SUMÁRIO
INTRODUÇÃO. 1) BREVE PERSPECTIVA HISTÓRICA. 2) BOA-FÉ NO BRASIL. 3) NATUREZA JURÍDICA. 4) DISTINÇÃO ENTRE BOA-FÉ OBJETIVA E SUBJETIVA 5) PRINCIPAIS FUNÇÕES DA BOA-FÉ OBJETIVA 5.1) CONDUTA E INTEGRAÇÃO 5.2) ABUSO DIRETO 5.3) COMPLEXIDADE DAS OBRIGAÇÕES. CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA.
INTRODUÇÃO
A boa-fé é um dos mais marcantes pilares atuais da relação jurídica. Possui origem fortemente atrelada ao direito privado, porém, emana atualmente sobre todos os ramos do Direito, especialmente no Brasil, uma vez que sua aplicação nesse ordenamento jurídico se iniciou através de bases constitucionais.
Como se não bastasse, possui uma série de desdobramentos que lhe atribuem as mais variadas funções. Sua presença mais marcante, contudo, continua recaindo sobre o negócio jurídico, mais precisamente sobre os contratos, modalidade de negócio jurídico bilateral[1].
Em verdade, é difícil visualizar situação na qual se proceda a leitura de um contrato, a interpretação de suas disposições, a avaliação de sua execução ou até mesmo o exame do término da relação contratual sem levar-se em consideração a boa-fé.
Desse modo, se a boa-fé emana sobre todas as relações contratuais durante toda a existência de cada uma delas, é preciso estabelecer de maneira clara quais funções se pode atribuir à boa-fé nas relações contratuais, como aplicá-las e quais os limites para tal aplicação, se é que existentes. O objetivo desse trabalho é justamente examinar, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, essas questões.
1. BREVE PERSPECTIVA HISTÓRICA
A boa-fé possui origem no período arcaico da Roma antiga, quando nada mais era do que uma espécie de culto à Deusa Fides. O incumprimento do ritualismo de devoção e lealdade à Deusa Fides implicava sanções ao descumpridor.
Esse conceito inicial deu origem, ainda na Roma antiga, a três desdobramentos do conceito de fides.
O primeiro era a fides-poder, que era uma legitimação pela força. Ou seja, o mais forte era considerado virtuoso, pois possuía a fides-poder, o que legitimava o exercício de sua foca.
Em segundo lugar vinha a fides-promessa, que era a obrigação de se respeitar e cumprir a palavra empenhada.
Por fim, havia também a fides-externa, que consistia em sujeitar os povos vencidos pelo Império Romano ao império.
O fato de o conceito possuir desdobramentos tão distantes um do outro acabou esvaziando a força do conceito, que não foi levado adiante de maneira sistematizada.
Ainda assim, houve certa utilização da boa-fé em situações específicas. Isso porque as normas romanas para resolução de conflitos eram tão rígidas que não permitiam o enquadramento de qualquer situação diferente. Por isso, em alguns casos, o julgador passou a recorrer à boa-fé.
Isso se deu em época na qual muitos dos conceitos atuais de direito privado não existiam, o que reforçava o papel da boa-fé.
Assim, tomando-se por base a boa-fé, muitos conceitos do direito das obrigações foram cunhados. Por exemplo a tutela, a sociedade, a fidúcia e o mandato.
Contudo, com a determinação desses conceitos, a boa-fé perdeu boa parte de seu sentido prático, pois conceitos mais precisos acabavam resolvendo as questões. Acabou, então, a poucas situações como, por exemplo, a Usucapião.
Será possível verificar que é comum para a boa-fé originar institutos jurídicos que posteriormente adquirem autonomia.
A ausência de utilização e definição pragmática do instituto acabou esvaziando-o ainda mais, fazendo com que a boa-fé se tornasse completamente vaga e indeterminada, aplicável às mais variadas situações e dotada dos mais variados significados.
No Direito Canônico, por exemplo, equivalia a “ausência de pecado”. Já no Direito Germânico, assume feição relacionada à confiança, honra e lealdade.
Por isso, o conceito evoluiu de maneira ramificada, tendo sido melhor precisado no Direito Alemão. Isso porque as constantes mudanças da dinâmica comercial naquela localidade não permitiam que a lei fosse atualizada no mesmo ritmo de tais mudanças, atraindo a utilização da boa-fé para decisão das controvérsias.
Na França também houve movimento de definição e evolução da boa-fé. Tanto é assim, que a boa-fé foi inserida no Código Napoleão. O problema é que essa inserção se deu com bases apenas na boa-fé subjetiva, cujas dificuldades práticas serão abordadas mais para frente.
