Resumo: No presente trabalho buscamos promover a reflexão sobre a tormentosa questão da aplicação da eficácia dos direitos fundamentais, analisando, em um primeiro momento, sua eficácia vertical dos direitos fundamentais para, em seguida, focar a abordagem na eficácia horizontal dos direitos fundamentais e sua aplicação entre os particulares, especificamente nas relações de trabalho, destacando-se as teorias a respeito e pontuando-se algumas decisões proferidas pelos Tribunais pátrios.
Palavras chave: Direitos fundamentais. Eficácia horizontal. Autonomia privada.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho trata da eficácia dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas, demonstrando sua extrema importância, particularmente quando se está diante dos direitos fundamentais trabalhistas.
Embora haja no contexto internacional avanços pela consolidação e universalização dos direitos sociais trabalhistas, o sistema brasileiro infraconstitucional de proteção ao trabalhador incorporou-os de maneira superficial, tendo a Consolidação das Leis Trabalhistas, que data de 1943, com raras exceções, se limitado ao plano meramente patrimonial.
Todavia, a visão diminutiva e reducionista do legislador infraconstitucional de 1943 foi desalojada pela eficácia dos direitos fundamentais trazida à baila pelo texto constitucional pátrio de 1988. Uma vez inseridos direitos e garantias na carta constitucional de um Estado, cumpre verificar a eficácia desses direitos.
Assim, o problema que se vislumbra é quanto à aplicabilidade da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações de trabalho subordinado, relação esta marcada pela profunda desigualdade entre os particulares, tendo de um lado o empregador, detentor do poder empregatício e do outro o empregado, hipossuficiente e vulnerável.
A questão em apreço é tormentosa, o que nos levou a analisar com afinco as diferentes formas de eficácia dos direitos fundamentais, debruçando-nos, especificamente, quanto à eficácia horizontal desses direitos e a possibilidade de sua aplicação no âmbito das relações de trabalho.
DIREITOS FUNDAMENTAIS: BREVES CONSIDERAÇÕES
É difícil estabelecer-se um conceito específico para os direitos fundamentais, especialmente porque há uma confusão terminológica e normativa para se designar os direitos básicos dos homens. Observa-se que expressões como: “direitos fundamentais”, “direitos humanos”, “direitos dos homens”, “direitos individuais”, “liberdades públicas” e “direitos humanos fundamentais” são comumente utilizadas tanto na doutrina como no direito positivo como sinônimas.
Dentre as expressões citadas, merece especial atenção a diferenciação entre “direitos fundamentais” e “direitos humanos”. O primeiro está relacionado com a positivação no direito constitucional interno, do que está escrito na constituição do Estado, enquanto o segundo refere-se ao direito internacional, ou seja, as garantias jurídicas das quais o ser humano tem direito em relação aos tratados, contratos e convenções entre países, a fim de assegurar a condição do direito do homem enquanto ser humano.
Destacamos aqui nossa preferência pela terminologia “direitos fundamentais”, comungando com o entendimento de Ingo Sarlet.
As transformações históricas pelas quais passaram os direitos fundamentais não foram ignoradas pela doutrina, que reconhece a existência de gerações ou dimensões de direitos.
Num primeiro momento, os direitos fundamentais foram divididos em três grupos ou gerações: 1º – o das liberdades de negativas clássicas, ou seja, os direitos civis e políticos; 2º – o das liberdades positivas, reais ou concretas, compreendidos como os direitos econômicos, sociais e culturais; 3º – o dos direitos coletivos e difusos. Modernamente fala-se ainda na existência de uma 4ª e 5ª geração.
A maioria dos doutrinadores se utiliza das expressões “dimensão” ou “geração” de direitos, todavia, esta última vem perdendo admiradores.
O direito constitucional do trabalho trata dos direitos individuais e sociais consagrados no catálogo constitucional.
Aos direitos individuais correspondem, ainda que com exceções, prestações de natureza negativa, ou seja, abstenções do Estado e dos demais indivíduos no que tange à fruição da liberdade em suas diversas manifestações e ainda de outros direitos pertencentes aos indivíduos.
Já os direitos sociais, assim como os econômicos e os culturais, como dito alhures, implicam prestações positivas por meio das quais o Estado e porque não dizer a sociedade, são compelidos a contribuir, assistir e proporcionar algumas condições aos hipossuficientes, buscando corrigir uma situação de desigualdade.
