1. INTRODUÇÃO
A medida provisória é espécie normativa comumente adotada pelo Presidente da República no caso de relevância e urgência, cujos efeitos começam a operar imediatamente, malgrado seja necessária a sua ulterior submissão ao Congresso Nacional, para que se converta em lei.
Previstas no ordenamento jurídico brasileiro desde a Constituição de 1937, sob a forma do vetusto Decreto-Lei, somente após a promulgação da Constituição Federal de 1988 as medidas provisórias ganharam relevo entre as demais modalidades que compõem o processo legislativo brasileiro.
Hodiernamente, sob o pálio da relevância e urgência, os prefeitos de algumas regiões do país vêm se utilizando dessa modalidade legislativa para regulamentar determinadas matérias no âmbito municipal, acalorando cada vez mais a discussão doutrinária e jurisprudencial sobre a constitucionalidade ou não dessas medidas.
Tal apanágio ainda se mostra impraticável em alguns estados, ante a inexistência de previsão expressa na Constituição, a merecer uma reforma nesse particular, cujo aditamento possibilitará aos prefeitos a utilização dessa espécie legislativa para regulamentarem assuntos de interesse local.
Também é necessária que haja previsão na Lei Orgânica da respectiva urbe, para que o Poder Executivo municipal lance mão de medidas provisórias, observando-se, destarte, os requisitos a elas inerentes.
A adoção das medidas provisórias também no âmbito municipal ensejará uma melhor instrumentalização dos atos de gestão, mormente no que diz respeito a situações relevantes e urgentes, como corolário da autonomia municipal conferida pela Constituição Federal da República.
2. AUTONOMIA MUNICIPAL
A autonomia entre os entes federativos – união, estados-membros, distrito federal e municípios – é princípio que emana da Constituição Federal de 1988. Essa autonomia diz respeito, dentre outros, à forma política, administrativa, organizacional e financeira que cada ente detém.
Como é cediço, os municípios gozam de autonomia própria, de modo que os mesmos possuem legitimidade para regular e disciplinar, através de lei local, sua respectiva administração – assim considerados sua organização e funcionamento –, também sua estrutura administrativa, seus órgãos e suas instituições.
Nessa linha de intelecção, a doutrina é enfática (MEIRELLES, 2008, p. 128):
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Sociológico – O Município é o agrupamento de pessoas de um mesmo território, com interesses comuns e afetividade recíprocas, que se reúnem em sociedade para a satisfação de necessidades individuais e desempenho de atribuições coletivas de peculiar interesse local.
Legal – O Município é pessoa jurídica de direito público interno (artigo 41, inciso III do Código Civil Brasileiro), dotado de capacidade civil para exercer direitos e contrair obrigações, além de responder por todos os atos de seus agentes (artigo 37, § 6º da Constituição).
Político – O Município é entidade estatal de terceiro grau na ordem federativa, com atribuições próprias e governo autônomo, ligado ao Estado-membro por laços constitucionais indestrutíveis.
Consoante de observa do excerto doutrinário em destaque, cada ente municipal possui garantia de autoorganização, autoadministração e autogoverno, de modo que a Constituição Federal lhes confere o poder de elaborar as suas próprias constituições e leis orgânicas, de acordo com as competências nela previstas.
É o que se depreende da análise do art. 18. c/c art. 34, inciso VII, alínea c, do Diploma Constitucional:
Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
(...)
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
c) autonomia municipal;
Embora a autonomia municipal tenha sido implementada no ordenamento jurídico brasileiro a partir da promulgação da Constituição de 1946, somente com o advento da atual Carta Magna os municípios passaram a receber um tratamento diferenciado, se comparado aos demais entes governamentais.
A partir do reconhecimento dessa autonomia os municípios deixaram de figurar como meras delegações dos estados-membros para deterem competências administrativas e legislativas próprias, inclusive, com o apanágio de elaborarem a sua própria lei orgânica e suas normas locais.
Sobre esse aspecto, a doutrina erige a autonomia municipal a um elemento constitutivo do estado de direito (CANOTILHO, 2003, p. 248), vejamos:
A garantia da administração municipal autônoma é um elemento constitutivo de estado de direito. A história mostra ser o problema da administração autônoma uma questão estreitamente conexionada com o princípio democrático. A “democracia descentralizada”, isto é, a democracia assente num “poder local autônomo” assegurava a separação territorial de poderes e contribuía para uma maior participação democrática no exercício do poder.