Já no Código Alemão, assume duas feições, a subjetiva e a objetiva. Segundo aquele regramento, a feição subjetiva seria a ausência de intenção de prejudicar a outra parte, ao passo que o aspecto objetivo diria respeito à conduta efetivamente adotada pela parte. Essa diferenciação, dotada de maior aplicabilidade, permitiu mais desdobramento e evolução da boa-fé.
Influenciada pelo Direito francês, a legislação portuguesa adotou inicialmente somente o conceito de boa-fé subjetiva, o que também diminuiu consideravelmente o valor prático do instituto. Em um segundo momento, contudo, incorporou a definição germânica de boa-fé objetiva, além de desenvolver ainda mais o conceito tanto na doutrina quanto na jurisprudência[2].
Antes desse desenvolvimento todo, porém, o Código Civil de 1916 foi elaborado e aprovado no Brasil, tomando por base justamente os ordenamentos europeus nos quais a boa-fé não possuía posição destacada.
Tendo em vista que esse Código Civil vigorou no país por quase noventa anos, acabou engessando a evolução do conceito de boa-fé, que somente começou a engatinhar no país com a promulgação da Constituição Federal de 1988, ganhando mais força ainda com a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor em 1990[3].
Hoje, contudo, tanto nos ordenamentos jurídico europeus quanto no Brasil, que conta com nova legislação civil desde 2002[4], a boa-fé é instituto sólido e desenvolvido sobretudo em torno de seu aspecto objetivo, o que permite vasta aplicação do conceito às mais diversas situações.
Essa positivação era mais do que necessária e inafastável, pois, como bem pondera Emílio Betti[5], a boa-fé é, na realidade, conceito suprajurídico.
Ele aponta que a boa-fé deriva da simples expectativa de um indivíduo, no plano concreto, confie que a outra parte cumprirá o que foi acordado. Ao Direito cabe meramente incorporar tal fato a fim de conceder segurança a tais expectativas.
Em um primeiro momento pode-se ter a impressão de que essa referência diria respeito ao direito dos contratos. Não se nega que a boa-fé possui posição destacada no direito dos contratos. Contudo, o acordo entre indivíduos com expectativa de cumprimento extrapola a esfera contratual do direito privado. Afinal, como bem coloca Thomas Hobbes[6], seguido por outros teóricos do Direito, a vida em sociedade surge a partir de um contrato ao qual todos os indivíduos devem observar, pois geram essa expectativa. Unem-se para criação da paz.
O não cumprimento, portanto, frustra tal expectativa e possibilita variadas sanções, atualmente existentes nas mais diversas sociedades. Pode-se concluir, então, que a boa-fé sempre esteve presente, aplicável e exigível ao comportamento humano, sobretudo na esfera pública e de convivência social.
É a esfera privada, estruturada em torno do princípio da autonomia privada, que exige maior regramento e detalhamento da boa-fé. Isso para que não haja dúvidas de que, mesmo estando os indivíduos dotados de diversas liberdades (p. ex. liberdade de celebrar e liberdade de estipular), um dos círculos que limita a liberdade inerente à autonomia privada é justamente a boa-fé, pelo que sua extrapolação é vedada e configura ilicitude.
2. BOA-FÉ NO BRASIL
A doutrina foi praticamente consensual ao entender que o Código Beviláqua não trazia consigo o conceito de boa-fé, o que, conforme mencionado, retardou imensamente a evolução e aplicação desse instituto no país, já que o código possuiu longa vigência.
Contudo, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que trouxe diversos princípios e garantias individuais e coletivas, como a dignidade da pessoa humana, a solidariedade e a isonomia, doutrina e jurisprudência passaram a reputar possível aplicar o conceito de boa-fé com base nos preceitos constitucionais existentes[7].
Ato contínuo, o Código de Defesa do Consumidor trouxe expressamente a boa-fé como um de seus preceitos, ampliando ainda mais a corrente de aderência de que exigir que os demais indivíduos se portem com boa-fé é um direito de todos, pelo que, nem sequer faria sentido que esse regramento fosse benefício de exclusividade dos consumidores.
Outro argumento era o de que o novo Código Civil, que estava em tramitação no congresso nacional, previa a boa-fé, pelo que não fazia qualquer sentido continuar negando aplicabilidade ao conceito.
Ainda assim, tendo em vista a visão majoritariamente positivista de nosso direito, mesmo que salte aos olhos de qualquer indivíduo o fato de que o mínimo que o convívio em sociedade demanda é a postura de boa-fé de uns com os outros, continuava existindo grande corrente em sentido contrário, de que sem a positivação do conceito no regramento civil, não havia que se falar em boa-fé.
Finalmente, então, veio a entrada em vigor do Código Civil atual, ocorrida em 2002. O código positivou o conceito de boa-fé, com destaque para o disposto nos artigos 113, 187 e 422.
