A evolução da imunidade de jurisdição: uma abordagem à luz do Direito Internacional e interno

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A evolução da imunidade de jurisdição com foco na transição da teoria absoluta da imunidade jurisdicional para a teoria que relativiza referido instituto. Para tanto, analisa-se a temática por meio da jurisprudência nacional e da doutrina.

INTRODUÇÃO

            Para a compreensão da imunidade de jurisdição, faz-se imprescindível explicitar o seu conceito e fundamentos. A palavra jurisdição advém do latim juris dictio que significa ‘dizer o direito’, isto é, trata-se de uma função por meio da qual o Estado soluciona conflitos de interesses, ao aplicar o direito em concreto. De acordo com Antonio Cintra, Ada Pellegrini e Cândido Dinamarco (2012, p. 155):

[...] a jurisdição é, ao mesmo tempo, poder, função e atividade. Como poder, é manifestação do poder estatal, conceituado como capacidade de decidir imperativamente e impor decisões, Como função, expressa o encargo que têm os órgãos estatais de promover a pacificação de conflitos interindividuais, mediante a realização do direito justo e através do processo. E como atividade ela é o complexo de atos do juiz no processo, exercendo o poder e cumprindo a função que a lei lhe comete. O poder, a função e a atividade somente transparecem legitimamente através do processo devidamente estruturado (devido processo legal). 

Já, para Chiovenda (1962, p. 3), o termo de ‘jurisdição’ apresenta um caráter substitutivo:

Pode definir-se a jurisdição como a função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva.  

            Desse modo, a imunidade de jurisdição é entendida como instituto que impossibilita que determinados indivíduos sejam julgados por outros Estados contra a sua vontade. Nesse sentido, a imunidade de jurisdição do Estado impede que este se submeta a jurisdição de outro Estado soberano, salvo se houver consentimento. Trata-se, pois, de uma garantia do Estado, que protege seu patrimônio e bens.

            Conforme Paulo Henrique Portela (2014, p.192),

A imunidade de jurisdição fundamenta-se, em síntese, na proteção das pessoas naturais e jurídicas que atuam nas relações internacionais, que precisam contar com a prerrogativa de exercer suas funções sem constrangimentos de qualquer espécie, que possam afetar a expressão de sua vontade.

            A ideia de imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro decorre, primeiramente, do princípio comitas gentium, uma prática costumeira internacional, que faz referência à igualdade entre as soberanias estatais. De modo que, a concepção de que nenhum Estado tem o poder de sujeitar outro a sua jurisdição advém da igualdade existente entre eles e da própria ideia de soberania que se tinha numa época de formação dos Estados nacionais.

1 CONTEXTO HISTÓRICO

1.1 A imunidade absoluta

            A princípio, prevaleceu na ordem internacional a compreensão de que a imunidade jurisdicional dos Estados era absoluta. Este pensamento foi concebido pela teoria da imunidade absoluta a qual aduzia que o ente estatal alienígena não fica obrigado em relação à jurisdição doméstica de outro Estado (princípio do par in parem non habet judicium).

            Remonta à antiguidade clássica a primeira compreensão acerca da jurisdição absoluta dos Estados. Seguiu-se essa tendência inclusive, e de modo acentuado, na Idade Média. Nesse sentido, Jules Michelet (1992) e Guido Fernando Silva Soares (1984) apud SOUSA, (2000, p. 144):

A primeira ideia de imunidade de jurisdição internacional remonta à Antiguidade Clássica, onde os mensageiros (embaixadores) enviados para negociar em terras outras, em nome do soberano, eram protegidos pelo deus Hermes (Mercúrio). Já na Idade Média os privilégios eram concedidos de acordo com a classe social a que pertenciam os enviados. Fato interessante ressaltar é que, na Idade Média, principalmente na Idade Média Central (séc. XI a XIII), a Igreja tinha imunidade irrestrita e absoluta, chegando mesmo a se confundir com a dos monarcas. Os Tribunais Eclesiásticos, que se formavam em exagero nos anos da Inquisição, eram muito mais organizados que os Tribunais Civis. Os representantes dos primeiros gozavam de imunidade absoluta porque julgavam pelas leis divinas.

