Primeiramente, para concreta elucidação acerca da doutrina interpretativa da escola dos glosadores ou de Bolonha, é necessária uma reconstrução histórica e social do momento se germinação de tal prática hermenêutica, isto é, a civilização do Ocidente Medieval.
A sociedade do medievo surge após o declínio e decadência das instituições administrativas do Império Romano do Ocidente, havendo ocorrido uma desestruturação dos mecanismos de autoridade e administração do Império Latino sediado em Roma, o qual não pôde resistir a uma infiltração crescente dos povos germânicos nos limes. Contudo, à medida que sucumbiam as formas culturais exclusivamente romanas, as populações, ditas bárbaras, preconizaram um papel de assimilação e reinterpretação das instituições latinas. Destarte, há uma assimilação e fusão cultural das entidades culturais germânicas e romanas, ulterior à desagregação das formas latinas de produção, administração e convivência.
Assim, as novas tribos bárbaras assentadas no antigo território do Império herdariam traços do mundo romano, existindo uma permanência de mecanismos do universo de Roma, subsequentemente assimilados ao novo contexto social. Segundo Wieacker, seriam três as principais representações da assimilação cultural romano-germânica, seguindo uma proposta de reconfiguração social: a herança cultural e administrativa da Antiguidade tardia, o poder universal da Igreja remanescente e a instituição do ensino escolar.
No momento, vivia-se um tempo de “regressão”, ou de uma reconfiguração, já que a civilização urbana e racional latina, calcada na administração e na jurisprudência, em seu sentido lato, seria substituída por uma sociedade descentralizada politicamente, com um intenso relativismo e pluralismo jurídico. A jurisprudência sistematizada dos romanos será então substituída pela oralidade e pelo costume, com uma variação territorial, embora essa mesma conservasse uma influência significativa nos diversos ordenamentos jurídicos. Assim, a antiga unidade fundamentada no poder Imperial, far-se-á desagregada, unida, unicamente, pelo poder da Igreja de Roma, munida de um intenso poder secular e temporal desde a experiência de Constantino.
Conservou-se também, a instituição do studium, da escola romana greco-latina. Assim, possibilitava-se uma permanência do ensino, contudo, no restrito seio da Santa Madre Igreja, possibilitando, portanto, um domínio eclesiástico sobre o ensino. Para tal, procurou-se repercutir a forma de ensino da tradição helênica, segundo a metodologia da paidea, isto é, de disciplinas fundamentais, compondo o trivium, a partir do manejo da Dialética para a Filosofia, a Retórica para o discurso e a arte da Gramática para a hermenêutica dos compêndios. Portanto, observa-se até aqui a propensão do ensino Ocidental, fomentado a partir de uma tradição cultural escolástica, a mesma formulada pela iniciativa dos padres da Igreja, como Tomás de Aquino e Agostinho de Hipona, engajados em assimilar a metafísica e a classificação de Aristóteles e Platão no arcabouço teórico do discurso eclesiástico.
É nesse contexto, isto é, já na Baixa Idade Média, que se constituirá a Universidade de Bolonha, considerada a primeira instituição de ensino superior do Ocidente, inaugurando toda uma perspectiva teórica para as artes jurídicas. Bolonha, no norte da Itália, era, então, uma entidade de ensino profano, mesmo congênere às formas eclesiásticas de ensino. Procurava-se formar, portanto, uma entidade de formação de administradores e burocratas, a partir de um ensino metafísico e trivial, isto é, nos modelos teóricos da tradição latina e grega.
Os glosadores surgem, destarte, através da necessidade de manejo e interpretação dos mecanismos jurídicos herdados de Roma. Com a descoberta do Corpvs Ivris Civiles, e de sua posterior resenha pela Littera Bolonienses, manejava-se as técnicas filosóficas, interpretativas e discursivas para o estudo dos textos, o que, segundo Tércio Sampaio, obrigava o jurista a uma harmonização a partir da exegese dos diplomas. Surgiam contrariettates e dubitationes, discutidas a partir de uma dialética nas controversia, dissentio e ambiguitas, enfim, chegando a uma solutio.
In finis, identifica-se que não havia, necessariamente, uma preocupação dos juristas medievais na solução de casos concretos, na verdade, esses mesmo estudiosos empregavam-se seus estudos na confirmação nas autoridades dos textos e das formas metodológicas de interpretação. Exerciam uma administração da escolástica discursiva e hermenêutica para comprovar a excelência, o júbilo da força filosófica do espírito latino e grego. Havia, enfim, a necessidade de provar a supremacia das instituições antigas, das quais se consideravam herdeiros, praticando uma reconfiguração da metafísica anteriormente pagã e agora eclesiástica.
Além disso, é nesse momento que se construirá a tendência dogmática da Jurisprudência Ocidental, a partir de uma elaboração e confiança nos textos clássicos, tomados como cânones máximos do pensamento jurídico, criando uma supremacia maior do que as dos textos modernos. É ainda nesse lapso histórico que se associará a figura do jurista ao poder real. O Estado Moderno será, então, inseparável da figura do jurista, o qual formulará questões acerca da legitimidade e supremacia do poder dos monarcas.
Conseqüentemente, após a breve análise, avalia-se a determinante atuação da Escola dos Glosadores para a jurídica moderna, obrigando o atual bacharel em Leis a compreender a elaboração da tradição universitária e jurisprudencial do egrégio Ocidente.
Referências bibliográficas:
- Ferraz JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2003.
- WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967.