Conduto, o novo ordenamento civil nacional não se limitou a meramente positivar a boa-fé em alguns artigos. Ao contrário, Miguel Reale, principal idealizados dessa legislação, tratou de esclarecer que o código foi escrito tomando por base os princípios da eticidade, operatividade e socialidade[8]. Renan Lotufo acrescentou ainda, pertinentemente, o princípio da atividade como base da legislação civil[9].
O fato é que a eticidade está centrada justamente na boa-fé[10], o que revela que, muito embora o conceito de boa-fé deva ser indubitavelmente respeitado nas situações em que o código prevê, toda a legislação está sujeita aos ditames da boa-fé e deve ser interpretada de acordo com ela, pois está fundada no princípio da eticidade.
Daí se percebe a dimensão da boa-fé no ordenamento jurídico brasileiro hoje. Pode ser extraído diretamente das normas constitucionais, tanto que aplicável antes da entrada em vigor do novo Código Civil, integra a interpretação das leis de consumo e, sobretudo, recai atualmente de maneira positivada sobre todo o direito privado.
3. NATUREZA JURÍDICA
Não é possível ao Direito prever toda e qualquer situação concreta que possa ocorrer aos indivíduos partícipes do ordenamento jurídico. Por isso, muitas vezes é necessário socorrer-se, então, a normas flexíveis, que possam ser adaptadas ao caso concreto.
Embora a tarefa pareça, num primeiro momento, simples, revela-se na prática muito mais árdua. Isso porque, não basta ao Direito estabelecer norma flexível, é preciso também estabelecer limites e direções para que tais normas somente admitam interpretação que agregue ao sistema jurídico os valores que se pretende atribuir à aplicação concreta da norma jurídica.
É claro que essas normas flexíveis são os princípios gerais de direito[11]. A teoria tridimensional do direito de Miguel Reale[12] bem explica como a norma jurídica pretende interpretar o fato à luz ou em direção a determinado valor. Contudo, a problemática que se coloca é justamente o fato de que, conforme mencionado, não pode o Direito prever exaustivamente as infinitas situações concretas demandantes de normas.
Pode-se, então, complementar a teoria de Miguel Reale com a pirâmide de Hans Kelsen[13], que estabelece a hierarquia das normas, partindo da norma fundamental do sistema jurídico, passando pela Constituição Federal, leis complementares, leis ordinárias e assim sucessivamente.
O sistema jurídico, então, é estruturado em modelo piramidal no qual as normas de hierarquia superior (princípios) direcionam as normas de hierarquia inferior para que sejam interpretadas de maneira a refletir o valor que se pretende atribuir a essas normas.
Coloca-se, então, como questão, como isso pode ser refletido no plano prático. Ou seja, como é possível concretizar uma norma dotada de alto grau de abstração, hierarquia superior (princípio) para que ingresse de maneira clara e ordenada no sistema jurídico com capacidade de direcionar as normas hierarquicamente inferiores, tudo isso, é claro, buscando ainda refletir o valor que se pretende tutelar.
Todas essas funções são alcançadas concretamente no sistema jurídico fazendo-se uso de cláusulas gerais[14]. As cláusulas gerais são o meio através do qual os valores da sociedade, já dotados de alta significância e convertidos em princípios gerais de direito, ingressam sistema jurídico.
Conforme já mencionado anteriormente, a boa-fé nas relações civis foi, por muito tempo, extraída diretamente de interpretação sistemática dos princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, a isonomia e a solidariedade. Só se pode concluir, então, que a boa-fé é um princípio geral de direito. É essa sua natureza jurídica.
Mais que isso, da leitura dos artigos 113 e 422 do Código Civil que impõe o dever de se interpretar negócios jurídicos e contratos de acordo com a boa-fé e, ainda, das disposições do artigo 187 que veda até mesmo o exercício daquilo que em princípio se tem como um direito, justamente por violar a boa-fé, conclui-se que a função maior desses artigos, com relação ao tema ora abordado, é instituir a cláusula geral da boa-fé no Código Civil.
Funcionam, portanto, como veículo de positivação da boa-fé no Código Civil.
Tendo em vista a já mencionada origem constitucional do princípio da boa-fé, é possível afirmar seguramente que todo o Código Civil deve observar a boa-fé. Mais do que isso, é possível inclusive confluir que eventual e hipotética revogação desses artigos supramencionados não removeria o princípio da boa-fé de nosso ordenamento jurídico.
Tais cláusulas gerais, portanto, operam como reforço redobrado à boa-fé, o que significa que esse princípio deve ser sempre observado, mas o ordenamento jurídico exige atenção redobrada a ele nos casos em que foi incluída, no Código Civil, cláusulas gerais com intuito específico de reforçar sua observância.