              Nessa toada, o caráter absoluto da jurisdição estatal refletiu bem a forma de organização dos Estados autocráticos, nos limites de seu território e nas relações diplomáticas estabelecidas com seus pares. Fundado nessa premissa, à época em que se adotou a teoria absoluta da jurisdição, edificou-se o conceito de soberania estatal como forma de legitimar o poderio político das monarquias em detrimento das ingerências oposicionistas que provinham tanto do âmbito externo (como o era a interferência constante da Igreja Católica na organização dos Estados durante a Idade Média) e no interno (os interesses dos senhores feudais).

            Ademais, é ainda possível vislumbrar o caráter absoluto da jurisdição no período do absolutismo monárquico (Idade Moderna). Durante este período, os embaixadores eram considerados mensageiros dos reis, os quais tinham reconhecida a infalibilidade na tomada de decisões, e por isso não poderiam ser submetidos à jurisdição de qualquer outro Estado. Certamente foi neste momento que se sucedeu o auge da compreensão absoluta da jurisdição, porquanto foi a época em que as nações soberanas (apesar de não serem todas elas, como atestava a desorganização estrutural dos territórios que vieram a compor os países da Alemanha e Itália) gozaram de plena organização estatal, estruturada na figura do monarca soberano.

            Desse modo, fica evidente que as concepções da época, no que concerne à soberania e imunidade dos Estados, vinculavam-se nitidamente à conceituação destes sob o viés estritamente político. Isto porque se vislumbrava, nesse momento, que as atribuições estatuídas aos Estados tratavam, quase que exclusivamente, acerca dos aspectos garantidores da ordem pública.

1.2 A relativização da imunidade jurisdicional dos Estados soberanos

Durante todo o período que antecedeu a derrocada do regime absolutista, como é de sabença, prevaleceu à concepção absoluta da jurisdição estatal frente aos Estados estrangeiros. Entretanto, foi com o surgimento das concepções iluministas, preconizando ideais como o liberalismo econômico, a defesa dos direitos individuais e a diminuição da ingerência estatal na vida dos particulares, que começou a tendência da relativização da imunidade de jurisdição dos Estados.

            Dada a influência da nova corrente de pensamento, a qual irradiou seus ideais para aspectos que foram muito além da mera organização política estatal, evidente que  o poder estatal perdeu privilégios e, obviamente, o conceito de soberania foi paulatinamente reformulado.

A lentidão na reformulação teórica foi inevitável, pois a mudança de paradigma estatuída com os novos ideais não foi aceita de plano pelos monarcas. Houve, além do processo de derrocada dos regimes autoritários, um período de adaptação o qual demandou relativa quantidade de tempo para restar concluído. Importante ressaltar, por oportuno, que as inovações dos ideais iluministas não foram verificadas e implementadas de modo uniforme. Comprova isto o fato de que, no século XX, alguns países ainda concebiam a jurisdição estatal como absoluta, a despeito de muitos outros já adotarem a concepção relativa da jurisdição estatal.

            Desse modo, a relativização da imunidade jurisdicional dos Estados só ganhou contornos mais claros a partir do século XX. Com a intensificação da atividade comercial e a globalização, os Estados começaram a atuar nessa área, travando relações empresariais com os particulares. Este cenário contribuiu para a relativização da imunidade de jurisdição, uma vez que o Estado, mesmo atuando como particular, seria imune a jurisdição de outro país, gerando um tratamento dispare entre os sujeitos desta relação. Para combater tal injustiça, fez-se necessária a submissão do Estado soberano aos órgãos judiciais de outro, com o escopo de reequilibrar as relações comerciais.    

Nesse contexto, releva destacar a importância das Convenções de Viena sobre Relações Diplomáticas realizada em 1961 e a Convenção de Viena Sobre Relações Consulares celebrada em 1963 das quais o Brasil é signatário.

Sobre o tema, confira-se a escorreita lição de Eneas Bazzo Torres (2012, p. 80).

A Convenção de 1961 estabelece que os agentes diplomáticos gozarão de imunidade de jurisdição nas ordens penal, civil e administrativa, salvo, quanto a estas últimas, se o interesse for privado (v.g., ações relativas a móveis ou imóveis privados, ações sucessórias, ações ligadas a relações negociais), ou seja, não relacionado com o serviço da missão (art. 31). Relativamente ao pessoal da missão, as imunidades têm o mesmo caráter, ampliando-se, porém, as hipóteses de restrição. Quanto à Convenção de 1963, também em linhas breves cabe referir que os representantes consulares não gozam de imunidade absoluta em matéria penal. No pertinente à jurisdição civil, as imunidades alcançam apenas os atos diretamente relacionados com os ofícios consulares, não se estendendo ao pessoal do serviço.