José Afonso da Silva (2007) divide os direitos sociais relativos ao obreiro em direitos dos trabalhadores em suas relações individuais de trabalho (art. 7º da CF/88) e direitos coletivos dos trabalhadores (arts. 9º a 11 da CF/88).
A Magna Carta de 1988, no plano dos princípios fundamentais elencados no Título I e que interessam ao constitucionalismo social, dispõe, entre outros, dos seguintes fundamentos e objetivos: a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
No Título II, a Constituição apresenta, em seu Capítulo I os direitos e deveres individuais e coletivos e os direitos sociais no Capítulo II.
Observa-se facilmente que um extenso rol de dispositivos tratando sobre os direitos dos trabalhadores repousa no art. 7º da Constituição Federal, e minuciosamente complementado pelo art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, sendo que muitos de seus preceitos são auto aplicáveis e outros tantos dependem de regulamentação pelo legislador ordinário.
Importante frisar que o disposto no art. 5º, §2º da Carta Constitucional pátria, que admite a existência de outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, bem como dos tratados internacionais dos quais a República Federativa do Brasil seja parte, tem grande relevância para o direito do trabalho, uma vez que há grande produção normativa da Organização Internacional do Trabalho, sobretudo as convenções, as quais estão sujeitas à ratificação, sendo então inseridas no ordenamento brasileiro.
Não se pode olvidar que em relação aos direitos fundamentais a Constituição Federal de 1988 é mais abrangente que todas as suas antecessoras, já que consagra os direitos e deveres individuais e coletivos além de abrir um capítulo para definir os direitos sociais.
Em nosso país, os direitos fundamentais estão inseridos no campo da regulação das relações de trabalho tanto individuais quanto coletivas.
Nas relações de trabalho os direitos de primeira dimensão são todos os direitos civis da pessoa humana que podem sofrer alguma lesão no ambiente de trabalho, tais como: a honra, a intimidade a vida privada e a dignidade da pessoa humana. Há ainda que se mencionar o disposto no art. 7º, XXII da CF, que assegura o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
Os direitos fundamentais de segunda geração nas relações de trabalho são, basicamente, todos os direitos sociais “strictu sensu”, tais como: direito ao salário mínimo, direito aos fundo de garantia por tempo de serviço, direito às horas extras, direito à jornada regular de trabalho, direito à férias, direito ao décimo terceiro salário, direito às verbas rescisórias, direito à participação nos lucros e resultados da empresa, dentre tantos outros. Seriam direitos a prestação, que nos dizeres de Sarlet objetivam a garantia da liberdade-autonomia, que é a liberdade perante o Estado e também a liberdade por intermédio do Estado. Isto porque “o indivíduo, no que concerne à conquista e manutenção de sua liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes públicos.” (2005, p. 217).
Pode-se ainda afirmar que o direito ao meio de trabalho equilibrado, apresenta-se no campo laboral como direito de terceira dimensão.
Percebe-se que uma grande parte dos direitos dos trabalhadores são, na verdade, concretizações do direito de liberdade e do princípio da igualdade. E podemos ousar em dizer que, além de posições jurídicas dirigidas a uma proteção contra a ingerência por parte dos poderes públicos, o são também contra oponíveis às entidades privadas. Sarlet (2005, p. 272), arremata afirmando que os dispositivos dos artigos 7º a 11 da Constituição Federal de 1988 contêm típicos direitos de defesa e se situam no âmbito das liberdades sociais.
Inegável se reconhecer que apenas um amplo catálogo de direitos fundamentais não é, por si só, garantidor de sua efetividade, bem como não se pode deixar de destacar crítica a alguns dispositivos do Título II de nossa constituição, os quais não demonstram as características de direitos fundamentais, revelando-se verdadeiras normas organizacionais, caso do artigo 14, §3º, incisos I a IV, por exemplo.
Todavia, em que pese a existência de pontos merecedores de crítica, o saldo é positivo, e como bem dispõe Sarlet,
[...] os direitos fundamentais estão vivenciando o seu melhor momento na história do constitucionalismo pátrio, ao menos no que diz com seu reconhecimento pela ordem jurídica positiva interna e pelo instrumentário que se colocou à disposição dos operadores do Direito, inclusive no que concerne com a possibilidade de efetivação sem precedentes no ordenamento nacional. (2005, p.80).