Conclui-se então que a boa-fé possui natureza jurídica de princípio constitucional, o que lhe permite incidir sobre todo o Direito, nas mais diversas situações. Atualmente, contudo, tal princípio encontra-se positivado no Código Civil por meio da inserção de cláusulas gerais de boa-fé, o que reforça a observância desse princípio no Direito Civil, especialmente nas circunstâncias abordadas pelos artigos responsáveis pela positivação do princípio da boa-fé.
Evitou-se até o momento referir-se à boa-fé como princípio porque entendia-se que a constatação de ser essa a natureza jurídica desse instituto era necessária para se evitar o uso inadvertido de termos jurídicos. Passa-se, portanto, a referir-se à boa-fé no presente excerto interpretando-a como princípio geral de direito.
4. DISTINÇÃO ENTRE BOA-FÉ OBJETIVA E SUBJETIVA
A principal divisão da boa-fé é, sem dúvida, entre as espécies subjetiva e objetiva{[15], atribuindo-se à boa-fé subjetiva um caráter psicológico e à boa-fé objetiva uma regra de como as partes devem se comportar no plano real.
Menezes Cordeiro bem aponta que, muito embora a boa-fé subjetiva possua originariamente mera conotação psicológica acerca da intenção do agente, o que pouco contribuiria para a prática jurídica, possui também um sentido ético[16].
Por esse sentido ético, muito embora não se possa adentrar à psique da parte para aferir qual era sua real intenção, pode-se exigir-lhe um comportamento ético. Daí porque a boa-fé subjetiva é atualmente entendida e empregada quando se está diante da alegação de desconhecimento de algum vício.
Note-se que não se adentra ao plano psicológico da parte para examinar se, de fato, há ou não conhecimento acerca do vício alegado. Ao contrário, examina-se as circunstâncias fáticas para concluir se o agente diligente e ético deveria ou não conhecer aquele vício, independentemente de efetivamente ter ou não dito conhecimento.
E, caso positivo, independentemente de a parte conhecer ou não ditos vícios, fica sujeita às consequências aplicáveis à hipótese de ter ciência de tais vícios.
Percebe-se, portanto, o campo restrito de aplicação do aspecto subjetivo da boa-fé.
Em sentido diametralmente oposto, a boa-fé objetiva guarda relação com qualquer comportamento efetivamente adotado pela parte antes, durante e após toda a relação contratual.
O comportamento adotado é, então, comparado com a confiança que se gerou na contraparte para se dito comportamento foi ou não conforme o Direito[17]. Não se comportando a parte conforme a boa-fé fica sujeita à sanção decorrente da violação ao princípio da boa-fé.
Menezes Cordeiro[18]. apregoa que a aferição do despertar ou não da confiança deve adotar como pressupostos a situação, que para ele se reflete em cuidado extra com aquele que simplesmente adere à relação contratual; a justificação, que é a presença de elementos razoáveis - circunstanciais e com base no comportamento da contraparte – a justificar a confiança; investimento na confiança, que é a adoção de comportamento concreto pela parte com base na confiança depositada; e por fim a possibilidade de se imputar as consequências do comportamento baseado na confiança àquele que deu causa a ela.
Segundo o autor, esses requisitos não precisam estar todos presentes nem se pode afirmar que bastaria a presença de um. Ao contrário, é preciso examinar o caso concreto.
De todo modo, surgida a confiança, seu desrespeito implicará violação da boa-fé objetiva, ficando a parte descumpridora sujeita às consequências derivadas das funções da boa-fé objetiva, a seguir examinadas.
5. PRINCIPAIS FUNÇÕES da boa-fé objetiva
Diversos autores abordam as funções que a boa-fé pode adquirir. Embora similares, há algumas distinções entre as funções trazidas pelos autores.
Menezes Cordeiro, por exemplo, traz diversas derivações da boa-fé objetiva[19]. O autor afirma que da boa-fé decorre a culpa in contrahendo, também conhecida como responsabilidade pré-contratual, segundo a qual, as partes são obrigadas a oferecer proteção, lealdade e informação umas às outras mesmo antes de o contrato ser celebrado.
Ele também coloca como derivação da boa-fé a integração dos contratos. Nessa perspectiva, a boa-fé possui função interpretativa que busca preencher eventuais lacunas contratuais segundo os ditames da boa-fé.
O mesmo autor também entende que a boa-fé opera como fundamento para vedação ao abuso do direito, para os efeitos da onerosidade excessiva das e para a chamada complexidade das obrigações, que amplia as disposições contratuais somando a elas os deveres de proteção, lealdade e informação.