            Acrescenta-se à sucinta e brilhante análise exposta acima, o fato de que a Convenção vienense de 1961 serviu de arcabouço normativo à Convenção que lhe sucedeu, posto que a Convenção de 1963 buscou inspiração na sua antecessora. Destarte, a Convenção de 1961 enquadra-se como a primeira grande obra codificadora com caráter universal do direito diplomático mediante a consolidação de regras consuetudinárias ou estabelecidas em convenções bilaterais entre Estados soberanos.

            Noutras palavras, reconhece-se o esforço de codificação na realização da Convenção de Viena em 1961. Este evento teve o grande mérito de pacificar o costume aplicável nas relações entre os Estados e também se prestou a reavaliar o significado da regra costumeira a ser vigente para os momentos pós-convenção. Ademais, sua força vinculante (pacta sunt servanda) é outro aspecto destacável quando os estados signatários ratificam o texto codificado o qual terá o condão, a partir deste momento, de produzir efeitos na órbita jurídica dos países membros.

            De outra banda, entretanto, há doutrina minoritária que reconhece, tão somente, a existência da mera declaração de direitos costumeiros na Convenção de Viena de 1961. Esta corrente de estudiosos peca por não reconhecer o caráter vinculante da convenção e a possibilidade da produção de efeitos jurídicos na órbita particular do ordenamento de cada Estado soberano que lhe é signatário.

2 NO ÂMBITO  DO DIREITO INTERNACIONAL

            A questão da imunidade jurisdicional do Estado estrangeiro demorou a ser pacificada e tampouco foi tratada, sempre, do mesmo modo pelos diversos países soberanos. Em que pese não haver total consenso sobre a temática, o direito diplomático conseguiu, através de grandes esforços, fixar alguns parâmetros sobre o conteúdo e alcance da imunidade de jurisdição dos Estados alienígenas.

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            Nesse contexto, os relevantes acontecimentos históricos do século XX foram determinantes, pois, a partir do pós Segunda Guerra Mundial, incrementaram-se as relações comerciais e aprimorou-se o fenômeno da globalização.  Decorreu disto a necessidade dos Estados soberanos criarem novas diretrizes para as relações diplomáticas. Por isso, ganhou bastante relevo a organização das Convenções sobre Relações Diplomáticas e Consulares, realizadas respectivamente em 1961 e 1963, na qual os países signatários fixaram normas para assegurar o eficaz desempenho das missões diplomáticas.

            No entanto, em um primeiro momento, acreditou-se que as regras estabelecidas pelas supramencionadas convenções conferiam aos Estados estrangeiros imunidade total de jurisdição em face da jurisdição dos países nos quais realizam suas missões diplomáticas. Prevalecia, assim, a noção costumeira da ausência de jurisdição entre nações soberanas (parem non habet judicium), isto é, nenhum Estado soberano podia ser submetido, contra sua vontade, à condição de parte perante o foro doméstico de outro Estado.

            Desse modo, ainda no século XX, se aceitava a concepção absoluta da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro a qual encontrava respaldo na emblemática jurisprudência estadunidense, encabeçada pelo precedente do caso da Escuna Exchange julgado pela Suprema Corte daquele país. Em 1810, a Escuna Exchange utilizada para fins comerciais e de propriedade de dois nacionais norte-americanos, foi aprisionada pela marinha francesa. Por ordem de Napoleão Bonaparte, foi transformada em navio de guerra (o "Balaou"). Dois anos depois, a Escuna foi forçada a aportar no estado da Filadélfia, nos Estados Unidos, a fim de que se realizassem reparos. Nesta oportunidade, os ex-proprietários americanos moveram ação possessória para reaver a Escuna. O governo francês, todavia, contestou, sob o argumento de que, como navio de guerra, a Exchange constituía-se em longa manus do imperador e tinha direito à imunidade, tal como o próprio Napoleão Bonaparte.

