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Lei nº 10.257/2001: o Estatuto da Cidade

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31/10/2015 às 10:09
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A urbanização crescente é vista como solução para a miséria e preservação da natureza, mas gera desafios para regular a ocupação do solo.

Resumo: A presente monografia jurídica consiste num relato sobre a Lei Federal nº 10.257/01, o Estatuto da Cidade, seus objetivos e instrumentos. O trabalho enfoca ainda o Direito Urbanístico Brasileiro, suas origens e os aspectos fáticos e principiológicos que informam a criação deste direito, que tem no Estatuto da Cidade seu mais importante instrumento. O Estatuto da cidade, lei criada em 2001 tem como objetivo orientar o processo de crescimento das áreas urbanas, fornecendo diretrizes para a criação de políticas públicas. Esta lei e também o direito urbanístico se estruturam em torno da função social da cidade e também da função social da propriedade, que também são temas abordados neste trabalho


Introdução

A revista National Geographic Brasil, em sua edição de dezembro de 2011, traz uma reportagem com o seguinte título: Sete bilhões - A Cidade é a solução - porque a vida urbana pode acabar com a miséria e preservar a natureza. Esta reportagem encerrava uma série de artigos sobre a superação do marco de sete bilhões de habitantes sobre a Terra e as consequências disto para o mundo e para as pessoas que nele habitam.

Os autores da reportagem apontaram para um fenômeno irreversível, que é a urbanização crescente. Hoje a maior parte da população, em praticamente todos os países, vive nas cidades. Este fenômeno é mais acentuado nos países desenvolvidos, mas a América Latina, que apesar de não poder ser incluída entre as regiões desenvolvidas, tem uma das taxas de urbanização mais altas do mundo, em média 70% dos habitantes dos países da América Latina vivem nas cidades.

As cidades são pontos de intersecção na estrutura que se forma ao longo do processo histórico de ocupação do território, e as vantagens de se concentrar a população na área urbana são apontadas no seguinte trecho da reportagem citada acima

"Graças às cidades, metade de todos os seres humanos ocupam cerca de 4% das terras cultiváveis, liberando espaço para a agricultura. Os moradores urbanos têm ainda um impacto relativo mais reduzido, explica David Owen no livro Green Metropolis. Nas cidades, as vias pavimentadas, os esgotos e as linhas de transmissão elétricas são menos extensos, portanto demandam menos recursos. Prédios de apartamentos requerem menos energia para ser aquecidos e iluminados que casas isoladas. Nas cidades, as pessoas usam menos os carros. Parte de seus deslocamentos pode ser feita a pé, e há uma quantidade de pessoas que frequentam os mesmos lugares suficiente para viabilizar transportes coletivos. Em Nova York, o consumo de energia e as emissões de dióxido de carbono per capta são bem mais baixos que a média nacional". (National Geographic Brasil, 2011, p. 42, 54)

Esses dados dão uma visão das possibilidades trazidas pelo incremento da urbanização, que tomou corpo na segunda metade do século XX, e vai dando forma ao mundo em que vivemos não apenas em termos econômicos e espaciais, mas também em termos sociais, culturais e políticos. Manuel Castells define o processo de urbanização deste modo:

"O termo urbanização refere-se ao mesmo tempo à constituição de formas espaciais específicas das sociedades humanas, caracterizadas pela concentração significativa das atividades e das populações num espaço restrito, bem como à existência e à difusão de um sistema cultural específico a cultura urbana." (Castells, 1983, p. 377)

Cada cidade, portanto é o resultado de uma forma original de ocupação do solo, onde a população se concentra ao redor de pontos de atração, dentro de um determinado padrão de adensamento. A concentração urbana adquire uma conformação própria ao longo do tempo, que varia de um lugar para outro, mas esta conformação está sempre relacionada às funções que os habitantes da cidade exercem no seu dia a dia, como o trabalho e a circulação. A forma da ocupação espacial deixa explícito o conteúdo histórico das relações sociais, do modo de produção que se estabelece e da cultura, expressando o que o urbanista Manuel Castello denomina de ”relações estabelecidas historicamente entre o espaço e a sociedade”. (Castells, 1983, p. 41)

Pode-se dizer então que a característica mais marcante das cidades é a intensidade da convivência humana com todas as implicações que isto traz, não apenas em termos sociais e culturais, mas também em termos da necessidade de criação de uma estrutura concreta para a ocupação do solo.

Os padrões de ocupação das cidades foram se estabelecendo de forma espontânea ao longo do tempo, no entanto a partir do que se pode chamar de transição urbana, ou seja, a partir do momento em que a população das cidades passou a ser maior do que a população do campo, trazendo para a área urbana uma massa de trabalhadores, em grande parte excluídos dos direitos de cidadania, as regras que regem os padrões de uso do solo passaram a ser indispensáveis para imprimir racionalidade a esta ocupação territorial.

A criação de regras para reger o fenômeno da urbanização foi resultado de processos políticos que exprimiram a forma como as autoridades respondiam às demandas que tomavam forma dentro das cidades, mas que acabavam refletindo as necessidades da sociedade como um todo. Manuel Castells resume tal processo da seguinte forma "o tema da política urbana está imbricado com o do poder local, entendido ao mesmo tempo como processo político e como expressão do aparelho do Estado". (Castells, 1983, p. 353)

Estabeleceu-se no Brasil, a partir da segunda metade do século passado, a necessidade de elaboração de regras nacionais de ordenação urbanística que dessem conta das necessidades das cidades que cresciam e se proliferavam. O instrumental técnico criado pelos urbanistas e também pelos juristas, foi então incorporado ao ordenamento, ou seja foi transformado em institutos jurídicos. Isto se deu num período relativamente recente, pois tal processo de criação legislativa teve como principal fato gerador a transição urbana ocorrida na segunda metade do século XX.

