Ilicitude da quebra de sigilo bancário diretamente pelo COAF para fins de instauração de ação penal

13/11/2015 às 11:06
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Visa o presente Artigo tratar da inconstitucionalidade da quebra do sigilo bancário realizada diretamente pelo COAF.

É certo que dentre os consensos mínimos captados pelo poder constituinte originário para projeto normativo e político do nosso estado democrático de direito encontra-se o sigilo de dados bancário. Essa é a dicção do art. 5º, incisos X e XII, da CF:

“X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”

“XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”

Sem embargo de especificação do seu âmbito de conformação, a inviolabilidade de dados bancários consiste na obrigação imposta aos bancos e a seus funcionários de discrição a respeito de negócios, presentes e passados, de pessoas com que lidaram, abrangendo dados sobre a abertura e o fechamento de contas e sua movimentação (doutrina de GILMAR MENDES[1]).

De todo modo, a inviolabilidade de dados bancários é direito fundamental do indivíduo.

Mas como se bem sabe, não existem direitos absolutos (nem mesmo os fundamentais!).

Nesse interrim, no âmbito da legislação infraconstitucional veio a Lei Complementar nº 105/2001 dar conformação e restrição à inviolabilidade do sigilo de dados bancários, dispondo seu artigo inaugural que: “As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados”.

Outrossim, nos termos do art. 1º, §3º, inciso IV, não constitui violação do dever de sigilo bancário “a comunicação, às autoridades competentes, da prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa”.

Tal disposição normativa deve ser visualizada sistematicamente em cotejo com o ordenamento jurídico, especialmente à luz da necessidade da filtragem constitucional do direito.

Nesse ínterim, no caso em testilha, o paradigma de olhar conglobante deve ser a Lei nº 9.613/1998, que, num conteúdo heterônomo, criou o COAF, órgão que, administrativamente, fica encarregado de estabelecer normatização em torno da identificação de ilícitos econômicos de lavagem de capitais pelas instituições financeiras (e congêneres), o recebimento dessas informações e encaminhamento do Relatório de Inteligência Financeira ao Ministério Público (entre outros) com o apontamento da existência de indício de crime, conforme o caminho normativo dos seus arts. 9º, inciso I[2], 10º, inciso II[3], 11º, inciso II, alínea “a”[4] e 15º[5].

Isto é, pelos termos da Lei de Lavagem de Dinheiro, as instituições financeiras remetem informações de movimentações bancárias atípicas de seus clientes ao COAF, que por sua vez, processa, condensa e encaminha ditas informações bancárias ao MP.  

Entretanto, dada a natureza administrativa do COAF, nesse trânsito de informações, imprópria é a quebra de sigilo de dados bancários do indivíduo.

Essa é a doutrina de GUSTAVO HENRIQUE BADARÓ e PIERPAOLO CRUZ BOTTINI[6], nos seguintes termos:

“A natureza administrativa do COAF impede que o Órgão promova medidas cautelares, quebras de sigilo, ou mesmo requeira a instauração de processo penal.”

“No campo da inteligência, cabe ao COAF receber dados, organizá-los, e elaborar Relatórios para subsidiar autoridades competentes para investigar ou dar início a persecução pelo crime de lavagem de dinheiro.”

“Vale apenas consignar, ainda que tal assertiva seja evidente, que as informações protegidas por sigilo legal ou constitucional (sigilo fiscal, bancário, de dados telefônicos) continuam resguardadas – seja pela hierarquia constitucional, seja pela especialidade das leis de proteção do sigilo – e sua obtenção ainda exige autorização do Judiciário.”

Dessas disposições legais e de sua respectiva exegese, pode-se concluir que o compartilhamento de informações, entre instituição financeira → COAF → MP, a respeito da prática de ilícito, deve resguardar no seu conteúdo o sigilo dos dados bancários do indivíduo.

Assim, à míngua de regra exata à forma de compartilhamento de informações entre as instituições financeiras e o COAF, pela necessidade de atuação do Poder Público (no qual se insere a figura do COAF) na pauta do princípio da legalidade administrativa, insculpido no art. 37 da CF, em que predetermina que a Administração Publica somente agirá na execução do comando legal (doutrina de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELO[7]), pela completude do ordenamento jurídico, preenchidas suas lacunas através da técnica da analogia, por critério de especialidade aproximada, devem ser aqui aplicadas as disposições do art. 5º, §2º, da Lei Complementar nº 105/2001[8], que preconiza que: “as informações transferidas na forma do caput deste artigo restringir-se-ão a informes relacionados com a identificação dos titulares das operações e os montantes globais mensalmente movimentados, vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados”.

Por via de consequência, no trânsito de informações bancárias indicadoras da prática de ilícito, entre instituição financeira → COAF → MP, não deve ser revelada a origem e destino da movimentação financeira do indivíduo, sob pena de configuração pragmática de quebra de sigilo bancário.