DA EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
A problemática da eficácia das normas constitucionais é tema que há muito se discute na doutrina brasileira, especialmente a partir da primeira constituição republicana, datada de 1891. Desde então até meados dos anos 70 do século passado prevaleceu entre os doutrinadores pátrios, capitaneados por Ruy Barbosa e influenciados pela doutrina e pelas decisões da suprema corte norte americana, a distinção entre normas auto-aplicáveis (ou auto executáveis) e normas não auto aplicáveis (ou não auto executáveis). As primeiras seriam aquelas que estariam aptas a gerar seus efeitos por si próprias, sem depender de qualquer atuação do legislador. Já as segundas seriam normas incompletas, cuja aplicabilidade dependeria de uma ação positiva do legislador infraconstitucional.
Esta clássica classificação das normas constitucionais passou a ser objeto de crítica entre nossos doutrinadores a partir da década de cinquenta, especialmente porque não condizia mais com o direito constitucional pátrio, que desde a constituição de 1934 tinha um cunho eminentemente social e programático e vinha se alinhando, principalmente, com as lições de juristas italianos e alemães da época de Weimar. Assim, enquanto a doutrina clássica partia do princípio de que a maioria das normas constitucionais não era diretamente aplicável, dependendo de atuação do legislador infraconstitucional, a atual parte da premissa de que a maioria das disposições constitucionais são diretamente aplicáveis.
Dentre os publicistas pátrios, um dos primeiros a contribuir com a reformulação da doutrina clássica foi José Horácio Meirelles Teixeira, que classificou as normas constitucionais em normas de eficácia plena e normas de eficácia limitada ou reduzida. Todavia, foi a sistematização tricotômica do problema referente a eficácia e a aplicabilidade das normas constitucionais proposta por José Afonso da Silva que teve a maior aceitação e foi preponderantemente adotada pela doutrina e jurisprudência pátria.
Para José Afonso da Silva, as normas constitucionais não podem ser classificadas apenas em dois grupos, pois há uma terceira categoria que não se encaixa em nenhuma das duas espécies idealizadas pela doutrina norte americana. Segundo citado autos, as normas constitucionais devem ser divididas em três grupos: normas de eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limitada.
As de eficácia plena são aquelas que estão aptas a produzir todos os seus efeitos desde o momento em que a Constituição entra em vigor, não exigem a atuação do legislador ordinário, uma vez que já se apresentam suficientemente explícitas na definição dos interesses nela regulados. São, então, tidas como normas de aplicabilidade direta, imediata e integral.
As normas constitucionais de eficácia contida são aquelas que têm aplicabilidade direta e imediata, mas possivelmente não integral, ou seja, nas palavras do próprio José Afonso da Silva, citado por Sarlet (2005, p. 245) “são aquelas em que o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou margem à atuação descritiva do por parte da competência discricionária do poder público (...).”
Já as normas constitucionais de eficácia limitada são aquelas que, desde a promulgação da Constituição, não tem o condão de produzir seus principais efeitos, porque o legislador constituinte não estabeleceu, sobre a matéria, uma normatividade para isso bastante, necessitando, assim, da de intervenção do legislador infraconstitucional. As normas de eficácia limitadas têm apenas um efeito mínimo, qual seja, o de vincular o legislador ordinário aos seus vetores. São, portanto, de aplicabilidade indireta, mediata e reduzida.
A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Em consonância com o disposto no artigo 5º, §1º da Constituição Federal de 1988, os direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata, vinculando os poderes públicos independentemente do reconhecimento expresso por lei infraconstitucional, estando protegidos não apenas diante do legislador ordinário, mas também da ação do poder constituinte reformador, por integrarem o rol das denominadas cláusulas pétreas, positivadas no artigo 60, §4º da Carta Magna. Questiona-se, entretanto, a abrangência da norma em comento, ou seja, se é aplicável a todos os direitos fundamentais, inclusive os externos ao catálogo, ou se abrangeria apenas os direitos fundamentais individuais e coletivos elencados pelo artigo 5º da CF/88.