Seguindo essa mesma senda, por ocasião do julgamento da ADI 1.842, o Supremo Tribunal Federal reafirmou o seu entendimento quanto ao reconhecimento da autonomia municipal, consoante se observa da seguinte ementa:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE CONTRA LEI COMPLEMENTAR 87/1997, LEI 2.869/1997 E DECRETO 24.631/1998, TODOS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, QUE INSTITUEM A REGIÃO METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO E A MICRORREGIÃO DOS LAGOS E TRANSFEREM A TITULARIDADE DO PODER CONCEDENTE PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS DE INTERESSE METROPOLITANO AO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. (...) AUTONOMIA MUNICIPAL E INTEGRAÇÃO METROPOLITANA. A CF conferiu ênfase à autonomia municipal ao mencionar os Municípios como integrantes do sistema federativo (art. 1º da CF/1988) e ao fixá-la junto com os Estados e o Distrito Federal (art. 18. da CF/1988). A essência da autonomia municipal contém primordialmente (I) autoadministração, que implica capacidade decisória quanto aos interesses locais, sem delegação ou aprovação hierárquica; e (II) autogoverno, que determina a eleição do chefe do Poder Executivo e dos representantes no Legislativo. (...)”
(ADI 1.842 /2013, Plenário, DJE de 16-9-2013.).
É indubitável que o gozo pleno da autonomia municipal entremostra-se salutar para a administração pública, sobretudo no que diz respeito ao regular funcionamento dos serviços públicos; a regulamentação estatutária dos servidores municipais; a educação; o lazer; poder de polícia; a instituição e arrecadação de tributos etc.
Consigne-se, entretanto, que essa autonomia não é absoluta, mas relativa, haja vista que o arcabouço legislativo previsto na respectiva lei orgânica de cada município e as demais normas locais, deverão estar adstritas aos princípios previstos na Constituição da respectiva unidade federativa, bem como na Constituição Federal.
Nesse sentido, dispõe o art. 29, caput, da Carta Federativa Brasileira:
Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:
Partindo dessa premissa, malgrado a controvérsia que o tema central descerra, pode-se afirmar que, a rigor, os municípios são detentores de autonomia e, como tal, podem principiar o processo legislativo, conforme as espécies previstas no art. 59, da Constituição Federal, incluindo-se, nesse bojo, as medidas provisórias.
3. O DECRETO-LEI
O decreto-lei, inspirado em sistemas legislativos adotados noutros países, a exemplo de Portugal e Itália, foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro a partir da Constituição Federal de 1937, representando uma das primeiras exceções à regra da competência atípica do Poder Executivo, para legislar.
Esse instrumento legislativo objetivava a regulamentação de todas as matérias atinentes à ordem econômica, fiscal, social, territorial e de segurança nacional, com legitimidade idêntica a uma norma administrativa, contudo, com força de lei, conferida por expressa dicção da norma constitucional.
Sua edição, entretanto, sujeitava-se a inúmeras limitações, de modo que era peremptoriamente vedado ao presidente da República promulgar decretos-leis numa hipótese não prevista no rol constitucional, a exemplo de algum ato que implicasse aumento de despesa. Assim, o chefe do executivo se reservava a regulamentar as matérias taxativamente previstas na Constituição Federal.
O decreto-lei dispensava a aquiescência expressa do Congresso Nacional, o que se diferencia das medidas provisórias, cuja ausência de apreciação pelo Poder Legislativo implica na sua rejeição tácita e, consequentemente, na perda da sua eficácia legal e dos seus efeitos.
Também pressupunha a existência de urgência ou interesse público relevante, não sendo necessária a acumulação desses pressupostos, o que se distingue do atual modelo, cujos requisitos são cumulativos e reclamam, necessariamente, a existência concomitante de relevância e urgência.
Tanto na Constituição de 1937, como nas outras cartas que a sucederam - a exemplo da Constituição de 1967 -, o decreto-lei se constituía ato privativo do presidente da República, por expressa dicção constitucional, de modo que era terminantemente vedada a sua edição pelos governadores e prefeitos.