Menezes cordeiro também aborda o tema da materialidade subjacente da boa-fé, que possui três desdobramentos. O primeiro deles é a conformidade material, segundo a qual não basta que as partes promovam mera adequação formal de seu comportamento ao Direito, é preciso que o conteúdo material da conduta também seja adequado.
Em segundo lugar, coloca-se a idoneidade valorativa, que proíbe que a parte adote uma conduta indesejada pelo Direito que a beneficie e frua livremente desses benefícios.
Por fim, também decorre da materialidade subjacente o equilíbrio no exercício das prestações, que proíbe que uma parte imponha à outra um prejuízo gratuitamente, ou mesmo com o intuito de obter uma vantagem através da imposição desse prejuízo.
A despeito da materialidade subjacente, já sumariamente abordada, pode-se verificar cinco funções decorrentes da boa-fé trazida por Menezes Cordeiro: culpa in contrahendo, integração, abuso do direito, onerosidade excessiva e complexidade das obrigações
Tereza Ancona Lopez[20], por seu turno, atribui três funções à boa-fé: regra de conduta obrigatória dos contratantes, regra de interpretação dos negócios jurídicos e limitadora de direitos subjetivos.
Já Luíz Renato Ferreira da Silva[21] atribui três funcionalidades tidas como mais específicas: hermenêutica, enriquecimento do vínculo contratual e a mitigação de posições jurídicas.
Com base na análise desses três autores, é possível perceber, então, que há certa similaridade entre a doutrina, já que há grande proximidade entre integração, e hermenêutica. A boa-fé como norma de conduta também parece ser consenso.
Da mesma maneira, o abuso do direito, a limitação de direitos subjetivos e a mitigação de posições jurídicas também parecem caminhar paralelamente.
Igualmente pode-se interpretar a complexidade das obrigações, o enriquecimento do vínculo contratual como impositores de regras de conduta às partes do vínculo contratual.
Não se rechaça, em absoluto, a afirmação de Menezes de Cordeiro de que a culpa in contrahendo e a onerosidade excessiva possuem bases na boa-fé.
Contudo, parece que a inclusão atual desses institutos como fontes originárias de funções da boa-fé objetiva não soa descompassado.
Afinal, a culpa in contrahendo, como o próprio nome sugere, dialoga de maneira bastante intensa também com a responsabilidade civil. Além disso, no que diz respeito à boa-fé objetiva, parece ser derivada dos deveres anexos de proteção, lealdade e informação e não uma função autônoma, como coloca Rogério Ferraz Donnini[22]. Aliás, aceitar a culpa in contrahendo como função autônoma da boa-fé atrairia necessariamente a culpa pos pactum finitum (ou responsabilidade civil pós-contratual) também como outra função para esse princípio[23].
Na mesma toada, a onerosidade excessiva, ainda que seja derivada da boa-fé objetiva, acabou se tornando instituto rígido, com requisitos bem definidos e criteriosos, dispostos expressamente em lei[24]. Isso faz sentido, pois a utilização excessiva da onerosidade excessiva poderia legitimar qualquer desculpa como exoneradora do dever de cumprir o contrato (pacta sunt servanda), o que acabaria implodindo a própria teoria contratual. Porém, isso acaba distanciando esse instituto da boa-fé, na medida em que a boa-fé objetiva é princípio geral, disposto por cláusula aberta, adaptável às mais variadas situações, enquanto a onerosidade excessiva, conforme apontado, tem entre suas premissas rigidez, especificidade e excepcionalidade.
É bem verdade que o abuso do direito também é previsto textualmente pela lei. Porém a lei também faz vínculo direto entre esse instituto e a boa-fé, além de possuir diversas funções derivadas e ser aplicável às mais diversas situações, dispensando inclusive o vínculo contratual como requisito.
Por isso, parece mais próximos à atual compreensão e aplicação da boa-fé os quatro institutos os quais a doutrina considera, coincidentemente, como derivações da boa-fé.
Passa-se, portanto, à abordagem desses institutos.
5.1. CONDUTA E INTEGRAÇÃO
Não é possível ao contrato ou mesmo á lei preverem e interpretarem todas e quaisquer circunstâncias que possam surgir, muito menos antever o sentido e a extensão em que todas as obrigações assumidas pelas partes devam ser interpretadas.
Dependendo do tipo contratual e da circunstâncias, pode ser difícil até mesmo auferir se determinada prestação foi ou não assumida pela parte e, por consequência, se é ou não devida. Outra situação também possível é a dificuldade em se interpretar o que foi contratado e deve ser remunerado daquilo que foi feito por mera liberalidade, não havendo porque integrar o preço.
Em todas essas circunstâncias, caberá ao juiz da causa interpretar o contrato para determinar se algo é devido e por quem. Para tanto, é preciso adotar algum parâmetro.