Esse também é o pensamento de KIYOSHI HARADA[9], verbo ad verbum:

“Em outras palavras, as instituições financeiras não podem informar ao COAF as movimentações financeiras de seus clientes sem prévia ordem judicial. Na prática, é o Banco Central quem fornece as informações ao COAF. Nem pode o COAF repassar as informações sigilosas regularmente recebidas a outros órgãos, com subtração da atuação jurisdicional. Muito menos pode ele repassar informações sigilosas recebidas sem a interferência do Poder Judiciário, pois o próprio recebimento dessas informações já configura infração legal e constitucional.

Disso resulta que a aplicação do art. 5° da LC n° 105/01, também, depende de ordem judicial.

Realmente, não faz sentido a devassa das operações financeiras do cliente, apontando nomes e valores mensalmente movimentados, com omissão apenas da origem dessas movimentações e da natureza dos gastos efetuados.”

A imputação de movimentação financeira global e mensal a uma determinada pessoa, física ou jurídica, implica ipso fato a quebra do sigilo de dados bancários, independentemente de apontamento da origem dos recursos financeiros movimentados e da natureza dos gastos efetivados. Aliás, a omissão da origem e da natureza dos gastos, em muitos casos, pode até piorar a situação de quem teve divulgado o montante mensal e global de suas movimentações financeiras. Podem surgir sombras duvidosas sobre movimentações absolutamente legítimas e legais.”

Logo, ao haver indicação do montante, da origem e da destinação dos recursos angariados e movimentados na conta pessoal do indivíduo, há verdadeira quebra de sigilo bancário.

Sendo que para todas essas questões a mitigação do direito fundamental ao sigilo bancário fica a cargo da reserva de jurisdição, para obtenção de todas essas informações bancárias expostas pelo COAF. Essa é a doutrina de ALEXANDRE DE MORAES[10]:

“Os sigilos bancário e fiscal, consagrados como direitos individuais constitucionalmente protegidos, somente poderão ser excepcionados por ordem judicial fundamentada ou de comissões parlamentares de inquérito, desde que presentes requisitos razoáveis, que demonstrem, em caráter restrito e nos limites legais, a necessidade de conhecimento dos dados sigilosos”.

Pelo que tal afirmação está corroborada pelas disposições do art. 1º, §4º, da Lei Complementar nº 105/2001[11], art. 17-C da Lei nº 9.613/1998[12] e art. 11, §1º, do Decreto nº 2.799/1998[13].

De toda sorte, em casos muito análogos o Excelso Supremo Tribunal Federal, Guardião da Constituição, entendeu que nem o Tribunal de Contas, Banco Central, Receita Federal e Ministério Público podem promover diretamente a quebra de sigilo bancário do indivíduo, sem autorização judicial para tanto:

“Mandado de Segurança. Tribunal de Contas da União. Banco Central do Brasil. Operações financeiras. Sigilo.

1. A Lei Complementar nº 105, de 10/1/01, não conferiu ao Tribunal de Contas da União poderes para determinar a quebra do sigilo bancário de dados constantes do Banco Central do Brasil. O legislador conferiu esses poderes ao Poder Judiciário (art. 3º), ao Poder Legislativo Federal (art. 4º), bem como às Comissões Parlamentares de Inquérito, após prévia aprovação do pedido pelo Plenário da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do plenário de suas respectivas comissões parlamentares de inquérito (§§ 1º e 2º do art. 4º).

2. Embora as atividades do TCU, por sua natureza, verificação de contas e até mesmo o julgamento das contas das pessoas enumeradas no artigo 71, II, da Constituição Federal, justifiquem a eventual quebra de sigilo, não houve essa determinação na lei específica que tratou do tema, não cabendo a interpretação extensiva, mormente porque há princípio constitucional que protege a intimidade e a vida privada, art. 5º, X, da Constituição Federal, no qual está inserida a garantia ao sigilo bancário.

3. Ordem concedida para afastar as determinações do acórdão nº 72/96 - TCU - 2ª Câmara (fl. 31), bem como as penalidades impostas ao impetrante no Acórdão nº 54/97 - TCU - Plenário.

(MS 22801, Relator(a):  Min. MENEZES DIREITO, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2007, DJe-047 DIVULG 13-03-2008 PUBLIC 14-03-2008 EMENT VOL-02311-01 PP-00167 RTJ VOL-00205-01 PP-00161 LEXSTF v. 30, n. 356, 2008, p. 488-517)

“SIGILO DE DADOS - ATUAÇÃO FISCALIZADORA DO BANCO CENTRAL - AFASTAMENTO - INVIABILIDADE. A atuação fiscalizadora do Banco Central do Brasil não encerra a possibilidade de, no campo administrativo, alcançar dados bancários de correntistas, afastando o sigilo previsto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal.”

(RE 461366, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 03/08/2007, DJe-117 DIVULG 04-10-2007 PUBLIC 05-10-2007 DJ 05-10-2007 PP-00025 EMENT VOL-02292-03 PP-00668 RTJ VOL-00202-03 PP-01254 RT v. 97, n. 868, 2008, p. 152-161) 

SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte.