José Afonso da Silva, na introdução ao livro Direito Urbanístico Brasileiro conta que em 1976 foi instituído na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo o curso de pós-graduação em Direito Urbanístico, e que neste momento a disciplina foi sendo criada através de pesquisa e com a contribuição dos alunos, ajudando a dar forma ao que hoje é um conjunto de normas e princípios chamado de Direito Urbanístico Brasileiro. (Silva, 2008, p. 19)

As normas de Direito Urbanístico conferem caráter legal ao corpo teórico da disciplina que estuda a ocupação e a organização do território que é o Urbanismo. O jurista Hely Lopes Meirelles define Urbanismo nos seguintes termos:

"O Urbanismo de hoje, como expressão do desejo coletivo na organização dos espaços habitáveis, atua em todos os sentidos e em todos os ambientes. (...) Não se compreende o Urbanismo isolado, não se realiza Urbanismo particular, não se faz Urbanismo por conta própria, nem há imposições urbanísticas sem normas gerais que as determine. O Urbanismo é, em última análise, um sistema de cooperação. Cooperação do povo, das autoridades, da União, do Estado, do Município, do bairro, da rua, da casa, de cada um de nós!" (Meirelles, 1993, p. 379)

O Direito Urbanístico ao incorporar as técnicas de gestão urbana, que possuem caráter multidisciplinar; por envolverem em na sua elaboração, profissionais das mais diversas áreas de conhecimento, como a sociologia, a arquitetura e a economia; vincula o processo de ocupação do espaço ao acatamento dos padrões que este direito impõe, tentando imprimir à forma de ocupação do território um caráter de racionalidade e justiça.

Em 1928 na Cidade de Atenas, a reunião do Congresso Internacional de Arquitetura moderna, citada por José Afonso da Silva, definiu o Urbanismo e as funções da cidade nos seguintes termos:

"o Urbanismo é a ordenação dos lugares e dos locais diversos que devem abrigar o desenvolvimento da vida material, sentimental e espiritual em todas as suas manifestações individuais ou coletivas. Abarca tanto as aglomerações urbanas como os agrupamentos rurais. O urbanismo já não pode estar submetido às regras de esteticismo gratuito. É por sua essência mesma, de ordem funcional. As três funções fundamentais para cuja realização deve velar o Urbanismo são: 1) habitar; 2) trabalhar; 3) recrear-se. Seus objetivos são: a) a ocupação do solo; b) a organização da circulação; c) a legislação". (Silva, 2008, p. 130, 131).

Para dar conta de organizar as funções sociais que se efetivam nas cidades, o Poder Público cria regras de gestão urbana, que são definidas pelo jurista Edésio Fernandes deste modo:

"A questão da gestão urbana envolve aspectos e considerações transdicisplinares, que, além da necessidade de uma integração entre os profissionais das diversas áreas, requerem, dentre outros fatores, a capacitação técnica e financeira dos governos municipais, a difusão da informação sobre as leis existentes e o combate à corrupção. Da perspectiva jurídica mais imediata, a discussão sobre a gestão urbana - sua natureza, seus problemas, obstáculos e possibilidades - requer a integração de três dimensões interrelacionadas, quais sejam: gestão político institucional, gestão político social e gestão político administrativa. As duas primeiras dimensões tradicionalmente estão no âmbito do Direito Constitucional; a última no âmbito do Direito Administrativo. A proposta do Direito Urbanístico é integrá-las de maneira renovada". (Fernandes et al., 2008, p. 50)

O Direito Urbanístico é portanto, um direito inovador assim como o seu principal instrumento, o Estatuto da Cidade, não apenas por incorporar aspectos transdisciplinares, mas também por dar uma interpretação nova aos institutos jurídicos tradicionais que incorpora. O autor Márcio Cammarosano expressa este espírito inovador deste modo:

"A lei que consubstancia o denominado Estatuto da Cidade não se limita a estabelecer regras orgânicas e procedimentos para a execução dos dispositivos constitucionais que regulamenta. Inova originariamente a ordem jurídica, estabelece obrigações e proibições a particulares e a agentes públicos, cria institutos jurídicos, prevê sanções para os que violarem as regras que prescrevem". (Cammarosano et al., 2006, p. 23)

A Constituição Federal de 1988 foi a primeira Constituição brasileira a dedicar um capítulo à política urbana. Este capítulo foi regulado pela Lei Federal no 10.257/01, o Estatuto da Cidade, que é o objeto de estudo deste trabalho. Esta lei federal tem sido saudada pelos estudiosos da área como um marco que traz para os administradores das cidades instrumentos que possibilitam criar um projeto de cidade que corresponda às aspirações e às necessidades sociais.

Os institutos jurídicos previstos no Estatuto da Cidade podem e devem ser usados para resolver os problemas da realidade das cidades brasileiras, onde a ocupação feita às margens do sistema legal criou cidades com dimensões metropolitanas, mas com um padrão de urbanização, que em boa parte de seu território, é mais parecido com o de uma aldeia medieval do que com o de um grande centro urbano. As cidades brasileiras refletem literalmente o padrão sócioeconômico do país, a concentração de renda e a exclusão social.

Aprovado em 2001, o Estatuto da Cidade é ainda desconhecido pela maior parte dos cidadãos, e sua divulgação pode fazer com que a população tome consciência das possibilidades de planejamento racional, participação popular e redistribuição de riquezas que esta lei traz em si. A urbanista Lucia Leitão coloca a questão desta forma:

"Não se tem o hábito, no Brasil, de planejar as cidades junto com a sociedade. Esta, por sua vez, por não ter tal prática, não faz cobranças por um ambiente construído qualitativamente adequado. Afinal, nunca se lastima o que não se conhece, ensinava Etienne de La Boétie, nos idos do século XVI". (Leitão et al., 2006, p. 324)

O desconhecimento das leis de regulação urbanística faz com que a população perceba os direitos que estas regras protegem como mera expectativa de direito, enquanto na realidade estes direitos por já estarem previstos e normatizados, são direitos subjetivos dos cidadãos. O Estatuto da Cidade foi criado pelo esforço coletivo com o objetivo de proteger um bem coletivo, o direito de viver com dignidade no território das cidades.