Nesse sentido, dispunha o parágrafo único, do art. 200, da Constituição Federal de 1967, alterado pela Emenda Constitucional nº 01/69:
Art. 200. As disposições constantes desta Constituição ficam incorporadas, no que couber, ao direito constitucional legislado dos Estados.
Parágrafo único. As Constituições dos Estados poderão adotar o regime de leis delegadas, proibidos os decretos-leis.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, o decreto-lei foi substituído pela medida provisória, malgrado os decretos anteriormente editados tenham sido mantidos em vigor, especialmente naqueles casos em que a matéria neles abordada não confrontasse com a novel Carta Política.
A mudança dessa espécie normativa não se resumiu apenas à nomenclatura, já que a Constituição atual trouxe consigo uma série de outras modificações relevantes, concernentes à forma de edição, competências, prazos de vigência, condições e proibições, conforme se verá adiante.
4. MEDIDAS PROVISÓRIAS NA HODIERNA SISTEMÁTICA JURÍDICA BRASILEIRA
Uma das inúmeras modificações provocadas no ordenamento jurídico brasileiro, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, foi a inclusão das medidas provisórias no processo legislativo, possibilitando ao Presidente da República editá-las nos casos de relevância e urgência.
Hodiernamente, a instrumentalização das medidas provisórias encontra-se prevista no art. 62, da Constituição Federal, que assim dispõe:
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
As medidas provisórias, por conseguinte, constituem-se ato unipessoal do presidente da República. Embora não se constituam lei stricto sensu, têm força de lei, vigência imediata e independem, aprioristicamente, da anuência do Congresso Nacional, ao qual caberá sobre elas versar somente em momento posterior.
Sobre esse aspecto, cumpre trazer à baila o seguinte posicionamento doutrinário (GRECO, 1991, p. 15):
A medida provisória é convertida em lei, logo, em si mesma não é lei, pois não se converte o que já é. Quanto à natureza, não difere de um decreto, é ato administrativo com força de lei, igualmente um ato oriundo do Poder Executivo. A competência que ele se apoia não é legislativa em sentido técnico.
Algumas matérias, entretanto, não podem ser objeto de medidas provisórias, a exemplo daquelas que versam sobre a nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos, direito eleitoral, direito penal, processual penal e processual civil, organização do Poder Judiciário e do Ministério Público.
Também não são objeto de medidas provisórias as matérias que dispõem sobre planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, créditos adicionais e suplementares, ressalvado o disposto no art. 167, § 3º; detenção ou sequestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro.
Outrossim, não se inserem no campo das medidas provisórias as matérias relativas à extinção, supressão, restrição e alteração dos direitos individuais, porquanto são igualmente incompatíveis, dado o caráter precário dessa espécie legislativa e a possibilidade da perda da sua eficácia.
A rigor, as medidas provisórias vigoram pelo prazo de 60 dias, podendo tal interregno ser prorrogado por igual período. Ultrapassado esse prazo, caso não sejam convertidas em lei, perderão sua eficácia, conservando-se, porém, as relações jurídicas já estabelecidas e decorrentes dos atos praticados durante a sua vigência.
Caso a medida provisória não seja apreciada em até quarenta e cinco dias, contados de sua publicação, a matéria nela constante entrará em regime de urgência, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, sobrestando-se, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações.
Sobreleva ressaltar que a Constituição Federal da República não admite a reedição de medidas provisórias na mesma sessão legislativa, relativas àquelas que tenham sido rejeitadas ou que tenham perdido a sua eficácia por decurso de prazo, por expressa dicção do art. 62, § 10, da Constituição Federal.
Também inexiste na Carta Magna qualquer vedação quanto à utilização das medidas provisórias no âmbito dos estados-membros e municípios. Ao revés, essas espécies normativas vêm ganhando cada vez mais espaço no arcabouço legislativo desses entes, sob o pálio do princípio da simetria constitucional.
Essa inovação legislativa, entretanto, não é matéria pacífica, de modo que vem provocando acaloradas discussões entre doutrinadores e operadores do direito, embora seja possível observar uma tendência pelo seu acatamento, desde que haja necessária previsão na Constituição do estado-membro e, conforme o caso, na Lei Orgânica Municipal.
