaria como um conceito lógico ou como um conceito ontológico. Sendo um conceito lógico, o dever-ser se reduziria a uma função sintática do enunciado normativo, na qualidade de functor, servindo de conectivo interproposicional ou intraproposicional, nesse caso qualificado pelos modais deônticos (obrigatório, proibido ou permitido). Parece-nos ser nesse sentido que a teoria carvalhiana o emprega, até mesmo por reduzir o direito à norma jurídica escrita e documental. A linguagem, nessa sua dimensão gráfica e documental, não toca nunca a realidade social, ou seja, o plano das condutas humanas, porque é uma realidade estática, morta, em estado dicionário, para usar uma bela expressão cunhada por João Cabral de Melo Neto. Nesse sentido lógico, não há possibilidade formal de se transitar do domínio do ser (lógica apofântica) para o do dever-ser (lógica deôntica), sendo um irredutível ao outro [42].

Do ponto de vista ontológico, há o domínio do ser e o do dever-ser: aquele afeto às ciências naturais, como objeto real; esse às ciências normativas, como idealidade. As normas são tomadas como formações intersubjetivas de significados. Não há, é preciso que se sublinhe, oposição objetal entre ser e dever-ser: o ser opõe-se ao não-ser, sendo conceitos irredutíveis. Já o dever-ser, ontologicamente, não tem oposto. Porém, possui graus. De fato, podemos observar o dever-ser do ponto de vista suprapositivo ou do ponto de vista positivo. Na suprapositividade, o dever-ser é tomado como idealidade, sem relação com uma realidade qualquer, hic et nunc; já o dever-ser positivo é uma ordem normativa concreta, que se relaciona com o real, requerendo efetividade. Nesse sentido, "... o dever-ser destina-se a interferir no ser, dirige-se para a existência ou para a realidade. Por isso, se o ser está de tal modo determinado que não pode deixar de ser como é, carece de sentido postular um dever-ser" [43]. O dever-ser abstrato, idealizado, sem preocupações concretas é dever-ser que pode incidir sobre o dever-ser concreto, positivo, impregnado de realidade. Um exemplo cunhado por Lourival Vilanova melhor dilucidará esse ponto: o Estado positivo (a República Federativa do Brasil, v.g.) é um dever-ser positivo, um sistema normativo concreto. Quando sobre ele estabelecemos o postulado ético-político da justiça (dever-ser suprapositivo), esse postulado investe-se logicamente em forma de dever-ser ante o "ser" do Estado positivo. "A um dever-ser de ordem primeira, superpõe-se o dever-ser de ordem segunda. Só o ser é simplesmente ser" [44].

O dever-ser positivo deseja realizar-se, ou não teria sentido existir. Embora haja uma contraposição lógica entre ser e dever-ser, ontologicamente não absorvem toda a complexidade do campo de objetos possíveis. Enquanto os objetos reais se enquadram no domínio do ser, e os normativos (ética pura, p. ex.) no do dever-ser, os objetos ideais (os números, as relações matemáticas etc.) e os culturais (jurídicos, econômicos, históricos, éticos etc.) não se acomodam naquela redução lógica. No caso dos objetos culturais, o que os difere dos objetos naturais é o sentido que lhes imprime direção. Os fatos humanos não são tomados como um dado, em relações sucessivas de causalidade. São compreendidos pelo seu sentido, pelos fins a que tendem. Sem os fins, sem o sentido, são pura facticidade aleatória, impossível de serem estudados como objetos de conhecimento estranhos aos limites daquelas relações causais [45].