Porque a Cidade não cria nada, mas centralizando as criações, ela permite que elas brotem.

Manuel Castells


1. Direito Urbanístico

1.1. Desenvolvimento Histórico e Social do Direito Urbanístico

Norberto Bobbio no livro "A Era dos Direitos" (2004, p. 149), afirma que "a democracia moderna repousa na soberania não do povo, mas dos cidadãos". O autor refere-se aos cidadãos enquanto detentores de direitos, mas é possível entender também estes cidadãos como os habitantes dos centros urbanos, onde a intensidade do contato humano difunde as ideias, os valores e as expectativas que fundamentam as atuais democracias.

A vida urbana cria novas necessidades que decorrem de circunstâncias sociais, econômicas, ambientais e demográficas. As regras de ordenamento de uso do solo têm que se adaptar a essas circunstâncias e para isto criam novos direitos e dão nova concepção a alguns direitos que fazem parte da ordem jurídica tradicional. Estes direitos trazem em si novos sentidos e aplicações que a eles foram incorporados por força das mudanças que ocorrem no processo de formação e conformação das cidades.

Manuel Castells, apresenta o modelo urbano de ocupação do solo, deste modo:

"a história humana define-se pela sucessão emaranhada de três eras, campos ou continentes: a agrária, a industrial e a urbana. A cidade política da primeira fase cede lugar à cidade mercantil, que é varrida pelo movimento de industrialização, negador da cidade, mas no final do processo, a urbanização generalizada suscitada pela indústria, reconstitui a cidade num nível superior: é assim que o urbano ultrapassa a cidade". (Castells, 1983, p. 143).

As áreas urbanas criadas após a revolução industrial se diferenciam das áreas urbanas anteriores pelo tamanho da população, pela complexidade de sua estrutura e pela escala de suas necessidades. Para atender às demandas de ordenação territorial criadas pelas cidades industriais, surge o Direito Urbanístico, que é conceituado por Hely Lopes Meirelles deste modo:

"O Direito Urbanístico ordena o espaço urbano e as áreas rurais que nele interferem, através de imposições de ordem pública, expressas em normas de uso e ocupação do solo urbano ou urbanizável, ou de proteção ambiental, ou enuncia regras estruturais e funcionais da edificação urbana coletivamente considerada." (Meirelles, 1993, p. 381).

A cidade considerada do ponto de vista coletivo é diferente da cidade que é percebida pelos particulares. O indivíduo vê a cidade como um local onde pode satisfazer seus interesses. Já do ponto de vista da coletividade a área urbana é um organismo complexo, cujo funcionamento deve estar voltado e ajustado para o atendimento conjunto das necessidades de uma grande quantidade de indivíduos. Os interesses dos cidadãos tomados coletivamente correspondem a mais do que a mera soma dos interesses individuais e no processo de gestão urbana devem ser somadas aos interesses coletivos as ideias, decisões e ações necessárias para a satisfação das demandas sociais que decorrem do processo de urbanização e que tomam forma nos planos urbanísticos, ou seja no planejamento urbano.

O planejamento é um instrumento de intervenção na realidade futura. Então as funções principais do direito urbanístico que são planejar e direcionar a ocupação do território se traduzem em entender como a sociedade se estabelece hoje para poder definir como ela irá se conformar no futuro. O direito urbanístico e o planejamento urbano são mais do que instrumentos técnicos, são instrumentos de ação política cuja importância só irá aumentar nas sociedades pós-industriais, onde a área rural tende a se unir à área urbana formando uma rede única de produção e circulação de riqueza.

José Afonso da Silva afirma que: "A urbanização criou problemas que precisavam ser corrigidos pela urbanificação, mediante a ordenação dos espaços habitáveis, de onde se originou o urbanismo como técnica e ciência" (Silva, 2008, p. 27). O urbanismo surgiu com o crescimento das cidades industriais e nessa época foram elaboradas várias teorias tentando estabelecer modelos ideais de urbanização. O estabelecimento desses modelos ideais mostrou-se inviável, mas as críticas às formas de ocupação urbana da época, estabeleceram critérios que até hoje são utilizados no planejamento das cidades o que é afirmado no trecho escrito pelo mesmo autor: "percebem-se ideias que voltaram a aflorar no urbanismo contemporâneo: zoneamento, áreas verdes, espaços livres, taxa de ocupação e coeficiente de aproveitamento do terreno. E não era só. As taxas de recuos, afastamentos e gabaritos também foram lançadas." (Silva, 2008, p. 29).

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A cidade de Paris na época da Revolução Francesa tinha o mesmo padrão de urbanização da época medieval, com ruas estreitas e tortuosas, o que durante a revolução permitiu que a população se escondesse em seus meandros e foi importante para vitória dos revoltosos. Após a Revolução foi empreendida uma grande reforma no centro de Paris, que colocou abaixo a cidade medieval e reconstruiu a cidade como se conhece hoje com largas avenidas arborizadas. Este é um exemplo do novo modo de planejar as cidades que surgiu a partir do sec. XIX e a este modo de planejar foram conectados instrumentos técnicos e jurídicos que tinham como objetivo implementar as mudanças necessárias para adaptar o meio urbano às novas demandas nascidas com a cidade industrial.

Num primeiro momento as regras urbanísticas tinham um caráter embelezamento da cidade, mas o crescimento da desordem urbana que ocorreu principalmente após a Revolução Industrial fez com fossem criadas normas de conteúdo técnico. O jurista Carlos Ari Sundfeld descreve deste modo o papel que o direito urbanístico passou a desempenhar, (o que no Brasil vem ocorrendo desde a década de 60 do século passado).