5. ADOÇÃO DAS MEDIDAS PROVISÓRIAS PELOS MUNICÍPIOS
Consoante já pontuado, os entes federados gozam de autonomia para disciplinarem as matérias de suas respectivas competências, as quais restam definidas nos arts. 21. a 24, da Constituição Federal. No caso dos municípios, a lei orgânica deverá observar os preceitos da Constituição Estadual, a teor do art. 29, da Carta Magna.
As medidas provisórias, invariavelmente editadas pelo presidente da República, costumam ser adotadas nos âmbitos estadual ou municipal com pouca frequência, ante a controvérsia que repousa sobre esse tema, o que geralmente causa grande celeuma na doutrina e na jurisprudência pátrias.
Por longos anos, os doutrinadores pátrios foram uníssonos quanto à impossibilidade de edição de medidas provisórias por governadores e prefeitos, sob o argumento de que se trata de matéria reservada ao presidente da República, ou seja, uma exceção ao princípio constitucional da separação dos Poderes.
Tal entendimento pautou-se no fato de que o art. 62. da Constituição Federal Brasileira prevê, literalmente, o presidente da República – e não o chefe o Poder Executivo –, como agente legitimado para editar medida provisória, de modo que, tratando-se de exceção à regra, deve ser interpretada de forma restritiva.
Nesse diapasão, apresenta-se de boa valia a transcrição do seguinte entendimento doutrinário (SILVA, 2004, p. 579):
E medidas provisórias, podem as constituições estaduais instituí-las? Em edições anteriores, respondemos que nada justificava a sua existência no âmbito estadual, mas não víamos proibição que o fizessem. Até onde sabemos, os Estados (e também os Municípios) evitam adotá-las. E hoje, re melius perpensa, achamos ponderável o argumento de que, sendo exceção ao princípio da divisão dos poderes, só vale nos limites estritos em que foram elas previstas na Constituição Federal: ou seja, apenas no âmbito federal, não se legitimando seu acolhimento nem nos Estados nem nos Municípios.
Outros doutrinadores também sustentaram semelhante posicionamento, conforme se depreende do seguinte excerto (TEMER, 1994, p. 14):
As medidas provisórias só podem ser editadas pelo presidente da República. Não podem adotá-las os Estados e os Municípios. É que a medida provisória é exceção ao princípio segundo o qual legislar compete ao Poder Legislativo. Sendo exceção, a sua interpretação há de ser restritiva, nunca ampliativa.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, quanto à negativa da edição de medidas provisórias pelos Estados e Municípios, firmou o seguinte entendimento:
A excepcionalidade da medida conduz à restrição relativamente ao seu agente, ou seja, só o Presidente da República poderá editá-la, não o Governador do Estado, ou o Município. Em caso contrário, aí sim, estariam burlados os princípios constitucionais, a partir da independência e harmonia dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário (art. 2º, CF). Observe-se que as determinantes de urgência e relevância no plano estadual ou municipal não são quase nunca as mesmas do plano federal, como as relativas ao sistema econômico, por exemplo, que sugerem a adoção das medidas. Seria temerário que se pudesse deixar a arbítrio de alcaides a edição de medidas provisórias nos Municípios, mesmo que houvesse autorização legislativa federal, estadual ou municipal (ADIn 11.643-0/0).
Esse posicionamento, entretanto, não é absoluto! Hodiernamente, um número cada vez mais elevado de doutrinadores vem se posicionando pela legalidade da adoção de medidas provisórias, inclusive no âmbito municipal, sob o argumento de que a Constituição Federal não estabelece qualquer vedação.
Nessa toada, comumente, invoca-se o princípio da simetria constitucional para justificar a edição dessa espécie legislativa. Segundo este princípio, as regras previstas na Constituição Federal devem ser reproduzidas nas constituições estaduais e nas leis orgânicas municipais, exceto se houver disposição expressa em sentido contrário.
O art. 59, da Constituição Federal, prevê, de um modo geral, as espécies normativas adotadas no processo legislativo, compreendendo as emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.
À exceção das medidas provisórias, todas as demais espécies acima mencionadas costumam ser reproduzidas nas constituições dos estados-membros e nas leis orgânicas municipais. Algumas constituições estaduais, porém, admitem, expressamente, a edição dessas medidas, a exemplo do que ocorre no Tocantins.