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O direito é objeto cultural, formado pela intersecção dos dois mundos: ser e dever-ser, realidade e pura idealidade. A incomunicabilidade lógica entre ser e dever-ser é superada na conjugação de ambos no objeto cultural, formando o todo objetal. Nas palavras precisas de Lourival Vilanova: "Mas, a irredutibilidade lógica dos dois conceitos deixa aberta a possibilidade de uma relação no objeto. Há objetos que representam síntese de ser e dever-ser..." [46]. E adiante, no que de perto nos interessa: "O dever-ser não deriva, logicamente, do ser. Não há derivação lógica que conduza deste àquele. Mas, quando o dever-ser é positivo, quando o dever-ser é o de uma ordem normativa em vigor, a validade depende do ser. Se o dever-ser não for possível de realizar-se, se o ser não oferecer possibilidade de corresponder ao dever-ser, este deixa de valer. Só o dever-ser ideal – pensado, por exemplo, na ética pura – é indiferente à efetividade no plano do ser. Mas esse dever-ser ideal é supra-positivo. Interessa-nos o dever-ser positivo, ao qual pertence o direito e o Estado. De sorte que o dever-ser exige um poder-ser, ou requer possibilidade objetiva por parte do ser" [47].

A grande dificuldade teórica do realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho está, justamente, na mutilação do todo, na redução do direito à sua dimensão documental, tomando o dever-ser como conceito lógico, suprapositivo. O processo de positivação do direito, na teoria carvalhiana, é apenas uma derivação formal, uma justaposição de papéis escritos com timbre oficial, autuados em uma repartição pública. Os fatos, a realidade "lá fora" pulsando viva, as significações normativas intersubjetivamente vividas, não seriam direito, não teriam interesse para o jurista, porque ele estaria muito ocupado decifrando os textos positivos, construindo intra-subjetivamente a norma, sem perceber que a norma que realmente conta é aquela institucionalizada no simbolismo jurídico, na vida social, nos homens encarnados. A interpretação pessoal é só o início do processo de socialização da norma; a significação que não ultrapassa os limites da subjetividade (euidade) e, pelo diálogo, ingressa na relação eu-tu, não pode ser reputada norma, porque não possui a qualidade mínima de vinculabilidade. A norma só vincula porque transcende o eu e incide na aventura que somos nós. É na fusão de horizontes do sentido institucionalizado que encontramos a norma, ali onde ela não mais depende do arbítrio do sujeito psicologizado, porque o seu sentido é público, intersubjetivamente controlado.

O direito, na teoria de Paulo de Barros Carvalho, não toca a realidade, apenas fazendo a ela menção, dada a sua natureza lógico-formal. Trata-se, como dito, de um dever-ser suprapositivo, situado nos chamados sistemas proposicionais nomológicos, porque não teria denotação existencial. A realidade, para o dever-ser suprapositivo, é algo estranho à sua constituição, podendo ser ela até referida, mas não influenciada. Já para uma visão substantiva do direito, como dever-ser positivo, inclui-se ele entre os objetos do sistema nomoempírico prescritivo, por não apenas ser aberto aos dados da experiência e ser por eles condicionados, mas sobretudo porque tem a função de influenciar a zona material da conduta humana. Não por outra razão, assevera Marcelo Neves: "Por incluir-se entre os sistemas nomoempíricos prescritivos, o ordenamento jurídico constitui uma conexão de sentido histórica. O contexto fáctico-ideológico condiciona-o, portanto, não só nos atos de produção jurídica, mas também nos momentos de interpretação e aplicação normativas. Assim sendo, as normas jurídicas, enquanto conteúdos significativos de vontades individuais ou grupais, não transcendem em caráter absoluto a sua base real-ideológica". E, em conclusão, acresce lapidarmente: "... mesmo o estudo parcial do Direito na perspectiva normativa, ou seja, a partir do ordenamento jurídico, tem que levar em conta as relações reais e ideológicas, sob pena de se ter uma falsa compreensão das estruturas de significação normativa" [48]. Olhar o direito apenas como enunciado, ensimesmado, frustra a sua função social, fá-lo insípido e inodoro, além de subserviente às tiranias. É forma que engole qualquer conteúdo, porque o dever-ser nunca toca as instâncias do ser.

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Sobre o autor
Adriano Soares da Costa

Advogado. Presidente da IBDPub - Instituição Brasileira de Direito Público. Conferencista. Parecerista. Contato: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Adriano Soares. Ainda sobre obrigação e crédito tributário:: resposta a Tácio Lacerda Gama. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 109, 20 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4406. Acesso em: 24 abr. 2024.

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