"O direito urbanístico surge, então, como o direito da política de desenvolvimento urbano, em três sentidos: a) como conjunto das normas que disciplinam a fixação dos objetivos da política urbana (exemplo: normas constitucionais); b) como conjunto de textos normativos em que estão fixados os objetivos da política urbana (os planos diretores, por exemplo), c) como conjunto de normas em que estão previstos e regulados os instrumentos de implementação da política urbana (o próprio Estatuto de Cidade, entre outros)." (Sundfeld et al., 2006, p. 48, 49)

No Brasil a necessidade de criação de regras de ordenamento territorial ficou patente na segunda metade do séc. XX, quando ocorreu o fenômeno denominado de transição urbana. Nesta época as populações que viviam no campo migraram em massa para as cidades, indo principalmente para as grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Começou-se então a implementar um projeto nacional de ocupação do território que teve como um de seus pontos principais a construção de uma nova capital, Brasília, que foi construída segundo um projeto-modelo de urbanização de inspiração modernista. Tal modelo acabou sendo superado pela realidade social e hoje Brasília é composta por um centro de alta qualidade urbanística cercado por vastas periferias parecidas com as periferias de qualquer outra cidade brasileira.

Durante todo o século XX foi amplamente discutida a necessidade de integrar as técnicas de urbanização com as expectativas sociais, em 1996 a Conferência Habitat das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos criou um documento, a Agenda Habitat, que procura explicitar as bases do urbanismo democrático. Maria Paula Dallari Bucci, afirma que "A Agenda Habitat compreende um amplo programa de ação no qual é enfatizado a relação entre a habitação adequada e a proteção ao meio ambiente, bem com o acesso à moradia, acesso entendido como garantia de um custo acessível para todos". (Bucci et al., 2006, p. 338, 339).

Edésio Fernandes coloca a importância do crescimento da população que vive nas cidades, deste modo:

"A urbanização intensiva foi certamente o fenômeno sócioeconômico mais significativo do século XX, tendo provocado mudanças drásticas de todas as ordens. O impacto desse processo na ordem jurídica não pode ser mais ignorado". (Fernandes et al., 2008, p. 59)

Pode-se afirmar que o processo de urbanização desenha no território uma rede de relações econômicas, sociais, culturais e políticas, e como fruto destas relações surge o ordenamento jurídico que exerce uma função legitimadora das aspirações da coletividade expressas na forma de direitos. Existe uma relação entre o processo de urbanização e o desenvolvimento do direito urbanístico. O Estatuto da Cidade nasceu deste processo com poderes para condicionar e limitar o direito de propriedade urbana com o objetivo de construir uma ordem territorial que corresponda às necessidades de toda a população.

O Estatuto da Cidade é portanto, um instrumento do Direito dos Cidadãos. É uma presença na realidade jurídica material e se destina a legitimar e dirigir o processo de organização da ocupação do espaço urbano. A compreensão do alcance desta lei pode dar ao fenômeno da urbanização contornos mais democráticos e à gestão urbana um caráter de maior eficiência e racionalidade.

1.2. A Inserção do Direito Urbanístico na Ordem dos Direitos Fundamentais como um Direito Social

Direitos fundamentais e direitos humanos são expressões com o mesmo sentido. Os direitos humanos incorporados à Constituição Federal são denominados direitos fundamentais. O Título II da Constituição Federal de 1988 chama-se Dos Direitos e Garantias Fundamentais e nele se insere a Ordem Urbana. A expressão dos direitos fundamentais na Ordem Urbana pode ser encontrada na determinação de que a propriedade cumpra sua função social prevista no inciso XXIII do art. 5º da CF 88, incluída entre os direitos e deveres individuais e coletivos e no art. 6º que dispõe sobre os direitos sociais e inclui entre eles algumas das funções sociais da cidade como o trabalho, a moradia, o lazer e a segurança.

Os direitos humanos foram incorporados à ordem jurídica no Brasil e no resto do mundo após a Segunda Guerra Mundial, quando as atrocidades cometidas pelos países envolvidos no conflito, deixou clara a necessidade de uma proteção mais efetiva da dignidade humana. A Declaração Universal dos Direitos do Homem foi assinada em 1948 e a sua existência não garante o respeito aos direitos humanos, mas tem servido sempre para legitimar a ação daqueles que lutam pela sua efetivação.

A luta pela conquista dos direitos humanos como expressão do valor de cada pessoa como ser único e dotado de dignidade, atravessa a história da humanidade. O autor Fabio Konder (Comparato, 2010, p. 70) afirma que a consciência ética coletiva amplia-se e aprofunda-se com a história e se traduz na formulação de novos direitos humanos que se complementam solidariamente e são irrevogáveis. Afirma ainda que "as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de exprimirem certa ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado" (Comparato, 2010, p. 74).

Utilizando o lema da revolução Francesa; Liberdade, Igualdade e Fraternidade (solidariedade), o autor faz uma explanação sobre a forma como os direitos humanos foram se afirmando ao longo da história. (Comparato, 2010, p. 75) Desta forma os direitos de Liberdade foram os primeiros a serem alcançados e correspondem à conquista da possibilidade de participação política dos cidadãos e também da autonomia privada entendida num primeiro momento como liberdade de ação no campo econômico, tendo sido depois estendida a outras dimensões da liberdade, como a liberdade de expressão. Estes direitos demandam uma abstenção por parte do Estado no sentido de não interferir na fruição do direito por parte dos cidadãos.

A seguir surgem os direitos de igualdade que são os direitos econômicos, sociais e culturais, que foram conquistados com a abolição dos privilégios das classes dominantes e com o estabelecimento na maior parte dos países de uma garantia de igualdade perante a lei. Quando, portanto as leis garantem determinados direitos, que demandam uma ação do Estado no sentido de garanti-los, este será colocado na posição de prestador de serviços à população. Os direitos trabalhistas, os direitos previdenciários e o direito à educação pública são exemplos de direitos que demandam uma prestação por parte do Estado. Entre estes incluem-se muitos dos deveres do Estado em relação à ordenação do território, como a criação de redes de abastecimento de água e de redes de coleta de esgotos, a criação de sistemas de transportes coletivos e o fornecimento de energia elétrica.

