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Consectários da extinção do passe no futebol brasileiro

30/11/2003 às 00:00
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O advento da Lei Federal nº 9.615, de 24 de março de 1998, sob a alcunha de Lei Pelé, estabeleceu normas gerais sobre o desporto no País, e brindou o ordenamento jurídico brasileiro com duas novidades, notadamente no que se refere à relação profissional entre clubes e atletas profissionais de futebol.

Uma das inovações a que se deve fazer alusão concerne à antiga redação do art. 27, que restringia a prática de atividade esportiva profissional apenas às sociedades que se revestissem da forma jurídica prevista pela Lei. Foi a chamada transformação dos clubes em empresas.

Tal dispositivo foi inserido em resposta aos anseios e às pressões da opinião pública, principalmente em decorrência dos inúmeros escândalos e fraudes que assolavam, e ainda conturbam, a organização do esporte de alto rendimento no País. O intuito era o de criar a maior transparência possível nas atividades das agremiações esportivas. Todavia, tal exigência se mostrava de manifesta inconstitucionalidade, por violar princípios consagrados pela Constituição Brasileira, como a liberdade de associação (art. 5º, XVII, CF/88) e a autonomia desportiva (art. 217, I, CF/88), como bem combateu o insigne jurista Álvaro Melo Filho [1].

Vasta repercussão ocorreu no meio jurídico, o que culminou com uma nova redação ao malsinado art. 27 da Lei Pelé, que atualmente torna a prática de atividade esportiva profissional livre a qualquer entidade, independentemente da forma jurídica adotada.

O outro problema enfrentado pela lei 9.615/98 remonta ao passe, mais especificamente ao fim do instituto. Sobre tal ponto, iniciaremos alguns comentários.

O esporte brasileiro, até a edição da Lei Pelé, atravessou um longo período de carência de legislação específica. No futebol, as relações entre atletas profissionais e clubes regulavam-se sob os dispositivos da Lei 6.354/76.

O art. 11 do referido instrumento legal trazia a definição do passe, e assim dispunha:

"Art. 11. Entende-se por passe a importância devida por um empregador a outro, pela cessão do atleta durante a vigência do contrato ou depois de seu término, observadas as normas desportivas pertinentes".

Dessa forma, apoiando-se no protecionismo que a legislação pátria lhes conferia, os clubes de futebol faziam do passe verdadeiro capital ativo, fonte principal de renda e subsistência. Isso porque o referido instituto impedia que o atleta, mesmo depois de encerrado o contrato de trabalho com determinado clube, procedesse à sua transferência para outra agremiação, enquanto não fosse paga a importância que a lei atribuía como devida.

Dessa feita, quando as especulações acerca do fim do passe se concretizaram, por meio da sanção da Lei Pelé, os clubes nacionais se viram na iminente possibilidade de perder o direito àquilo que julgavam ser seu maior patrimônio.

Para tanto, verifique-se a redação original do §2º do art. 28 da Lei 9.615/98:

"§ 2º. O vínculo desportivo do atleta com a entidade contratante tem natureza acessória ao respectivo vínculo empregatício, dissolvendo-se, para todos os efeitos legais, com o término da vigência do contrato de trabalho".

Ora, o sepultamento do instituto do passe, estilizado sob a extinção do vínculo desportivo, a partir de então acessório ao vínculo empregatício, propiciou uma grande insatisfação por parte dos clubes de futebol, que tinham na compra e venda de jogadores o seu propulsor financeiro.

Foi assim que, logo que sancionada a Lei Pelé, alterações referentes à extinção do passe foram manipuladas, visando a adicionar e a recortar algumas regras à Lei 9.615/98. Significativas mudanças, portanto, foram introduzidas pela Lei 9.981/00, pela Medida Provisória 2141/01 e, por último, pela Lei 10.672/03.

Nesse interregno, dentre as modificações de relevo formalizadas, destaca-se que, durante certo período, por meio da edição e das reedições da MP 2141/01, prevaleceram no ordenamento jurídico pátrio as formas de indenização previstas no regulamento de transferência da FIFA, conhecidas como indenizações de formação (ou revelação) e de promoção.

A edição da MP 2141 alterou, provisoriamente, o § 3º do art. 29 da Lei Pelé, que previa a possibilidade da entidade de prática desportiva, detentora do primeiro contrato de trabalho com o atleta por ela profissionalizado, exercer o direito de preferência para a renovação deste primeiro vínculo.

Com a redação dada pela MP, o direito de preferência havia sido transformado no direito de se exigir indenização pela transferência do atleta, desde que a agremiação tivesse firmado o primeiro contrato de trabalho profissional com o jogador transferido.

Segue a redação conferida ao art. 29 por meio da Medida Provisória:

"Art. 29. A entidade de prática desportiva formadora do atleta terá o direito de assinar com este, a partir de dezesseis anos de idade, o primeiro contrato de trabalho profissional, cujo prazo não poderá ser superior a cinco anos.

(...)