Aliás, a Constituição Tocantinense fora objeto de arguição de inconstitucionalidade no que se refere ao dispositivo que prevê a possibilidade de o governador editar medidas provisórias, tendo o Supremo Tribunal Federal se posicionado da seguinte forma:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PRELIMINAR. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO. PROCESSO LEGISLATIVO. MEDIDA PROVISÓRIA. COMPETÊNCIA DO GOVERNADOR PARA EDITÁ-LA. AUMENTO DE REMUNERAÇÃO DE SERVIDORES PÚBLICOS. INICIATIVA. DOAÇÃO DE BENS DO ESTADO. MAJORAÇÃO DO PERCENTUAL DE PARTICIPAÇÃO DOS MUNICÍPIOS NA ARRECADAÇÃO DO ICMS. EFICÁCIA LEGAL LIMITADA NO TEMPO. PREJUDICIALIDADE. 1. Podem os Estados-membros editar medidas provisórias em face do princípio da simetria, obedecidas as regras básicas do processo legislativo no âmbito da União (CF, artigo 62). 2. Constitui forma de restrição não prevista no vigente sistema constitucional pátrio (CF, § 1º do artigo 25) qualquer limitação imposta às unidades federadas para a edição de medidas provisórias. Legitimidade e facultatividade de sua adoção pelos Estados-membros, a exemplo da União Federal. 3. Lei 219/90. Reajuste de remuneração dos cargos de confiança exercidos por servidores do Estado. Iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo. Legitimidade. Inexistência de afronta ao princípio da moralidade. Pedido improcedente. 4. Lei 220/90. Autorização legislativa para venda e doação de lotes situados em área urbana específica. Política habitacional implantada na Capital de Estado em fase de consolidação. Ausência de violação à Carta Federal. Improcedência. 5. Lei 215/90. Ofensa ao princípio da separação dos Poderes por norma que atribui ao Governador autorização para dispor, segundo sua conveniência, de bens públicos do Estado, sem especificá-los. Instrumento anômalo de delegação de poderes. Inobservância do processo legislativo concernente às leis delegadas. Ação direta julgada procedente em parte para declarar a inconstitucionalidade da Lei estadual 215/90.
(STF - ADI: 425 TO , Relator: MAURÍCIO CORRÊA, Data de Julgamento: 04/09/2002, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 19-12-2003 PP-00019 EMENTA VOL-02137-01 PP-00014).
No Estado da Bahia o legislador constituinte não incluiu as medidas provisórias dentre as várias espécies que compõem o processo legislativo no âmbito estadual, conforme se infere da análise do art. 72, da Constituição Estadual, vejamos:
Art. 72. - O processo legislativo compreende a elaboração de:
I - emendas à Constituição;
II - leis complementares;
III - leis ordinárias;
IV - decretos legislativos;
V - resoluções;
VI - leis delegadas.
Uma vez que a Constituição Estadual não prevê, expressamente, a edição de medidas provisórias, logo, as leis orgânicas dos municípios que assim o disponham repousarão inconstitucionais, por inobservância do já mencionado princípio da simetria constitucional.
É que o art. 29, da Constituição Federal, dispõe que as leis orgânicas dos municípios deverão, necessariamente, atender aos princípios nela estabelecidos, bem como aqueles previstos na constituição dos respectivos estados. Vejamos:
Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:
Logo, a reforma constitucional, a exemplo da Carta Política do Estado da Bahia, ao menos no que se refere à introdução da medida provisória dentre as demais espécies previstas no seu art. 72, constituir-se-ia o primeiro passo para que os municípios baianos pudessem, igualmente, incluí-la nas suas respectivas leis orgânicas.
Sobre esse aspecto, convém trazer à baila as seguintes orientações doutrinárias (MORAES, 2004, p. 580):
Tal entendimento, que igualmente se aplica às Leis Orgânicas dos Municípios, acaba por permitir que no âmbito estadual e municipal haja previsão de medidas provisórias a serem editadas, respectivamente, pelo Governador do Estado ou Prefeito Municipal e analisadas pelo Poder Legislativo local, desde que, no primeiro caso, exista previsão expressa na Constituição Estadual e no segundo, previsão nessa e na respectiva Lei Orgânica do Município. Além disso, será obrigatória a observância do modelo básico da Constituição Federal.