            Sobre o caso, confira-se a lição de Maria Priscila Mendonça Furtado e Júlia Fiorin de Vasconcellos (2011, p. 10):

a sentença do Chief Justice Marshall favorece a tese do caráter absoluto da imunidade de jurisdição,excepcionando, portanto, a França da jurisdição das cortes norte-americanas. Esse precedente orientou as cortes não só dos Estados Unidos, mas de diversos outros países, a concederem imunidade absoluta e irrestrita para os Estados estrangeiros perante os tribunais nacionais, restando os indivíduos lesados sem praticamente nenhum remédio.

            Logo, a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos favoreceu a França, respeitando sua imunidade jurisdicional absoluta em face daquele país, ainda que isto tenha resultado em prejuízo para os ex-proprietários da Escuna. E era inspirado nesse marcante precedente que os países signatários das Convenções de Viena entendiam a temática da imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros. Em contrapartida, já àquela época, tribunais belgas e italianos aplicavam a relatividade da imunidade jurisdicional do Estado estrangeiro, mas tal prática foi exceção no período.

            Entementes, ainda no século XX, percebeu-se que a teoria absoluta da imunidade de jurisdição não poderia mais prevalecer. A globalização e o incremento das relações comerciais entre os países, como dito alhures, fomentou mudança no entendimento acerca da imunidade jurisdicional dos Estados, dando espaço à relativização desta. Isto porque foi necessário repensar o tratamento jurídico dispensado aos atos dos Estados, os quais não mais restavam limitados às suas atribuições eminentemente políticas e administrativas afetas ao governo da nação.

            Nessa sentido, ganhou destaque a necessidade de serem distinguidos os atos de gestão (iure gestionis ou privatorum) dos atos de império (jure imperii) cujo mérito é conferido às jurisprudências italiana e belga. Nestes países, passou-se a negar imunidade jurisdicional absoluta do Estado estrangeiro para atos praticados em sua capacidade privada, rompendo-se com a tendência prevalente até então. Assim, os representantes de países estrangeiros praticam atos de interesse privado quando atuam como se fossem um particular (ato de natureza comercial, isto configura mero ato de gestão e não tem o condão de conferir ao representante imunidade jurisdicional absoluta em face de tal prática). Por outro lado, os atos de império representam diretamente os interesses do ente soberano representado pelo agente como os atos legislativos, atos relativos às representações diplomáticas e consulares, os relativos às forças armadas, etc que merecem imunidade jurisdicional, porém de caráter relativo.

            No mesmo sentido é o posicionamento de Maria Priscila Mendonça Furtado e Júlia Fiorin de Vasconcellos (2011, p. 14):

A doutrina internacionalista clássica define aqueles primeiros como sendo todo ato praticado em nome da soberania do Estado estrangeiro, fazendo valer sua posição de agente diplomático, bem como aqueles decorrentes de contratos firmados em nome do próprio Estado. São os atos com os quais os agentes diplomáticos desempenha o ofício que lhes foi confiado, interligado à rotina puramente diplomática/consular, a fim de estreitar as relações com o país acreditado. Os atos de gestão traduzem aqueles nos quais o Estado age como particular, desenvolvendo atividades estranhas ou desligadas ao fiel desempenho das respectivas funções diplomáticas.

            Dessa maneira, a mudança da visão internacional, no sentido de adotar a teoria restritiva em sede de imunidade jurisdicional dos Estados, foi paulatina. De início, o posicionamento jurisprudencial dos belgas e italianos constituía corrente isolada, porém, dada a influência do contexto histórico internacional, as demais nações soberanas perceberam que a perspectiva absoluta da imunidade de jurisdição não era capaz de atender, com suficiência, as relações jurídicas estabelecidas entre os países.

            Portanto, demandou tempo até que se aceitasse a compreensão de que a imunidade jurisdicional dos Estados é relativa e não está relacionada a todo e qualquer ato praticado por representantes diplomáticos e consulares dos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, somente a partir de 1952 foi declarada formalmente a recepção da teoria restritiva por meio da famigerada Tate Letter, uma carta do Secretário de Estado norte-americano a qual traçou a nova política do país no tema, adotando a relativização da imunidade soberana em relação aos pedidos dos governos estrangeiros no tocante à concessão de imunidade de jurisdição.