Os direitos de Solidariedades são expressos por Fábio Konder Comparato desta forma:

"A solidariedade prende-se à ideia de responsabilidade de todos pelas carências de qualquer indivíduo ou grupo social. (...) O fundamento ético deste princípio encontra-se na ideia de justiça distributiva, entendida com a necessária compensação de bens e vantagens entre as classes sociais, com a socialização dos riscos normais da existência humana" (Comparato, 2010, p. 77).

Dentre os direitos ligados à solidariedade estão os direitos à paz, ao meio ambiente saudável e ao desenvolvimento.

Pode-se afirmar que, as funções sociais da cidade e da propriedade que fundamentam o direito urbanístico, são expressões dos direitos de solidariedade que têm por objetivo realizar direitos de igualdade no sentido mencionado por José Joaquim Gomes Canotilho no trecho em que comenta a ordem constitucional portuguesa, mas que pode ser utilizado para o entendimento da ordem constitucional brasileira:

"Existe uma relação indissolúvel entre direitos econômicos, sociais, culturais e direitos, liberdades e garantias. Se os direitos econômicos, sociais e culturais pressupõem a liberdade, também os direitos, liberdades e garantias estão ligados a referentes econômicos, sociais e culturais. Neste sentido se afirma que o paradigma estruturante da ordem jurídico-constitucional portuguesa é o paradigma da liberdade igual. A liberdade igual aponta para a igualdade real, o que pressupõe a tendencial possibilidade de todos terem acesso aos bens econômicos, sociais e culturais. 'Liberdade igual' significa, por exemplo, não apenas o direito à inviolabilidade de domicílio, mas o direito a ter casa; não apenas o direito à vida e à integridade física, mas também o acesso aos cuidados médicos; não apenas o direito de expressão, mas também à possibilidade de formar sua própria opinião; não apenas o direito ao trabalho e emprego livremente escolhido, mas também à efectiva posse de um posto de trabalho." (Canotilho, 2003, p. 480)

O direito urbanístico através de seu complexo de regras que visam orientar o processo de construção coletiva do espaço das cidades tem como fundamento o respeito aos direitos individuais entendidos como expressão da dignidade que reside em cada ser humano e atua coletivamente no sentido de beneficiar cada cidadão em particular. Norberto Bobbio afirma que o respeito aos indivíduos em sua singularidade está na base do Estado Democrático de Direito, o que aparece expresso no seguinte trecho:

"Não há nenhuma Constituição democrática que não pressuponha a existência de direitos fundamentais, ou seja, que não parta da ideia de que primeiro vem a liberdade dos cidadãos singularmente considerados, e só depois o poder do Governo, que os cidadãos constituem e controlam através de suas liberdades" (Bobbio, 2004, p. 130)

Portanto o regramento urbanístico tem como objetivo realizar o direito de viver em espaços verdadeiramente habitáveis, o que implica no acesso à moradia, mas também implica no acesso à educação, ao lazer, ao transporte e ao saneamento, direitos que podem encontrar na própria estrutura das cidades um instrumento para a sua efetiva realização.

1.3.O Direito Urbanístico como um Ramo Autônomo do Direito

O direito e seus institutos são uma criação da cultura humana e suas regras se aplicam aos mais diversos ramos de atuação sem deixar de ser um assunto único: o Direito. Miguel Reale coloca desta forma este conceito:

"É inegável que, apesar das mudanças que se sucedem no espaço e no tempo, continuamos a referir-nos a uma única realidade. É sinal de que existem nesta algumas 'constantes', alguns elementos comuns que nos permitem identifica-la como experiência jurídica, inconfundível com outras como a religiosa, a econômica, a artística, etc." (Reale, 2010, p. 130)

Esta realidade única que é o Direito se desdobra em inúmeros ramos como o direito civil, o direito penal e o direito processual, entre outros. Estes ramos do direito surgiram como forma de solucionar conflitos, foram se adaptando ao longo do tempo às novas realidades e necessidades criadas socialmente e foram adquirindo autonomia em relação aos outros ramos do direito, deste modo cada um desses ramos passou a ser regido por uma legislação específica e a ter também uma estrutura própria para sua aplicação.

O autor Eduardo Sabag ao descrever os motivos pelos quais o direito tributário deve ser considerado um ramo autônomo faz uma explanação que se aplica a todos os outros ramos do direito. Portanto para ser considerado autônomo um ramo do direito deve se encaixar nos pressupostos mencionados a seguir:

"Apresenta-se, pois com um direito autônomo, em face da homogeneidade de sua estrutura normativa e de seus preceitos elementares. Não é apenas um ramo didaticamente autônomo dos demais: frui sem sombra de dúvida uma autonomia dogmática ou científica (corpo de regras próprias orientadas por 'princípios jurídicos próprios, não aplicáveis aos demais ramos do direito')" (Sabag, 2012, p. 49)

O direito urbanístico é um ramo do direito que surgiu muito recentemente, sua inclusão na ordem jurídica constitucional ocorreu com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988 que o regulou em linhas gerais, sendo que sua legislação específica surgiu em 2001 com a entrada em vigor do Estatuto da Cidade. O fato de ser um direito tão novo e que introduz mudanças na própria estrutura de alguns direitos tradicionais tem gerado controvérsias, que também ocorrem em relação à sua autonomia em face de outros ramos do direito.

Por ser este um direito que, em grande parte, é aplicado pela administração pública, é visto por parte da doutrina como fazendo parte do direito administrativo. Outros autores enxergam o direito urbanístico como parte do direito econômico devido à importância do ordenamento do território para a economia do país.

O direito urbanístico atual pode ser visto como um ramo autônomo do direito, pois possui "preceitos elementares e uma estrutura normativa própria" (Sabag, 2012, p. 49), que correspondem à inclusão da ordem urbana na Constituição Federal de 88 e à criação de lei específica, o Estatuto da Cidade. Possui também "princípios jurídicos próprios não aplicáveis a outros ramos do direito" (Sabag, 2012, p. 49) que já estão bem definidos, e uma estrutura jurídica totalmente diferenciada dos outros ramos do direito.