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(RE 389808, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/2010, DJe-086 DIVULG 09-05-2011 PUBLIC 10-05-2011 EMENT VOL-02518-01 PP-00218 RTJ VOL-00220- PP-00540)

“Recurso. Extraordinário. Inadmissibilidade. Instituições Financeiras. Sigilo bancário. Quebra. Requisição. Ilegitimidade do Ministério Público. Necessidade de autorização judicial. Jurisprudência assentada. Ausência de razões novas. Decisão mantida. Agravo regimental improvido. Nega-se provimento a agravo regimental tendente a impugnar, sem razões novas, decisão fundada em jurisprudência assente na Corte.”

(STF, RE 318136 AgR/RJ, Rel. Min. Cezar Peluso, julgado em 12/09/2006, publicado em 06/10/2006).

Também em situação muito próxima da daqui falada, o TSE deu primazia à inviolabilidade do sigilo de dados fiscais no caso de compartilhamento de informações diretas entre a Receita Federal e o Ministério Publico Eleitoral, para fins de promoção de Representação Eleitoral por doação acima do limite legal:

“AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. REPRESENTAÇÃO. DOAÇÃO. PESSOA JURÍDICA. LIMITE LEGAL. EXTRAPOLAÇÃO. SIGILO FISCAL. QUEBRA. ILEGALIDADE. PROVIMENTO.

 1.  Conforme assentou recentemente esta Corte, "é ilícita a prova colhida por meio da quebra do sigilo fiscal sem prévia autorização judicial, com fundamento no convênio firmado entre o TSE e a Secretaria da Receita Federal" (AgR-REspe n° 427-37/PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 19.5.2015).

 2.  Agravo regimental e recurso especial providos para acolher a preliminar de ilicitude da prova e julgar extinta a representação.”

(Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 15363, Acórdão de 18/08/2015, Relator(a) Min. LUCIANA CHRISTINA GUIMARÃES LÓSSIO, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 199, Data 20/10/2015, Página 35 )

Mutatis mutantis, por certo é que não pode haver também quebra de sigilo bancário diretamente pelo COAF, com transito de informações a respeito de origem e destinação da movimentação financeira do indivíduo.


[1] Curso de Direito Constitucional, 7ª Ed., p. 326.

[2] Art. 9º.  Sujeitam-se às obrigações referidas nos arts. 10 e 11 as pessoas físicas e jurídicas que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não:

I - a captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira;

[3] Art. 10. As pessoas referidas no art. 9º:

(...)

II - manterão registro de toda transação em moeda nacional ou estrangeira, títulos e valores mobiliários, títulos de crédito, metais, ou qualquer ativo passível de ser convertido em dinheiro, que ultrapassar limite fixado pela autoridade competente e nos termos de instruções por esta expedidas;

[4] Art. 11. As pessoas referidas no art. 9º:

(...)

II - deverão comunicar ao Coaf, abstendo-se de dar ciência de tal ato a qualquer pessoa, inclusive àquela à qual se refira a informação, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, a proposta ou realização:

a) de todas as transações referidas no inciso II do art. 10, acompanhadas da identificação de que trata o inciso I do mencionado artigo; e 

[5] Art. 15. O COAF comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito.

[6] Lavagem de Dinheiro, 2012, p. 42-43.

[7] Curso de Direito Administrativo, 19ª Ed., p. 88.

[8] Relacionada à transmissão de informações bancárias à Administração Tributária.

[9] http://jus.com.br/artigos/20931/sigilo-bancario-e-atuacao-do-coaf

[10] Direito Constitucional, 23ª Ed., p. 71.

[11] Art. 1o As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.

...

§ 4o A quebra de sigilo poderá ser decretada, quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, e especialmente nos seguintes crimes:

[12] Art. 17-C.  Os encaminhamentos das instituições financeiras e tributárias em resposta às ordens judiciais de quebra ou transferência de sigilo deverão ser, sempre que determinado, em meio informático, e apresentados em arquivos que possibilitem a migração de informações para os autos do processo sem redigitação.

[13] Art. 11.  O Banco Central do Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários, a Superintendência de Seguros Privados, o Departamento de Polícia Federal, a Subsecretaria de Inteligência da Casa Militar da Presidência da República e os demais órgãos e entidades públicas com atribuições de fiscalizar e regular as pessoas sujeitas às obrigações referidas nos arts. 10 e 11 da Lei nº 9.613, de 1998, prestarão as informações e a colaboração necessárias ao cumprimento das atribuições do COAF e sua Secretaria-Executiva.

§ 1º  A troca de informações sigilosas entre o COAF e os órgãos referidos no caput, quando autorizada judicialmente, implica transferência de responsabilidade pela preservação do sigilo.

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Sobre o autor
Helio Maldonado

Bacharel em Direito.<br>Especialista em Direito Público, Direito Eleitoral e Fazenda Pública em Juízo.<br>Mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais. Advogado<br>Membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/ES.<br>Autor de livro, artigos jurídicos e professor palestrante.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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