O parâmetro a ser adotado é justamente a boa-fé. Conforme já explicitado, uma das fontes da boa-fé é a confiança depositada na parte contrária.
A confiança exige que as partes se comportem de maneira correta e leal, com o fim de não frustrar essa confiança existente e atingir a expectativa originada, desde que razoável, é claro[25].
Impõe, portanto, regra de conduta. Derivada dessa regra de conduta, está a integração do contrato.
As lacunas contratuais são aquelas situações cujo regramento não pode ser encontrado nem na lei nem no próprio contrato, cabendo ao Juiz integrar o contrato.
Diz-se integrar o contrato porque o Juiz deverá determinar qual o comportamento cabível naquela situação em que as disposições foram omissa. É como se escrevesse, então, uma cláusula que integraria as demais disposições contratuais para reger aquela situação.
Para integrar o contrato, é claro que o Juiz deverá examiná-lo à luz da boa-fé objetiva. Ou seja, deverá levar em conta dois fatores: (i) como a parte deveria se comportar à luz da boa-fé; e (ii) como efetivamente se comportou.
Assim, da primeira análise, o Juiz irá determinar a extensão da confiança gerada pelas disposições contratuais e qual era o comportamento esperado pelo depositante da confiança. Se o pleito da contraparte extrapola essa confiança, aparentemente nenhuma prestação é devida. Se, contudo, o disposto em contrato, socialmente contextualizado, é claro, gerou uma expectativa não atendida, então mais parece que essa prestação era devida.
Mas não é só. É preciso levar em conta como as partes efetivamente se comportaram. Se, diante da situação lacunosa, muito embora fosse possível concluir que havia razões para determinada expectativa, se provar que a contraparte na verdade nunca esperou verdadeiramente isso, ou seja, se comportou demonstrando não considerar aquela prestação como integrante do contrato, então, nada é devido.
De outro lado, se o devedor da prestação se comportou de modo a reconhecer que aquilo era devido, reconhecendo expressa ou tacitamente, que estava em falta com o pactuado, por obvio, a prestação é devida.
Verifica-se então o lasso indissociável entre comportamento integração. Ambos derivam da teoria da confiança e dependem um do outro, na medida em que só se pode integrar o contrato com base na conduta, mas só se pode aferir a conduta com base na confiança gerada.
5.2. ABUSO DO DIREITO
O abuso do direito está positivado em nosso ordenamento jurídico no artigo 187 do Código Civil[26].
A leitura do artigo revela que o abuso do direito não deriva só da extrapoção dos limites impostos pela boa-fé, mas também quando se extrapola a finalidade econômica, social e os bons costumes.
É claro que a clareza da lei é importante para se evitar interpretações equivocadas ou restritivas. Porém, adotando-se um ponto de vista ideal, em que os interpretes se comportem de maneira cooperativa, pode-se concluir que a lei é redundante.
Afinal, se a boa-fé tutela justamente a confiança surgida na contraparte em virtude do comportamento das partes, evidentemente que aquele que extrapola a finalidade econômica, social ou os bons costumes ao exercer seus direitos está violando a confiança gerada, o que é suficiente para se concluir por violação da boa-fé e abuso do direito.
Nem se argumente que o artigo recai sobre todo o direito e não apenas sobre a teoria contratual, pois a boa-fé igualmente recai sobre todo o direito e o que é a teoria do contrato social se não confiança.
Assim, evidente a intenção do legislador de apenas reforçar e esclarecer a dimensão em que se exercer o direito sem abusar. Por isso, o exame do abuso do direito à luz da boa-fé parece ser o mais pertinente.
Giovanni Ettore Nanni bem coloca que a compreensão mais aplicada atualmente ao abuso de direito com bases na boa-fé é na qualidade de cláusula geral delimitadora do exercício de direitos[27].
Dessa compreensão derivam as figuras nomeadas doutrinariamente como supressio, surrectio, venire contra factum proprium e tu quoque.
A supressio[28] consiste basicamente em se interpretar como violador da boa-fé a atitude de se reivindicar um direito após longo período no qual tal direito poderia ter sido reivindicado, pois surgiram situações jurídicas para tanto, mas isso jamais foi feito.
Assim, com base na teoria da confiança, despertou-se na contraparte a expectativa legítima de que, em verdade, tal direito jamais seria exercido. Tal expectativa acaba por vedar o exercício desse direito ao detentor dele.
A surrectio funciona de certo modo como o espelho da supressio. Afinal, consiste justamente no fato de que, muito embora não houvesse direito a tal, uma parte sempre obteve determinada prestação sem que a contraparte jamais alegasse que tal direito, em verdade, inexistia.
Destarte, também com base na confiança, conclui-se que a parte adquiriu expectativa legítima de ser detentora desse direito, pelo que tal direito surge como se sempre existisse, podendo ser reivindicado com base na boa-fé.