Pode-se afirmar, portanto que o Estatuto da Cidade trouxe para o direito urbanístico condições para que este adquira autonomia didática e científica. Edésio Fernandes comenta a polêmica em torno do reconhecimento da autonomia deste direito, assim:

"De modo geral, o Direito Urbanístico somente tem sido aceito como um sub-ramo do Direito Administrativo ou, em alguns casos do Direito Ambiental. Como tenho insistido, acredito que tal resistência é de natureza ideológica e tem a ver com noções pré-concebidas e inquestionadas acerca do direito de propriedade imobiliária. Já a maior aceitação do Direito Ambiental deve-se em parte ao fato de que a 'agenda verde' é frequentemente expressão de uma visão naturalista de um espaço abstrato e sem conflitos, sendo como tal certamente mais próxima da sensibilidade das classes médias do que a 'agenda marrom' das cidades poluídas que são estruturadas a partir dos conflitos políticos-sociais e jurídicos em torno da terra e das relações de propriedade." (Fernandes et al., 2008, p. 59).

O direito urbanístico possui condições formais para o reconhecimento de sua autonomia didática e científica, mas para atingir uma autonomia de fato, ainda terá de ser feito um trabalho pelos profissionais ligados a esta área no sentido de divulgar e reafirmar o seu conteúdo e suas metas.

1.4. O Direito à Cidade

As questões referentes à cidade, ao ordenamento do uso do solo e à apropriação social da estrutura urbana, além de serem objeto de estudo são também causas defendidas por urbanistas, juristas e outros estudiosos ligados a esta área. A partir principalmente da segunda metade do século XX, foram criadas regras de direito urbanístico que procuravam conciliar as exigências do uso correto do solo urbano com as demandas por uma distribuição mais justa do território e dos benefícios das cidades. A causa dos urbanistas e dos estudiosos do assunto foi sendo abordada e explicitada durante todo o século XX, mas o aparecimento dos Fóruns Sociais na década de noventa deu folego a esta causa, e começou a ser delineado o que Letícia Marques Osório definiu como: "concepção do Direito à Cidade como um novo direito humano coletivo, com base em uma plataforma de reforma urbana para ser implementada pelos países". (Osório et al., 2006, p. 194)

O jurista Jaques Tavora Alfonsin afirma que, "em matéria de direitos sociais, como se sabe, todos os possíveis de hoje residiram no impossível de ontem" (Alfonsin et al., 2006, p. 17), o que significa dizer que incrementos no acesso aos direitos sociais sempre ocorrem. É verdade também que ocorrem retrocessos, pois o acesso aos direitos sociais tem correlação direta com o desempenho econômico do país.

Fábio Konder Comparato coloca a necessidade de um movimento de acesso a direitos sociais acompanhado de um movimento no sentido do desenvolvimento econômico nestes termos: "é necessário levar-se em conta - ao contrário do que uma certa esquerda ingênua admitiu no passado - que sem crescimento econômico não há distribuição de renda". (Comparato, 1997, p. 2) No entanto sem um projeto político que vincule o desenvolvimento econômico ao desenvolvimento social, o país continuará tendo o mesmo padrão de urbanização excludente que tem sido visto nas últimas décadas.

O Fórum das Américas realizado em Quito em 2004, o Fórum Mundial Urbano realizado em Barcelona em 2004 e o Fórum Social Mundial de 2005 estabeleceram as bases da Carta Mundial do Direito à Cidade. As medidas propostas nesta carta em termos de defesa da função social da cidade e de uma nova ordem urbanística representam um instrumento que é posto nas mãos dos atores envolvidos no processo de construção das cidades para a criação de metas justas e democráticas.

A Carta define o Direito à Cidade desta forma:

"O direito à Cidade é definido como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social. É um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito à livre determinação e a um padrão de vida adequado.

O Direito à Cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecido, concebidos integralmente, e inclui, portanto, todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais que já estão regulamentados nos tratados internacionais de direitos humanos. Este supõe a inclusão do direito ao trabalho em condições equitativas e satisfatórias; de fundar e afiliar-se a sindicatos; de acesso à seguridade social e à saúde pública; de alimentação, vestuário e moradia adequados; de acesso à água potável, à energia elétrica, o transporte e outros serviços sociais; à participação política e ao acesso à justiça; o reconhecimento do direito de organização, reunião e manifestação; à segurança pública e à convivência pacífica. Inclui também o respeito às minorias e à pluralidade étnica, racial, sexual e cultural, e o respeito aos migrantes.

O território das cidades e seu entorno também é espaço e lugar de exercício e cumprimento de deveres coletivos como forma de assegurar a distribuição e o desfrute equitativo, universal, justo, democrático e sustentável dos recursos, riquezas, serviços, bens e oportunidades que brindam as cidades. Por isso o Direito à Cidade inclui também o direito ao desenvolvimento, a um meio ambiente sadio, ao desfrute dos recursos naturais, à participação no planejamento e gestão urbanos e à herança histórica e cultural." (Osório et al., 2006, p. 201)

A Carta Mundial do Direito à Cidade é um documento redigido para "estabelecer mecanismos de fiscalização eficazes e instrumentos de exigibilidade dos direitos para complementar as lutas reivindicatórias dos movimentos" (Osório et al., 2006, p. 194). Esta carta exerce seu papel na luta por um ambiente urbano mais humano e mais justo, fornecendo instrumental teórico para a promoção da democratização do acesso aos benefícios criados pela vida urbana.

1.5. A Reforma Fundiária

O jurista e urbanista Edésio Fernandes afirma que: "não há como fazer reforma urbana sem enfrentar a ordem jurídica vigente" (Fernandes et al., 2008, p. 25). Em relação à regularização fundiária esta é uma verdade fundamental, pois esta regularização é feita através de mudanças na legislação com o objetivo de corrigir todo um processo de ocupação do espaço urbano feito de forma ilegal, irregular e precária.

