O crime de calúnia praticado contra os agentes públicos

04/11/2015 às 09:35
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Trataremos dos seguintes assuntos: proteção constitucional da honra, tipificação do crime de calúnia, imputação feita aos agentes públicos, esteriótipo de corrupção etiquetado pela sociedade, exceção da notoriedade do fato, impossibilidade de utilização irrestrita.

A Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso X, assenta, dentre outras, a garantia da inviolabilidade da honra e da imagem do ser humano, sob pena de, em caso de violação, sujeitar o responsável a indenização por danos materiais ou morais dela decorrentes.

Com o objetivo de tipificar penalmente a conduta de imputar a outrem, falsamente, a prática de um crime de que o sabe inocente, o Código Penal Brasileiro de 1940 trouxe o crime de calúnia, que em razão da pena inicial apresenta-se, via de regra, como um crime de menor potencial ofensivo.

Discutir-se-á, aqui, se toda falsa imputação de um crime a alguém comporta tal tipicidade, bem como se todo agente público, independentemente da situação em que se encontra, pode ser vítima dessa conduta desviante.

Atualmente, mostra-se em elevada evidência o tema ligado à corrupção e ao desvio de dinheiro público. Inúmeros escândalos têm sido revelados pela mídia e divulgados pelos meios de comunicação, disseminando-se facilmente em razão da sua globalização.

Essa troca célere de informações acabou generalizando os agentes públicos a um só esteriótipo: o de corrupto. Assim, independentemente do que façam, da sua reputação ou idoneidade, passaram a, todos eles, ostentar o rótulo de malversadores de dinheiro público.

Em criminologia, poder-se-ia dizer que se essa generalização se assemelha à teoria do etiquetamento, também conhecida como labelling aproach, interacionismo ou da reação social.

Por essa teoria, “quando os outros decidem que determinada pessoa é non grata, perigosa, não confiável, moralmente repugnante, eles tomarão contra tal pessoa atitudes normalmente desagradáveis, que não seriam adotadas com qualquer um.” (SHECAIRA. 2014, p.256).

Assim, ser criminoso não significa ser diferente, mas sim ser destinatário de um status social atribuído a determinadas pessoas previamente selecionadas que, em razão dele, serão punidas pelo sistema penal.

Mas, como explica a lógica proposital, quando se diz que “todos os agentes públicos são corruptos”, algum, pelo menos, não o será. E quando essa parcela sofre ataques desmedidos pela mídia ou pela sociedade nesse sentido, tem-se que, aparentemente, pode ter sido praticado o crime de calúnia.

Quando uma pessoa diz que o político “X” desviou dinheiro público de determinada contratação, por exemplo, é possível identificar a presença de todos os elementos constitutivos do tipo de calúnia, previsto no art. 138 do Código Penal Brasileiro de 1940. Isso porque, tal como desenha Victor Eduardo Rio Gonçalves (2014, p. 244/253):

a) houve uma imputação de fato certo e determinado, definido como crime (peculato-desvio), à pessoa certa do político X;

b) o fato imputado é falso, ou pelo menos há presunção relativa de que ele assim seja considerado, seja em relação à sua ocorrência, seja em relação à autoria;

c) o agente, se não tinha pleno conhecimento dessa falsidade, ao menos assumiu o risco de imputar um fato falso a alguém, o que demonstra a presença do dolo na sua conduta, seja direto seja eventual;

d) a imputação, que no exemplo acima foi explícita, teve o condão de macular a honra objetiva do político X, manchando a sua reputação perante o grupo social em que convive.

Além disso, no momento em que ele prestou essas informações a terceira pessoa, vislumbra-se a consumação delitiva, que por sua vez, em razão da presença das causas de aumento de pena previstas nos incisos II e III do art. 141 do mesmo diploma legal, afastará do crime a sua condição de menor potencial ofensivo.

Ocorre, todavia, que antes de a vítima ajuizar uma medida criminal para a eventual punição do agente ofensor, é preciso que ela se certifique sobre a verdadeira falsidade da imputação, tendo em vista que o crime de calúnia admite, como regra, a oposição de exceção da verdade, que permitirá ao ofensor comprovar a veracidade dos fatos imputados.