A eficácia vertical diz respeito a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares e o poder público. Trata-se da limitação imposta pelo ordenamento jurídico à atuação dos governantes frente aos governados, já que entre eles há uma relação vertical de poder, estando de um lado o ente mais forte, o Estado e do outro o mais fraco, ou seja, o individuo.
Num primeiro momento, observa-se que a eficácia vertical esteve vinculada à evolução do Estado absoluto ao Estado liberal, caracterizando-se com uma forma de proteção das liberdades individuais e de impedimento a interferência do Estado na vida particular dos cidadãos.
Com o advento do Estado social, seguindo a classificação de Jellinek, aparece a teoria do status positivo ou status civitatis, segundo a qual os indivíduos passaram a exigir dos poderes públicos uma atuação positiva,, devendo estes realizar uma prestação a favor daqueles. O Estado passa, então, a atuar de modo positivo, seja atuando diretamente através de prestações estatais positivas, seja intervindo nas relações entre os particulares.. Deste modo, o Estado passou a promover diretamente prestações de serviços.
Hodiernamente, se defende a incidência dos direitos fundamentais também nas relações privadas (particular-particular), é a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, também chamada de eficácia privada, eficácia externa ou eficácia dos direitos fundamentais entre terceiros.
Neste sentido, Sarmento:
De acordo com doutrina liberal clássica, os direitos fundamentais limitar-se-iam à regência das relações públicas, que tinham o Estado como um dos seus pólos. Tais direitos eram vistos como limites ao exercício do poder estatal, que, portanto, não se projetavam no cenário das relações jurídico-privadas. Todavia, dita concepção, tributária que era do individualismo possessivo que caracteriza o constitucionalismo liberal burguês, revela-se hoje profundamente anacrônica. De fato, parece indiscutível que se a opressão e a violência contra a pessoa provêm não apenas do Estado, mas de uma multiplicidade de atores privados, presentes em esferas como o mercado, a família, a sociedade civil e a empresa, a incidência dos direitos fundamentais na esfera das relações entre particulares se torna um imperativo incontornável. (2008, p. 193-194).
No constitucionalismo moderno, não se pode aceitar o fato dos particulares, com amparo no princípio da autonomia da vontade afastar livremente os direitos fundamentais.
Parece não quedar dúvidas entre os estudiosos quanto a incidência dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas. A grande celeuma reside no fato de como se dá esta incidência, afinal, não seria correto equiparar o particular à posição de sujeito passivo do direito fundamental, igualando-o aos poderes públicos, pois o indivíduo, diversamente do Estado, é titular de direitos fundamentais e a própria Constituição lhe garante um poder de autodeterminação dos seus interesses privados.
A TEORIA DA “STATE ACTION” E A NEGAÇÃO DA EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS
A ideia da state action desenvolveu-se especialmente nos Estados Unidos da América. Em resumo, a doutrina do state action admite apenas que os direitos fundamentais sejam aplicados às relações privadas quando se verificar o exercício de uma função pública por um particular e quando se verificar uma conexão ou implicação grande entre a atividade privada e a estatal.
TEORIA DA EFICÁCIA INDIRETA E MEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS
A teoria da eficácia indireta e mediata é uma construção intermediária entre a teoria do state action, que nega a vinculação dos particulares ao direitos fundamentais e a teoria da eficácia direta e imediata, que será estudada no tópico seguinte, a qual prega a incidência direta dos direitos fundamentais na esfera privada.
A teoria da eficácia indireta, como o próprio nome sugere, é aplicada de forma indireta, ou seja, os direitos fundamentais não ingressam no campo privado como direitos subjetivos, que possam ser invocados a partir da Constituição. Segundo os defensores dessa teoria, cabe ao legislador e ao juiz, ao criarem ou analisarem direitos privados, se socorrer aos princípios e direitos constitucionais, porém sempre dentro dos parâmetros do direito privado.
Não se pode deixar de mencionar que a teoria em comento foi alvo de diversas críticas, muitas delas apontando que a referida posição não distingue da já utilizada técnica da interpretação conforme à Constituição e por não proporcionar uma tutela integral dos direitos fundamentais na esfera privada, a qual ficaria dependente do legislador ordinário.