3 NO ÂMBITO DO DIREITO INTERNO

            No Brasil, o processo de relativização da imunidade de jurisdição se deu de modo lento e tardio. Enquanto que nos fins do século XIX, o caráter absoluto da imunidade de jurisdição começa a ser questionado pela Itália e pela Bélgica, apenas em 1989, o Brasil rompe com este entendimento. Já, no século XX, após a segunda guerra mundial, a regra da imunidade absoluta é repudiada pela maioria dos países soberanos, uma vez que as próprias conjunturas econômicas, sociais e políticas fomentam a adoção de tal posicionamento. Conforme expõe o doutrinador Francisco Rezek (2014, p. 213):

A ideia da imunidade absoluta do Estado estrangeiro à jurisdição local começou a desgastar-se já pela segunda metade do século XX nos grandes centros internacionais de negócios, onde era natural que as autoridades reagissem à presença cada vez mais intensa de agentes de soberanias estrangeiras atuando não em funções diplomáticas ou consulares, mas no mercado, nos investimentos, não raro na especulação. Não havia por que estranhar que ingleses, suíços e norte-americanos, entre outros, hesitassem em reconhecer imunidade ao Estado estrangeiro envolvido, nos seus territórios, em atividades de todo estranhas à diplomacia estrita ou ao serviço consular e, adotassem assim um entendimento restritivo do privilégio, à base da distinção entre atos estatais jure imperi e jure gestionis.

                                         

Mesmo ante a ausência de uma legislação interna que assegurasse a imunidade absoluta dos Estados, a jurisprudência brasileira apenas modificou seu entendimento com a Apelação Cível 9696-SP (Genny de Oliveira v. Embaixada da República Democrática Alemã). Desse modo, não há nenhuma lei, tratado ou convenção que tenha positivado a referida matéria. Nesse sentido, as decisões prolatadas pelos Tribunais pátrios eram baseadas em uma norma de direito consuetudinário, tendo em vista que o costume se apresenta como uma fonte relevante do direito internacional público.

Todavia, a jurisprudência brasileira, ao consagrar a imunidade absoluta de jurisdição, citava como esteio, de forma equivocada, a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961) e a Convenção de Viena sobre as Relações Consulares (1963). Nesse diapasão, o Supremo Tribunal Federal (STF) dispôs, em 1988, no julgamento do caso Raimunda Fernandes de Almeida v. Embaixada da Espanha (Apelação Cível nº 9705-6-DF), que:

EMENTA: Apelação Cível contra decisão prolatada em liquidação de sentença. Imunidade de Jurisdição do Estado estrangeiro. Esta corte tem entendimento que o próprio Estado estrangeiro goza de imunidade de jurisdição, não só em decorrência da Convenção de Viena sobre relações diplomáticas, de 1961, nos termos que dizem respeito à imunidade de jurisdição atribuída a seus agentes diplomáticos. Para afastar-se a imunidade de jurisdição relativa à ação ou à execução (entendida esta em sentido amplo), é necessária renúncia expressa por parte do Estado estrangeiro. Não ocorrência, no caso, dessa renúncia. Apelação cível que não se conhece em virtude da imunidade de jurisdição (STF - ACI 9705 / DF - Distrito Federal, Rel. Min. Moreira Alves, Data de Julgamento: 09/09/1987, Data de Publicação: 23/10/1987, Tribunal Pleno) (Grifo nosso).

               Também, no caso Ovídio Alves Martins v. a Embaixada da República Popular da Hungria, em 1987, explicitou que:

IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. RECLAMAÇÃO TRABALHISTA CONTRA ESTADO ESTRANGEIRO. DIREITO DAS GENTES. CONVENÇÃO DE VIENA. RECUSA EXPRESSA A JURISDIÇÃO LOCAL. TRANCAMENTO DO FEITO. APELAÇÃO CÍVEL PROVIDA (STF - ACi: 9695 DF , Rel. Min. Oscar Correa, Data de Julgamento: 21/05/1987, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 12-06-1987 PP-11857 EMENT VOL-01465-01 PP-00127) (Grifo nosso).

Sabe-se que as citadas convenções possuem um caráter nitidamente pessoal, isto é, dizem respeito a imunidades concedidas a uma categoria de pessoas em virtude da função pública exercida por estas. Nestas convenções, não há qualquer dispositivo que trate o Estado como um sujeito de direito internacional. De modo que, a imunidade de jurisdição do Estado advinha, na verdade, de uma antiga norma costumeira do Direito Internacional.