Por mais que o ônus da prova caiba exclusivamente ao agente, se ele conseguir demonstrar que sua imputação é verdadeira será absolvido por atipicidade da conduta; o processo, por sua vez, será remetido ao órgão acusador para o oferecimento da denúncia, uma vez que o crime imputado exige ação penal pública incondicionada (GONÇALVES. 2014, p. 249/250).

Além dessa exceção, o ofensor tem a sua disposição a possibilidade de demonstrar que aquilo que disse era de conhecimento público notório, disseminado por grande parte da sociedade. Nesse caso, se o domínio público da informação for confirmado, também poderá ser afastada a ocorrência do crime de calúnia, pois em razão da notoriedade do fato a honra da vítima não teria sido atingida pelas palavras propagadas pelo agente (NUCCI. 2014, p. 1023/1024). A medida encontra previsão no art. 523 do Código de Processo Penal.

Se, portanto, um agente público pretender representar ao Ministério Público ou, ele mesmo, ingressar em juízo com uma queixa-crime contra aquele que lhe desferiu imputações aparentemente caluniosas, (já que o Supremo Tribunal Federal sumulou a concorrência de legitimidade ativa em crimes dessa natureza no enunciado n. 714), ele deverá se certificar sobre a presença de todos os elementos constitutivos do tipo.

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E nesse caso, se quem realmente não cometeu qualquer ato ilícito no desempenho de suas funções for alvo dessas imputações, nem mesmo a notoriedade do fato pode ser capaz de tornar atípica a conduta perpetrada pelo ofensor, tendo em vista que essa exceção deve recair, exclusivamente, sobre parcela de agentes públicos notoriamente sem qualquer tipo de reputação moral e ética no desempenho de suas atribuições.

Não basta, para a aceitação da medida, dizer que a corrupção é inerente a qualquer agente público e que qualquer membro do corpo social pensa e manifesta esse tipo de pensamento. Pelo contrário, pois, como vimos, se “todo agente público é corrupto”, sempre haverá algum que não o é, e que, portanto, merece resposta punitiva quando ver violada a sua reputação.

Por outro lado, se a suposta vítima simplesmente sente-se ofendida com as palavras do agente, mas, em seu íntimo, conhece as ilicitudes que comete no âmbito da administração pública ou do exercício do seu mandato eletivo, inexiste boa reputação a ser amparada no presente caso, tendo em vista que o princípio orientador desse tipo de crime, o da não livre censurabilidade do comportamento e dos atributos alheios, não tem incidência na presente situação, que se apresenta muito mais grave e, portanto, merecedora de punição pelo ente estatal.

Dessa forma, tem-se que o crime de calúnia pode perfeitamente ser praticado contra os agentes públicos no exercício de suas funções, que por mais que sempre tenham liberalidade para ingressar ou não com a medida criminal punitiva contra o agente, deverão atentar-se e respeitar o que a Constituição Federal pretendeu resgatar ao exigir a moralidade e a probidade dos candidatos a qualquer cargo ou função pública, cujo termo deriva de cândido, puro, limpo no sentido ético (FERNANDES. 2014, p. 668).

Assim, aquele que ingressar com a medida criminal sabendo ser verdadeira a imputação caluniosa feita pelo agente, não só deixará de receber a resposta punitiva que deseja do Estado, como também responderá pelos ilícitos praticados, dada a objetividade jurídica e o tipo de ação que revestem os crimes comumente praticados pelos agentes públicos.

E o particular que profere a ofensa, por sua vez, deverá ter mais cautela e parcimônia quando efetuar julgamentos pessoais nesse sentido, pois ao generalizar a classe de agentes públicos à condição de “corruptos” estará, mesmo se duvidar da sua imputação, assumindo o risco de responder pela prática de crime de calúnia. 

Conclui-se, portanto, que a relação agente público-administrado deve ser pautada em condutas éticas de ambas as partes, objetivando, assim, que não se ofenda gratuitamente a moral alheia com comentários tecidos no mais alto calor dos acontecimentos e das discussões.


Referências bibliográficas:

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Juspodivm, 2014. 

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado: parte especial. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 13. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense. 2014.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.  

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