TEORIA DA EFICÁCIA DIRETA E IMEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS
A bandeira da teoria da eficácia direta e aplicação imediata dos direitos fundamentais nas relações que envolvem pessoas privadas foi levantada inicialmente na Alemanha, pelo juiz do Tribunal Federal do Trabalho Hans Carl Nipperdey, cuja primeira manifestação sobre a matéria teria se dado num artigo publicado por ele em 1950, sobre a igualdade do homem e da mulher em relação ao direito ao salário, aprofundando a abordagem em um livro escrito conjuntamente com Ennecerus sobre a parte geral do Direito civil alemão. Segundo Nipperdey, os direitos de estatura constitucional são vinculantes ao Estado, contudo alguns deles, pela natureza que ostentam, podem ser invocados nas relações privadas, sendo exigidos erga omnes e sem a necessidade de mediação pelo legislador privado. Os ataques aos direitos dos cidadãos não são apenas desferidos pelo poder público, antes são alvo das investidas de outros particulares. A unidade da ordem jurídica, capitulada pela Lei Fundamental, não coloca o direito privado à margem da influência das normas constitucionais. Como efeito direito da hierarquia das leis, encontra-se o direito privado vinculado à Carta (retomemos aqui a idéia do sistema jurídico uno, no qual estão todas as normas de direito público e de direito privado).
Nipperdey, citado por Jane Reis Gonçalves Pereira, apregoa que:
Não poucas disposições tem a importante função de proposições ordenadoras ou princípios para a ordem jurídica em seu conjunto. Trata-se do efeito diretamente normativo de algumas disposições jurídico-fundamentais como direito constitucional objetivo vinculante, que tenha vindo a derrogar, modificar, completar ou criar disposições jurídico-privadas. Este direito constitucional emana para os âmbitos jurídicos extra constitucionais não só diretrizes ou regras de interpretação, mas uma regulação normativa do ordenamento jurídico em seu conjunto unitário, da qual também emanam diretamente direitos subjetivos privados do indivíduo.(2008, p. 158)
TEORIA DOS DEVERES DE PROTEÇÃO
A teoria dos deveres de proteção surgiu mais recentemente na Alemanha, tendo entre seus principais autores Joseph Insensee, Stefan Oeter, Klaus Stern e Claus-Wilhelm Canaris. Segundo esta Teoria, ao Estado cabe não apenas a obrigação de abster-se de violar os direitos fundamentais, mas inclusive tem a obrigação de protegê-los diante de lesões e ameaças oriundas de terceiros, mesmo as que provenham de particulares.
Segundo Daniel Sarmento,
A teoria dos deveres de proteção baseia-se na ideia de que a conciliação entre a autonomia privada e os direitos fundamentais deve incumbir ao legislador e não ao Judiciário. Ela resguarda, no entanto, a possibilidade de intervenção do Judiciário, através do controle de constitucionalidade das normas do Direito Privado, quando o legislador não proteger adequadamente o direito fundamental em jogo, bem como quando ele, agindo de modo inverso, não conferir o devido peso à proteção da autonomia privada dos particulares.APLICABILIDADE DA EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES LABORAIS
Embora haja no contexto internacional avanços pela consolidação e universalização dos direitos sociais trabalhistas, o sistema brasileiro infraconstitucional de proteção ao trabalhador incorporou-os de maneira superficial, tendo a consolidação das Leis Trabalhistas, que data de 1943, com raras exceções, se limitado ao plano meramente patrimonial.
Todavia, a visão diminutiva e reducionista do legislador celetista foi desalojada pelo texto constitucional pátrio de 1988.
Segundo Barroso, citado por Bruno Furtado Silveira em ensaio sobre o tema, a necessidade de aplicação horizontal dos direitos fundamentais é diretamente proporcional à desigualdade das partes envolvidas no conflito. Quanto maior a disparidade entre os sujeitos, maior deve ser a intervenção estatal em favor da parte considerada hipossuficiente.
Ora, em uma relação de trabalho, é notória a disparidade entre as partes envolvidas. O contrato de trabalho, mesmo compreendendo uma relação entre particulares, não se estabelece entre indivíduos iguais e com plena autonomia. Nele encontramos uma relação jurídica vertical, desigual e de sujeição, na qual uma das partes detém posição inequivocamente superiora, em que reside o poder diretivo do empregador, e em decorrência de tal posição, o empregado tem sua liberdade e poder de autodeterminação limitada.