É importante ressaltar que, caso o prefeito municipal resolva adotar medidas provisórias, sem que haja autorização expressa na respectiva lei orgânica municipal, estará o mesmo incurso nas proibições alinhadas no Decreto-Lei 201/67 (Lei de Responsabilidade dos Prefeitos), sujeitando-se, portanto, a diversos consectários.
O fato é que a adoção das medidas provisórias no âmbito municipal representaria um importante avanço para instrumentalização de determinados atos do Poder Executivo. Isso porque, há certas situações que impingem o prefeito municipal a se valer de providências de caráter legislativo, as quais restariam impraticáveis, caso utilizadas as regras ordinárias do processo legislativo.
É o caso, por exemplo, da abertura de créditos extraordinários, celebração de convênios e parcerias com entes públicos ou particulares, prorrogação de contratos temporários, redução de alíquotas, criação de incentivos e concessão de isenções tributárias, concepção de programas e ações administrativas etc., todos esses casos, evidentemente, sob o pálio da relevância e urgência.
Como é cediço, as proposições legislativas são compostas de várias etapas que vão desde o protocolo, processamento, discussão da matéria em uma ou duas sessões ordinárias, análise e emissão de parecer quanto à constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa, pelas respectivas comissões; submissão ao plenário para emendas, aprovação e posterior sanção.
Mesmo nas situações em que o prefeito, à luz do regimento interno e da lei orgânica municipal, solicita regime de urgência, o interregno demandado entre a tramitação do projeto, sua aprovação e sanção, acaba por fazer perecer o objeto da proposição, ocasionando, por vezes, imensuráveis prejuízos à comuna.
Em situações como essa, em que o conteúdo jurídico de determinada matéria se entremostra relevante e urgente, a adoção das medidas provisórias se apresenta como a melhor e mais adequada solução, para se resguardar a supremacia do interesse público e dos demais princípios que informam a administração pública.
É evidente que a matéria constante das medidas provisórias editadas pelo prefeito somente adquirirá estabilidade normativa a partir do momento em que a Câmara Municipal de Vereadores – seguindo o rito próprio, relativo à sua conversão em lei –, se pronuncie favoravelmente – ou não –, à sua aprovação.
Por outro lado, a simples previsão legal no sentido de autorizar o Poder Executivo Municipal a lançar mão de medidas provisórias não deve servir como estratagema para frustrar o processo legislativo. A adoção desse instrumento normativo pressupõe, sempre, a existência dos pressupostos relativos à relevância e urgência.
Sustentamos, portanto, ser praticável a edição de medidas provisórias nos municípios baianos, em situações peculiares, em que o desenrolar do processo legislativo ordinário se apresente mais prejudicial que a regulamentação de imediato de determinada matéria, que envolva relevante interesse público.
Para tanto, é necessário que o constituinte promova uma necessária modificação na Constituição Estadual, para incluir no seu bojo a medida provisória como espécie normativa, somada a todas as demais que compõem o processo legislativo.
6. CONCLUSÃO
A autonomia municipal outorgada pela Constituição Federal aos municípios confere a esses entes a possibilidade de editarem as suas próprias leis, em consonância com os princípios nela previstos, bem como aqueles constantes da respectiva constituição estadual.
No gozo dessa autonomia, poderão os municípios editar medida provisória, desde que a Constituição Estadual a inclua dentre as demais espécies que compõem o processo legislativo. Nesse caso, a lei orgânica municipal deverá, igualmente, ser modificada, para dispor sobre o procedimento necessário à edição da medida provisória e a sua conversão em lei.
Por outro lado, a adoção das medidas provisórias pelo Poder Executivo municipal estará adstrita à existência dos requisitos da relevância e urgência, cabendo aos prefeitos utilizá-las com parcimônia, observando-se o regramento legal próprio, a fim de evitar usurpação de competência e outros excessos.
Diante do exposto, é forçoso concluir que as medidas provisórias poderão ser adotadas pelos municípios, em corolário à autonomia que esses detêm, como a melhor solução para debelar situações emergenciais, cuja resolução célere possibilitará uma atuação administrativa mais escorreita e adequada ao interesse público.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro . São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo, Malheiros Editores, 2004.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 2003.
GRECO, Marco Aurélio. Medidas Provisórias. São Paulo: RT, 1991.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2004.
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. São Paulo, Malheiros Editores, 1994.