Nesse sentido, na Apelação Cível 9696-SP, o Ministro Francisco Rezek advertiu em seu voto que:

Numa primeira vertente temos as imunidades pessoais resultantes das duas Convenções de Viena, de 1961 e 1963, ambas promulgadas pelo Brasil, relacionada a primeira com o serviço diplomático, e a segunda com o serviço consular. Quando se cuide, pois, de processo penal ou cível onde o pretendido réu seja membro do corpo diplomático estrangeiro aqui acreditado – ou ainda em determinadas hipóteses, do serviço consular estrangeiro –, opera em sua plenitude o direito internacional escrito: tratados que, em certo momento, se negociaram lá fora, e que entraram em vigor para o Brasil, sendo aqui promulgados. Ficou claro, não obstante que nenhum dos dois textos de Viena diz da imunidade daquele que, na prática corrente, é o réu preferencial, ou seja, o próprio Estado estrangeiro. (...) Essa imunidade não está prevista em nenhuma forma escrita de direito internacional público. Ela resulta, entretanto, e uma antiga e sólida regra costumeira do Direito das Gentes (STF - ACi 9696 / SP - São Paulo, Rel. Min. Sydney Sanches, Data  de Julgamento: 31/05/1989, Data da Publicação: 12/10/1990, Tribunal Pleno).

Assim, somente com o caso Genny de Oliveira v. Embaixada da República Democrática Alemã, a imunidade de jurisdição, antes tida por absoluta, passa a ser relativizada, notadamente no tocante aos litígios trabalhistas.  Como bem se sabe, trata-se de um leading case que, portanto, rompe com todo o entendimento que, anteriormente, era esboçado pelo Supremo Tribunal Federal.

 Com relação ao caso, a autora ajuizou uma ação em face da Alemanha, em 1976, postulando o reconhecimento de uma série de direitos trabalhistas em favor do seu esposo já falecido. No primeiro momento, o caso foi remetido à Justiça Federal, uma vez que reconhecida a incompetência da Justiça do Trabalho, sendo que o Juiz Federal considerou que a Alemanha tinha imunidade de jurisdição, com base na Convenção de Viena sobre Relações Consulares. Contudo, posteriormente, o Supremo Tribunal Federal rechaçou tal entendimento, dispondo da seguinte forma:

O Tribunal, por unanimidade, deu provimento à Apelação para cassar a sentença e determinar ao Dr. Juiz Federal que prossiga no julgamento de ação trabalhista, afastada a imunidade de jurisdição. Votou o Presidente. Impedido o Sr. Ministro Sepúlveda Pertence. Plenário, 31.5.89 (STF - ACi 9696 / SP - São Paulo, Rel. Min. Sydney Sanches, Data  de Julgamento: 31/05/1989, Data da Publicação: 12/10/1990, Tribunal Pleno).

Vale ressaltar que os votos dos Ministros, no que diz respeito a este caso, ainda não trazem a diferenciação entre atos de gestão e atos de império. No entanto, não se pode olvidar a importância deste julgamento, na medida em que, a partir dele, houve uma mudança de paradigma. Afinal, os casos posteriores seguiram a orientação firmada por Genny de Oliveira v. Embaixada da República Democrática Alemã.

CONCLUSÃO

            O presente artigo tratou da evolução da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro. Conforme o exposto nas linhas acima, a compreensão da temática sofreu variações ao longo do tempo, pois antes ostentava caráter absoluto e, atualmente, é entendida de forma relativa.

Nesse contexto, revelou-se importante analisar as origens da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros, ocasião em que referidos entes soberanos, desde a época da Antiguidade Clássica, se valiam de teorias e estudos que justificassem seu caráter absoluto. Assim, à luz de teorias absolutas, prevaleceu, por bastante tempo, o entendimento segundo o qual os representantes do Estado alienígena gozavam de imunidade total relativamente ao ordenamento jurídico do país onde serviam aos interesses de sua pátria.

Porém, com a decadência dos regimes absolutistas, lentamente, as nações soberanas sofreram influência de teorias restritivas as quais resultaram, após longo processo e significativo decurso de tempo, na compreensão de que a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro era relativa. Nessa senda, o iluminismo contribuiu para tanto de modo decisivo, pois propagou ideias defendendo o liberalismo econômico, a defesa dos direitos individuais e a diminuição da ingerência estatal na sociedade.