Carlos Henrique Bezerra Leite, em ensaio sobre o tema, defende:
Importa referir que no campo das relações de trabalho subordinado, nomeadamente nas relações empregatícias, há amplo espaço para a adoção da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, tanto no plano individual quanto no plano metaindividual.
À guisa de exemplo, podemos citar o direito dos empregados à indenização por danos morais e materiais decorrentes de assédio moral ou sexual (CF, arts. 1º e 5º, X). Neste caso, a lesão a um direito fundamental (e da personalidade) foi perpretado pelo empregador, cabendo a este, e não ao Estado, o deverá de reparar os danos morais e materiais sofridos pelo trabalhador.
Os direitos fundamentais expressam uma ordem de valores objetiva, com eficácia plena e irradiante por toda a ordem jurídica, inclusive sobre o direito privado que disciplina as relações de trabalho.
Receios difundidos na doutrina de que a força jurídica dos preceitos constitucionais, aplicáveis de forma imediata ou direta nas relações particulares, poderia inibir a autonomia privada, não tem razão de ser, vez que, no âmbito das relações de trabalho, há real exercício de poder por parte de um dos contratantes – o empregador.
Assim, conclui-se que a relação de trabalho subordinado se reveste em uma relação jurídica privada em que a aplicação da teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais revela-se extremamente necessária, ante a desigualdade de fato entre o empregado e o empregador, e mesmo quando se tratar de direitos fundamentais inespecíficos, estes deverão ter plena eficácia no âmbito da relação laboral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Constituição Federal de 1988, com a inserção em seu artigo 7º dos direitos trabalhistas como fundamentais deu ensejo à formulação doutrinária que garante a possibilidade de exercê-los diretamente em face do Estado, que além de não agredi-los deve fazê-los ser respeitados pelos particulares (eficácia vertical).
Ao longo deste trabalho, analisamos detalhadamente as teorias acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. De plano rechaçamos a possibilidade de aplicação da teoria do “state action”, que nega a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, especialmente por tratar-se a Constituição Brasileira de 1988 de uma Constituição eminentemente protetora.
Em que pese, então, inegável a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, especialmente quando se trata de aplicá-los a uma relação laboral, observamos ao longo deste estudo que há grande controvérsia sobre como se opera esta eficácia. Parte da doutrina admite a eficácia mediata ou indireta, que implica a necessidade de preservar a autonomia privada, tornando-se então necessária a intervenção de um órgão estatal como intermediador da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, de forma indireta ou mediata, o que poderá se dar quando o juiz interpreta ou aplica o direito à luz do direito constitucional ou através da mediação do legislador concretizando a norma constitucional.
De outra banda, encontramos a teoria da eficácia imediata ou direta, a qual tem por pedra de toque a ideia de que a ordem jurídica forma uma unidade, e todo direito só disciplina com base na Constituição, apregoando que a aplicação das normas de direitos fundamentais deve ter eficácia direta e imediata entre os particulares.
Observamos que a preocupação esgrimida pelos adeptos da teoria da eficácia indireta dos direitos fundamentais quanto ao esvaziamento da autonomia privada não tem razão de ser, uma vez que o ponto fundamental não diz respeito à proteção ou não da autonomia privada, mas sim se esta deve ou não prevalecer frente aos demais direitos fundamentais quando se tratar de relações jurídicas privadas, em especial relações jurídicas com evidentes disparidades de forças.
As relações de trabalho privada não são marcadas pela relação entre iguais. As relações de trabalho são assimétricas, sendo que as partes envolvidas demonstram notória disparidade de forças, tendo de um lado o empregador, titular do meio de produção e detentor do poder empregatício (econômico, regulamentar, diretivo e disciplinar) e do outro o empregado, hipossuficiente, vulnerável e sujeito à vontade do empregador.
Neste diapasão, concluímos que deverão os direitos fundamentais ser também normas de valor que refletem o sistema jurídico, transpondo-se do âmbito constitucional para as relações privadas, aplicando-se de forma direta e imediata a toda ordem jurídica, especialmente nas relações de trabalho, a fim de prevalecer, ao final, a preservação da dignidade da pessoa humana.
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