§ 3º. Apenas a entidade de prática desportiva formadora que, comprovadamente, firmar o primeiro contrato de trabalho com o atleta por ela profissionalizado, terá direito de exigir, do novo empregador, indenização de:

I - formação, quando da cessão do atleta durante a vigência do primeiro contrato, que não poderá exceder a duzentas vezes o montante da remuneração anual, vedada a cobrança cumulativa de cláusula penal;

II - promoção, quando de nova contratação do atleta, no prazo de seis meses após o término do primeiro contrato, que não poderá exceder a cento e cinqüenta vezes o montante da remuneração anual, desde que a entidade formadora permaneça pagando salários ao atleta enquanto não firmado o novo vínculo contratual".

Em apertada síntese, assim funcionava a indenização de formação e a de promoção do atleta:


Indenização de Formação

A indenização de formação, ou de revelação, insurgia-se como uma garantia mínima ao clube. Se no primeiro contrato profissional do atleta houvesse uma cláusula penal preestabelecida, conforme determinação do art. 28, não se aplicaria a indenização legal. A indenização de formação funcionaria como uma forma de proteção, e não a regra para pagamento ao clube em caso de transferência do atleta por ele profissionalizado. Prevalecia a autonomia das partes na formulação da cláusula penal. A indenização legal seria, portanto, subsidiária, uma vez que existia vedação legal para cobrança cumulativa, prevista no inciso I do § 3º do art. 29.


Indenização de Promoção

Já a indenização de promoção, prevista no antigo inciso II do § 3º do art. 29, garantia ao clube o direito a uma indenização sobre eventual transferência do atleta que ocorresse até o prazo máximo de seis meses após o término do contrato, desde que a agremiação continuasse a pagar os salários do jogador nesse período. Em tal situação, a prescrição legal seria a regra, de aplicação plena, sem o caráter subsidiário da indenização de formação.

Isso porque o contrato de trabalho já se teria encerrado, e eventual cláusula penal (acessória ao negócio principal), extinguira-se com o fim do contrato, sendo, portanto, inexigível.

Em contrapartida, poder-se-ia questionar se os seis meses posteriores ao fim do contrato consistiriam numa prorrogação do vínculo empregatício, para que fosse exigível a indenização contratual.

De tal questionamento, desenvolveram-se dois entendimentos distintos: para que fosse exigível a indenização contratual, mesmo após o término do contrato, o prazo do primeiro somado aos seis meses posteriores não poderiam ser superiores aos cinco anos permitidos como tempo máximo de vigência de um contrato de trabalho de atleta profissional (art. 30).

No entanto, o entendimento mais sensato seria o de que, findo o primeiro contrato, os seis meses subseqüentes e remunerados, conditio sine qua non para exigibilidade da indenização de promoção, não o integrariam, uma vez que a contraprestação, por parte do atleta profissional, não seria exigível pelo antigo empregador.

Tais considerações nos fazem perceber a significativa repercussão que a extinção do passe propiciou no cenário esportivo e, principalmente, jurídico do País.

A legislação esportiva sofreu, em poucos anos, uma evolução que deveria ocorrer paulatinamente, suscetível de leves mudanças e extensos períodos de adaptação.

A ameaça ao comodismo e ao privilégio dos clubes de futebol levou a uma verdadeira corrida contra o tempo, a fim de que alguma forma de proteção econômica à relação entre clube e atleta profissional ainda prevalecesse no ordenamento jurídico.

Atualmente, os artigos 28 e 29 da Lei Pelé vigoram com a redação dada pela Lei 10.672, de maio de 2003.

O protecionismo amplo e exacerbado que se procurou conceder por meio da MP 2141 foi amenizado. O direito de preferência para a primeira renovação do contrato de trabalho voltou a prevalecer sobre as indenizações de formação e de promoção. No entanto, devem-se tecer algumas considerações.

A nova redação do § 3º do art. 29 é a seguinte:

"§ 3º. A entidade de prática desportiva formadora detentora do primeiro contrato de trabalho com o atleta por ela profissionalizado terá o direito de preferência para a primeira renovação deste contrato, cujo prazo não poderá ser superior a dois anos".

Pela nova redação, torna-se possível que o vínculo entre um atleta e o clube se estenda por até sete anos, tendo em vista que o primeiro contrato profissional, que pode ocorrer a partir dos dezesseis anos de idade, pode ter o prazo de vigência de até cinco anos, conforme estabelece o caput do art. 29.

Agora, em se tratando de cláusula penal, que se entende como o instituto "substituto" do passe no ordenamento jurídico brasileiro, façamos outras observações.


Cláusula Penal

A cláusula penal, instituto típico do Direito Civil, obteve nova roupagem no ordenamento jurídico desportivo brasileiro, uma vez que foi adotada como a sucedânea legal do famigerado instituto do passe.