Desse modo, vislumbrou-se a evolução no que concerne aos assuntos de Estado, porquanto, à época em que a teoria absoluta reinava inconteste, os países soberanos ocupavam-se de temáticas com viés estritamente político. Por outro lado, as bases dos regimes autoritários, as quais sustentavam a imunidade de jurisdição absoluta, impediram que a evolução para a compreensão da imunidade jurisdicional do Estado estrangeiro de forma relativa ocorresse de modo uniforme em todo o mundo. Por tal razão, como destacado nas linhas acima, o processo de transição foi lento e gradual.

Quando da análise da temática sob o prisma do direito internacional percebeu-se a importância da atuação do direito diplomático para a transformação que se operou no assunto em exame. Ademais, não se pode olvidar dos acontecimentos históricos do século XX, destacadamente as Convenções sobre Relações Diplomáticas e Consulares, realizadas em Viena na Áustria e o período do pós Segunda Guerra Mundial. A partir de então, foi necessário diferenciar os atos de gestão e os atos de império, sendo que apenas estes últimos mereciam abrigo na imunidade jurisdicional, porque são relacionados aos assuntos de interesse dos países soberanos.

Da mesma forma, abordou-se como a evolução da temática ocorreu no Brasil. Abordou-se, de início, o equívoco dos estudiosos brasileiros que justificavam, a princípio, que a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro deveria ser absoluta com fulcro no que se discutiu nas Convenções de Viena sobre Relações Diplomáticas e Consulares. Por algum tempo a jurisprudência pátria acompanhou este entendimento e consagrou a prevalência das teorias absolutas.

Todavia, após o caso Genny de Oliveira v. Embaixada da República Democrática Alemã, a imunidade de jurisdição passa a ser relativizada por nosso ordenamento. A partir deste precedente, o Supremo Tribunal Federal passou a sufragar a tese contrária, qual seja, que a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro era relativa.

Portanto, em face de todo o exposto, verifica-se que a compreensão atual dos países soberanos é de que a imunidade jurisdicional do Estado estrangeiro é relativa. Não há mais espaço para teses que sustentam a intocabilidade dos representantes dos Estados em países acreditados, pois a evolução dos assuntos de Estado não mais permite que um Estado esteja plenamente imune ao ordenamento de outro país.

REFERÊNCIAS

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CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. v. II, São Paulo: Saraiva, 1962.

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

FURTADO, Maria Priscila Mendonça; VASCONCELLOS; Júlia Fiorin. A Relativização da Imunidade de Jurisdição do Estado Estrangeiro face Às Violações de Direitos Humanos na Perspectiva da Jurisprudência Brasileira. Disponível em: http://150.162.138.7/documents/download/2404;jsessionid=DDD1627A46D0B510DE

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GUIMARÃES, Juliana de Souza. A imunidade de Jurisdição do Estado, seu Cenário Contemporâneo e na jurisprudência Brasileira Trabalhista. Disponível em: http://www.idb-fdul.com/uploaded/files/2013_14_16985_17006.pdf. Acesso em: 28 de nov. 2014.

HARTMANN, Rodolfo Kronemberg.  A Imunidade de Jurisdição e Execução do Estado Estrangeiro no Brasil. Disponível em: http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemer_

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PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado. 6 ed. rev. e atual. Salvador: JusPodivm, 2014.

REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 15 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.

SOUSA, Mônica Teresa Costa. Imunidade de Jurisdição Estrangeiro: Aspectos Doutrinários e a Jurisprudência Brasileira. Disponível em: http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/1187-1201-1-PB.pdf.  Acesso em: 4 out. 2014.

TORRES, Eneas Bazzo. A Imunidade de Jurisdição do Estado Estrangeiro e o Problema da Execução. Rev. TST, Brasília, vol. 78, no 1, jan/mar 2012.

VARELLA, Marcelo. Direito Internacional Público. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

VILELA, Janaína Alcântara. Imunidade de Jurisdição e Imunidade de Execução: Uma Visão Trabalhista sobre o Tema. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=b8b9c74ac526fffb. Acesso em 5 out. 2014.

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Sobre os autores
Fernando Henrique Castro Costa

Estudante de Direito do décimo semestre na Universidade Estadual do Maranhão.

Danielle Priscila da Silva Cantanhede

Estudante de Direito da Universidade Estadual do Maranhão

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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