Já o venire contra factum proprium, também conhecido como vedação ao comportamento contraditório, é, como o próprio nome diz, a proibição de que a parte aja contraditoriamente[29].
Assim, se, por exemplo, interpretou determinada obrigação em um sentido porque isso lhe favorecia, não pode agora afirmar que a interpretação correta seria outra, simplesmente porque a interpretação inicial lhe desfavorecia. Tal objetivo seria barrado pela boa-fé, com base no venire contra factum proprium.
Por fim, pode-se mencionar também a tu quoque, que é compreendida como não exigir do outro algo que a própria parte não cumpre ou, ainda, valer-se da própria torpeza. Franz Wieacker[30] coloca a tu quoque, como a regra: não faça aos outros o que não quer que façam a você.
Assim, se a parte, por exemplo, participa num contrato que dispõe local para entrega de mercadorias pelas partes, não pode entregar em local diverso para, em seguida, reivindicar que a contraparte somente possa entregar no local contratualmente estabelecido.
Em igual sentido, não pode entregar a mercadoria no local diverso por escolha sua e posteriormente alegar que sofreu prejuízo por não ter entregado dita mercadoria no local contratualmente pactuado.
5.3. COMPLEXIDADE DAS OBRIGAÇÕES
O vínculo contratual é formado pela obrigação principal, que é o objeto central da contratação (p. ex. na compra e venda, a entrega da coisa e o pagamento do preço) e também pelas obrigações secundárias (p. ex. na compra e venda, assegurar que o bem a ser entregue esteja livre e desimpedido).
Tais obrigações podem derivar tanto da lei quanto do contrato. Ou seja, os contratantes podem ser obrigados a cumprir a obrigação principal e as secundárias porque a lei assim determina ou, ainda, porque expressamente se comprometeram voluntariamente a isso através do contrato.
A boa-fé, por sua vez, amplia e enriquece a gama de obrigações derivadas da lei e do contrato, fazendo com que a conduta das partes também integre a relação contratual.
Em medida similar ao que acontece com a boa-fé na vedação ao abuso do direito, a forma como a parte se comporta ao longo da relação contratual acaba por gerar obrigações adicionais àquelas inicialmente previstas tanto pela lei quanto pelo contrato. O vínculo torna-se, portanto, maior e mais complexo.
Note-se que quando se fala em conduta, não se está a restringir a expressão apenas àquelas adotadas pela parte, mas também àquelas que ela deveria adotar ou deixar de adotar. Como contrato não existe sem confiança, a confiança em determinado agir já surge desde a celebração do contrato, ampliando-se desde logo a extensão do vínculo para se anexar essa expectativa de conduta.
Justamente por isso, atribui-se a essa característica da boa-fé objetiva de ampliação do contexto contratual o nome de deveres anexos, pois verdadeiramente anexa outros deveres e obrigações ao contrato, além das primárias e secundárias que se extrai da lei e do próprio contrato.
Vários são os deveres anexos trazidos pela doutrina. Luis Renato Ferreira da Silva coloca o dever de informar, o dever de lealdade e o dever de cooperação, proteção e cuidado[31].
Já Lucíola F. L. Nerilo menciona os deveres de cuidado, previdência, esclarecimento, aconselhamento, prestação de contas, colaboração, cooperação, respeito ao patrimônio do álter, sigilo, omissão e segredo[32].
Outros doutrinadores também trazem outras sugestões e divisões, sendo possível notar que em todas elas parece haver certa sobreposição de deveres. Afinal, aquele que age com lealdade necessariamente informa e coopera. Igualmente, aquele que não informa, deixa de cooperar.
Prestar contas nada mais é do que esclarecer, colaborar e cooperar são quase sinônimos tomar cuidado e respeitar o patrimônio podem assumir o mesmo significado em certas circunstâncias.
Assim, mais importante do que destrinchar e definir cada possível dever anexo é compreender o espírito de enriquecimento da relação contratual com base na boa-fé.
Conforme já mencionado, a boa-fé possui bases constitucionais, pelo que seu observar exige que se haja em solidariedade, que se enxergue a contraparte como um igual.
Portanto, essa visão do vínculo contratual é que faz com que se deva agir com lealdade, prestando todas as informações que possam ser relevantes, desde esclarecimentos até prestações de contas.
Não se pode executar o contrato de modo a pôr em risco a outra parte, a não ser que se esteja diante de situação em que o próprio objeto do contrato é o risco, como nos contratos aleatórios. E aqui o risco pode adotar as mais variadas feições, como risco à integridade física ou mesmo à saúde financeira.
Por consequência, o que parece ser mais importante a respeito da complexidade das obrigações é que elas ampliam os deveres das partes para além do contratual e legalmente disposto.