O mesmo autor cita o filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre que viu "na ilegalidade da favela, uma legitimidade, que é o direito que as pessoas têm de buscar uma residência qualquer, um espaço qualquer onde viver. E ele viu ali o embrião de uma nova sociedade, de uma nova sociabilidade." (Fernandes et al., 2008, p. 39) Esta legitimidade foi reconhecida pelo legislador constitucional ao incluir no art; 6º da Constituição Federal de 1988, o direito à moradia no rol dos direitos sociais.

O propósito da reforma fundiária é conferir título de propriedade aos moradores das áreas urbanas que foram ocupadas de forma ilegal ou irregular. O Estatuto da Cidade em seus artigos 55, 56 e 57 prevê mudanças na Lei de Registros Públicos para permitir o registro de imóveis independentemente da regularidade do parcelamento do solo ou da edificação, o que significa dizer que os imóveis que estiverem fora dos padrões exigidos pelas leis municipais que regulam o assunto, poderão ser levados a registro público, o que implica no reconhecimento do direito de propriedade.

A reforma fundiária é antes de tudo um pacto político que ao promover mudanças no regime jurídico que regula a propriedade urbana, acaba por modificar a própria estrutura da urbanização, pois a formalização das ocupações ilegais e irregulares permite que estas deixem de ser a regra na hora da obtenção da moradia por parte das classes menos favorecidas.

O urbanista Ricardo Cymbalista coloca as diferenças de oportunidades que decorrem da localização geográfica dentro da cidade, deste modo:

"À medida em que mora e transita nos locais desqualificados, a população que está em situação desfavorável acaba tendo muito pouco acesso às oportunidades de crescimento que a cidade oferece, sejam elas oportunidades de trabalho, cultura ou lazer. Simetricamente, aqueles que conseguem viver 'do lado de dentro' têm muito mais facilidade de acesso a oportunidades, inclusive aquelas decorrentes de investimentos públicos, pois bibliotecas, museus, universidades públicas em geral situam-se nas porções mais consolidadas da cidade, que sempre são povoadas pelos mais ricos." (Cymbalista et al., 2006, p. 281, 282)

As políticas públicas que a reforma fundiária busca implementar foram resumidas por Edésio Fernades desta forma:

"No Brasil, combinando políticas de urbanização: - implementação de infra estrutura e prestação de serviços e políticas de legalização das áreas e dos lotes individuais - e em que pesem suas diferenças, quase todos os programas de regularização de favelas têm sido estruturados em torno de dois objetivos principais: o reconhecimento da segurança jurídica da posse para os ocupantes das favelas e a integração socioespacial de tais áreas e comunidades no contexto mais amplo da estrutura e da sociedade urbanas". (Fernandes et al., 2006, p14)

Os objetivos descritos acima por Edésio Fernandes foram incorporados pela Lei nº 11.977/09, o Projeto Minha Casa Minha Vida que trata, entre outros assuntos, da regularização fundiária. O artigo 46 desta lei, a conceitua desta forma:

"A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam a formalização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado"

Portanto, pela definição do artigo acima a regularização fundiária é a intervenção do poder público nas áreas que foram ocupadas irregularmente durante o processo de crescimento das cidades, com o objetivo de regularizar a situação jurídica dos possuidores e também promover urbanificação. As áreas irregulares ou ilegais, são: as invasões de áreas públicas ou privadas denominadas de favelas ou aglomerados subnormais; os loteamentos irregulares, ou seja os loteamentos que foram aprovados pelo Poder Público, mas não foram registrados, ou foram registrados, mas não foram construídos de acordo com o ato de aprovação; e os clandestinos, que são os loteamentos cuja existência é desconhecida pelo Poder Público ou que não cumprem os requisitos para aprovação.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) criou no censo de 2010 um critério para identificação dos assentamentos irregulares e deu a estes assentamentos o nome de aglomerados subnormais. Segundo os dados do censo de 2010 o Brasil possui 6.329 aglomerados subnormais distribuídos em 323 municípios. O total de habitantes destes aglomerados é de 11.425.644 pessoas, o que corresponde a 6% da população. Sendo que a maioria dos aglomerados subnormais, 75, 1% deles, se localiza nas regiões metropolitanas, sendo 49, 8%, na região sudeste. (www.ibge.gov.br)

Os números do censo são questionados por entidades como o Centro de Estudos da Metrópole CEM/CEBRAP (www.observatoriodasfavelas.org.br), que aponta para a existência de um número muito maior de aglomerados subnormais. Além disso nos dados levantados pelo IBGE não estão incluídos os loteamentos irregulares e os clandestinos. Portanto a população brasileira vivendo em condições irregulares ou ilegais é bem maior do que a que aparece no censo de 2010.

A inclusão de instrumentos de aferição do tamanho da população instalada ilegalmente e a criação de uma lei que instrumentaliza o Poder Público no sentido da regularização de tais assentamentos revela, portanto o peso que o problema das áreas ilegais tem para as cidades brasileiras.

1.6. Atuação do Judiciário

As regras de direito urbanístico têm como objetivo orientar o ordenamento do uso do solo. A implementação destas regras será feita principalmente no âmbito do Poder Executivo que as utilizará para planejar e executar as políticas públicas de ordenamento urbano e para sancionar em sede administrativa o uso do solo em desacordo com a planificação.

Já a tutela jurisdicional em matéria de direito urbanístico insere-se na tutela dos direitos metaindividuais, ou seja na tutela dos direitos de um grupo indeterminado de indivíduos. A este tipo de direitos tem-se dado o nome de "novos direitos". Cassio Scapinella Bueno coloca desta forma a inserção da tutela dos novos direitos na ordem jurídica:

"Na exata proporção em que se concederam 'novos' direitos, precisou-se conceber novas formas de aplicação compulsória desses mesmos direitos em conflito. Se o perfil do 'novo' direito é diverso do que lhe precedeu, o perfil dos mecanismos de resolução dos conflitos derivados desses 'novos' direitos também deverá ser." (Bueno et al., 2006, p. 394)

As decisões administrativas com base nas regras de direito urbanístico, especialmente as de caráter sancionatório poderão ser questionados junto ao judiciário que irá então decidir sobre a sua legalidade. O judiciário poderá ainda decidir sobre questões que envolvam a execução de leis municipais e por consequência dos planos diretores, nos casos em que houver omissão do poder executivo no cumprimento destas leis e nos casos em que ocorrerem ilicitudes na execução das políticas públicas.