O art. 28 da Lei 9.615/98 possui a seguinte redação:

"Art. 28. A atividade do atleta profissional, de todas as modalidades desportivas, é caracterizada por remuneração pactuada em contrato formal de trabalho firmado com entidade de prática desportiva, pessoa jurídica de direito privado, que deverá conter, obrigatoriamente, cláusula penal para as hipóteses de descumprimento, rompimento ou rescisão unilateral".

A partir da previsão legal, toma-se a obrigatoriedade da estipulação da cláusula penal nos contratos profissionais de trabalho entre os atletas e os clubes de qualquer modalidade esportiva.

O objetivo da incorporação desse instituto à relação profissional entre atletas e clubes é justamente atender às peculiaridades dessa relação jurídica, em virtude, notadamente, do fim do passe.

Em verdade, tanto a cláusula penal quanto o passe apresentam a mesma finalidade, pois funcionam como fator de compensação pela extinção do vínculo jurídico. Entretanto, na vigência do instituto do passe, o vínculo trabalhista e o vínculo desportivo coexistiam, enquanto no atual regime jurídico, o vínculo jurídico é unicamente o vínculo trabalhista, sendo o vínculo desportivo de natureza acessória.

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Cabe ainda destacar que a cláusula penal, no Direito Desportivo, não se submete ao limite da legislação civil, que corresponde ao valor total da obrigação principal.

O tratamento dado pelo legislador, na relação entre atleta e clube, funciona, como não poderia deixar de ser, de forma protetiva às entidades de prática desportiva. Para tanto, observe-se que o § 3º do art. 28 estabelece que o valor da cláusula penal terá o limite máximo de cem vezes o montante da remuneração anual pactuada, o que pode representar milhões, mesmo quando se consideram os fatores de redução da cláusula penal, previstos no § 4º do mesmo artigo.

Deve-se ainda considerar que, em se tratando de transações internacionais, a cláusula penal não será objeto de qualquer limitação. Para isso, basta que essa determinação esteja expressa no contrato de trabalho, consoante a redação do § 5º do art. 28 da Lei Pelé.

Por fim, resta-nos apenas tecer um paralelo entre a cláusula penal e um instituto do Direito do Trabalho, a multa rescisória.


Cláusula Penal e Multa Rescisória

Não obstante a cláusula penal ter-se incorporado como sucessora do passe, ainda prevalece a possibilidade de aplicação da multa rescisória nos contratos profissionais de trabalho entre atletas e entidades de prática desportiva.

A cláusula penal, conforme determinação do art. 28 da Lei Pelé, abrange as hipóteses de descumprimento, rompimento ou rescisão unilateral do contrato. Em tese, a responsabilidade pelo pagamento da cláusula penal é do atleta, quando este der causa ao encerramento do vínculo empregatício.

No entanto, a prática nos mostra que, usualmente, o responsável pelo pagamento da cláusula penal é o novo clube contratante que, interessado em explorar o potencial de determinado jogador, assume o risco de despender significativas cifras pelo rompimento do contrato de trabalho com o antigo clube.

Já a multa rescisória é devida quando há o descumprimento do contrato pelo clube, o que se denomina rescisão indireta do contrato de trabalho. A determinação é legal, haja vista a redação do § 3º do art. 31 da Lei Pelé, que atribui ao descumprimento das obrigações trabalhistas pelo clube os efeitos do art. 479 da CLT, que trata da dispensa do empregado nos contratos a termo. O atleta faria jus, em tal circunstância, ao recebimento de quantia equivalente a 50% (cinqüenta por cento) do valor restante do contrato.

Há ainda quem entenda o contrário: se o clube descumpre o contrato, deveria pagar ao atleta a cláusula penal, que, regra geral, é de alto valor pecuniário. Tal raciocínio se fundamenta na idéia de que aquele que der causa à rescisão do contrato deve arcar com a cláusula penal, que é essencialmente indenizatória.

Todavia, pensamos que, em se substituindo o pagamento da multa rescisória pela cláusula penal, o art. 31 da Lei Pelé se torna inócuo, uma previsão legal sem eficácia. Dessa forma, preterimos a aplicação da cláusula penal em benefício da multa rescisória, quando da ocorrência da rescisão do contrato de trabalho por inadimplemento das obrigações contratuais pelo empregador, o clube.

Dessa forma, tendo em vista essas breves considerações, procuramos estabelecer uma análise, ainda que superficial, da relação jurídica que envolve atletas profissionais e clubes de futebol depois da extinção do passe.

De certo, novas orientações e estudos surgirão sobre o tema, sempre na tentativa de elucidar o profissional do Direito sobre as evoluções e as implicações de tão fascinante matéria na vida profissional dos atletas e na administração das entidades de prática esportiva no País.


NOTAS

01. FILHO, Álvaro Melo. O Novo Direito Desportivo. 1ª edição. São Paulo: Cultural Paulista. 2002, p. 38.

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Sobre o autor
Luciano Brustolini Guerra

bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sócio da BMP Consultoria Desportiva

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, Luciano Brustolini. Consectários da extinção do passe no futebol brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 147, 30 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4434. Acesso em: 19 abr. 2024.

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