O que os contratantes devem ter em mente, acima de tudo, é que o contrato, a partir da incorporação da boa-fé, não mais pode ser enxergado como uma disputa, na qual uma parte torce pelo inadimplemento da outra para então invocar disposições do contrato que o desequilibrem.
Ao contrário, um dos deveres anexos que merecer destaque especial é o dever de cooperação para o adimplemento. Ou seja, se as partes decidiram se vincular por meio de contrato, depositaram confiança uma na outra de que possuem objetivos comuns a serem atingidos através da execução do contrato e devem agir de modo a cooperar com o atingimento dessa finalidade, que nada mais é do que o adimplemento.
Uma última observação que merece ser destacada a esse respeito é que, se a lei ou o contrato preveem um dever que originalmente se teria como anexo, ele deixa de ser anexo e passa a ser secundário. Assim, na relação de consumo, por exemplo, como a lei coloca expressamente o dever de informar, não se pode dizer que o dever de informar o consumidor seja dever anexo derivado da boa-fé e sim que é dever secundário expressado pela lei.
CONCLUSÃO
Não há como duvidar da relevância da boa-fé, cujo papel, muito embora recaia sobre todo o direito, possui destaque no direito privado.
A boa-fé possui natureza principiológica, positivada por meio de cláusulas gerais, e é subdividida em boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva.
Enquanto a boa-fé subjetiva denota um dever ético de saber ou procurar saber aquilo que razoavelmente se espera que a parte tenha conhecimento, a boa-fé subjetiva traduz uma norma de conduta.
As principais funções da boa-fé objetiva são a imposição de um dever de (i) conduta às partes, (ii) a integração do contrato, que nada mais é do que interpretá-lo e preencher suas lacunas segundo a boa fé, (iii) a vedação ao abuso do direito e (iv) a ampliação da complexidade das obrigações.
A vedação ao abuso do direito se divide em pelo menos quatro figuras tradicionais. São elas a suppressio, a surrectio, a venire contra factum proprium e o tu quoque.
Já a ampliação da complexidade das obrigações é subdividida em diversos deveres anexos, cujo rol não é esgotado pela doutrina. Pode-se reputar como os mais comuns os deveres de proteção, informação, lealdade e cooperação.
Em função dessas funções primarias, a boa-fé se desdobra em outras tantas funções como a culpa in contrahendo, a culpa post pactum finitum, o equilíbrio nas prestações contratuais e o dever de mitigação dos danos[33].
Daí já se percebe a ampla complexidade do instituto.
De todo modo, doutrina e jurisprudência, por vezes, parecem cometer alguns equívocos na utilização da boa-fé. Reputa-se dois deles mais comuns e intimamente ligados.
O primeiro é a aplicação da boa-fé para resolver uma disputa quando a cláusula contratual ou a própria lei já são suficientes e a aplicação delas não traduzem qualquer ilicitude. Muitas vezes os julgadores utilizam a boa-fé como mero reforço do dispositivo contratual. Por exemplo, afirmam que a parte viola a cláusula X do contrato e também a boa-fé.
Por mais pese o reforço argumentativo, a retórica utilizada é equivocada e isso pode ser extraído da análise do segundo aspecto.
O enriquecimento contratual ou a ampliação da complexidade das obrigações é o efeito gerado pela boa-fé de expandir a dimensão do pacto contratual além do que impõe a lei e a declaração negocial das partes. Isso faz com que os deveres laterais, acessórios ou anexos orbitem em torno dessas disposições, impondo-se também às partes.
Com efeito, aquilo que decorre de lei ou declaração negocial é dever principal ou secundário, ao passo que o que decorre da boa-fé é dever anexo.
Sendo assim, se as cláusulas do contrato ou a lei dispõe determinada norma, a não ser que a boa-fé sirva para infirmar o que está ali disposto, a boa-fé possui força secundária em relação a essas disposições primárias ou secundárias.
Não há, consequentemente, como resolver uma disputa no mesmo sentido do disposto pela cláusula através da aplicação da boa-fé, com força de aplicação mais relativa do que as disposições complexas.
A título de conclusão, encerra-se reconhecendo a relevância e os inúmeros desdobramentos úteis principalmente à relação contratual que são trazidos pela boa-fé, sobretudo pela boa-fé objetiva.
Contudo, também entende-se que a utilização do instituto deve ser feita dentro de suas funções, subsidiárias ao texto legal e às disposições contratuais. Sem esquecer, contudo, que somente a violação da boa-fé será capaz de removê-la desse segundo plano e alçá-la ao primeiro, justamente para afastar a lei ou a cláusula que possivelmente façam parecer lícita uma conduta que, na verdade, viola a boa-fé objetiva.