O Estatuto da Cidade prevê a utilização da Ação Civil Pública na defesa da ordem urbanística ou seja na defesa dos direitos metaindividuais que estão implícitos nesta ordem. Dentro do âmbito do Poder Judiciário a competência para promover a Ação Civil Pública é do Ministério Público de acordo com o inciso II do art. 129 da Constituição Federal.

A importância da Ação Civil Pública está na possibilidade de ser usada para suprir falhas na legislação urbanística dotando a administração pública de um instrumento que permite perseguir o cumprimento efetivo da planificação urbanística, como afirma Cassio Scapinella Bueno, neste trecho:

"O que tem aptidão para ser diferente, se não novo no caso do Estatuto da Cidade, é que o Município que vê de qualquer forma, o particular frustrando o cumprimento de seu plano diretor ou, mais amplamente de quaisquer diretrizes urbanísticas pode valer-se da Ação Civil Pública para impor jurisdicionalmente ao particular o dever de fazer ou não fazer descumprido. Na exata proporção em que só a atuação administrativa mostrar-se insuficiente ou insatisfatória no perseguimento das políticas públicas e urbanísticas, a via jurisdicional potencializada da Ação Civil Pública está expressamente reconhecida também para o Município. (Lei 7.347/85)." (Bueno et al., 2010, p. 407)

Existe hoje instalada na capital do Estado de São Paulo uma Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo. As atribuições desta promotoria forma definidas pelo artigo 295, X, da Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo que dispõe nos seguintes termos: Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo: defesa de interesses difusos ou coletivos nas relações jurídicas relativas a desmembramentos, loteamentos e uso para fins urbanos.

Na página do Ministério Público do Estado de São Paulo, os objetivos da atuação do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo são definidos desta forma: "a defesa da ordem urbanística de acordo com o art. 129 da Constituição Federal e com o art.1o, inciso III, da Lei nº 7.347/85, Lei de Ação Civil Pública". Define ainda a sua atuação em relação à ordem urbanística deste modo:

"As transformações e o crescimento das cidades, quer pela atuação do Poder Público, quer pelas ações dos particulares, podem afetar a ordem urbanística (padrões e regras urbanos definidos em leis e atos regulamentares que visam o uso e a ocupação do solo de maneira planejada e ordenada, para garantia da qualidade de vida sustentável nas cidades), com a consequente deterioração do ambiente urbano. Quando a ordem urbanística é atingida por ações que podem prejudicar o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho, à circulação e ao lazer, ou, ainda, quando o Poder Público Municipal deixa de regular as transformações do meio ambiente urbano, é possível provocar a intervenção do Ministério Público, por meio da Promotoria de Justiça de Habitação e do Urbanismo, a fim de que sejam adotadas todas as medidas jurídicas (inquérito civil, termo de ajustamento de conduta e ação civil pública) que visam recompor o bem estar de todos os que habitam ou circulam nas cidades, preservando o direito a cidades sustentáveis para as presentes e futuras gerações." (www.mp.sp.gov.br)

O Ministério Público da Habitação e do Urbanismo surgiu em 1993, e num primeiro momento a sua atuação foi exclusivamente para prevenir e reprimir na esfera civel os parcelamentos do solo ilegais, utilizando-se da Ação Civil Pública para regularizar os parcelamentos e requerer indenizações pelos danos causados ao meio ambiente natural e urbano, bem como dos adquirentes lesados.

Um documento redigido pela Associação Paulista do Ministério Público, e disponível em sua página na internet, aponta para a insuficiência desta atuação deste modo:

"A noção de Urbanismo, todavia, encerra interesses diversificados, muito mais abrangentes do que apenas o parcelamento do solo urbano. Não são poucos os problemas que afligem o morador das cidades, especialmente o de metrópoles como São Paulo, e que atingem interesses relacionados à moradia, a circulação viária, à preservação de áreas verdes e de lazer, ao paisagismo, à qualidade do ar, etc. O desafio da Promotoria, portanto começou no próprio delineamento do objeto de seu trabalho. Hoje já é possível dizer que os Promotores vêm atuando em procedimentos que dizem respeito a vários aspectos que apresentam inegável impacto urbanístico: bolsões residenciais, fechamento de ruas, zoneamento, operações interligadas, disciplina da instalação de bancas de camelô, desafetação de áreas de uso comum do povo, áreas de risco e inundações, poluição visual, poluição sonora, etc. A principal dificuldade do dia-a-dia diz respeito à eleição de estratégias para resolver os complexos problemas que nos chegam" (www.apmp.sp.gov.br)

A resolução dos problemas das cidades só pode ser conseguida através da atuação coordenada dos três poderes, mas a atuação do Judiciário é fundamental para imprimir ao processo de construção das cidades uma qualidade de gestão que corresponda aos ideais constitucionais. Letícia Marques Osório coloca isto de forma bastante clara no seguinte trecho:

"O direito tem sido, em alguma medida, um instrumento a ser utilizado quando fracassam outras mediações, como a política e a demanda social. O movimento de direitos humanos tem comprovado que as estratégias sociais são insuficientes, de per si, para alcançar a justiça social e por isso foi necessário avançar na instrumentação de mecanismos jurídicos de exigibilidade dos direitos." (Osório et al., 2006, p. 194)

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Sobre a autora
Luiza Helena Berriel

Arquitetura e Urbanismo PUC de Campinas -1985. Direito PUC de Campinas - 2012. Mestranda em Direito Urbanístico PUC de São Paulo

Informações sobre o texto

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Mais informações

Trabalho de conclusão de curso apresentado à Pontifícia Universidade Católica de Campinas para obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob orientação dp Prof. Dr. Francisco Vicente Rossi.

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