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A natureza jurídica da "desistência voluntária" e do "arrependimento eficaz".

Uma questão de interpretação

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28/11/2003 às 00:00
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3. Punibilidade

3.1. Noções básicas

Punibilidade é a coerção penal materializada na imposição de pena a quem cometeu determinado delito. É uma das conseqüências penais da existência do crime.

A punibilidade tem dois sentidos: pode significar merecimento de pena, por ser a conduta (típica, ilícita e censurável) digna de punição; e pode significar possibilidade de se infligir a pena, pois, em determinadas hipóteses, apesar da consumação do delito, o agente poderá ficar legalmente impune.

3.2. Princípios constitucionais legitimadores da punibilidade

Evidenciada a ocorrência de um fato-crime, indispensável se faz, a princípio, promover a identificação do provável agente responsável, a fim de que seja instaurado o processo penal e fique viabilizada a sua condenação, nos limites de sua culpabilidade individual. Desse modo, a observância do princípio da intranscendência da pena (art.5.º,XLV) e do princípio da culpabilidade (art.5.º,LVII) assegura a aplicação de uma sanção justa e útil apenas ao efetivo responsável pelo resultado lesivo produzido, após ser proferida decisão jurisdicional condenatória irrecorrível, que pôs fim ao devido processo legal (art.5.º,LIV), com o respeito às garantias do réu à ampla defesa e ao contraditório (art.5.º,LV). Inadmissível, em respeito à dignidade humana (art.1.º,III), a extensão da punibilidade, atribuída legitimamente ao infrator, a quem sequer fora partícipe na execução do delito e tampouco teve oportunidade de defender-se em Juízo.

3.3. Circunstâncias do crime

Circunstância do crime (genéricas, específicas ou judiciais) é todo fato que o circunda, considerado apto a influenciar na quantidade da pena, sem, contudo, afetar a configuração dos seus elementos constitutivos (tipicidade, ilicitude e culpabilidade). Tais fatos podem ser de natureza objetiva (condições de tempo, lugar onde foi praticado, modo como foi executado etc.) ou subjetiva (motivos determinantes da conduta), podendo ser relevante para o aumento ou para a redução da pena. As genéricas e as específicas estão tipificadas no Código Penal (na Parte Geral e Especial, respectivamente), e as judiciais (art.59 do CP) serão aferidas pelo Juízo na ocasião em que for fixar a pena-base a ser imputada ao réu.

Postas as premissas básicas, passo à análise dos tipos da tentativa e da desistência voluntária, por meio de uma interpretação sistemática, em respeito à unidade e harmonia do sistema jurídico em vigor.


4. Interpretação sistemática do tipo penal de tentativa (art.14, II do CP)

Expressa, in litteris, o art.14, caput, inciso II do Código Penal: "Art.14. Diz-se o crime:(...) II- tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente".

Prima facie, mister se faz conhecer o tipo do delito, previsto no código penal (ou em alguma lei penal extravagante), que o agente planejou executar, pois não haveria sentido falar-se em tentativa de cometimento de um crime se, quiçá, o intérprete conseguiu identificar sobre qual delito se tratou. Entretanto, apenas será possível realizar essa constatação se a respectiva execução já houver sido iniciada, com uma vontade predeterminada a um fim, pois inexistem meios legítimos que possibilitem o Estado-juiz punir alguém somente em função de seus pensamentos malévolos. Assim, verificar-se-á como o agente se conduziu ao externar a sua vontade própria, pela prática inicial dos atos previamente cogitados e planejados, e se, de fato, proporcionou algum perigo concreto de dano ou dano significativos a determinado bem jurídico relevante.

Os atos de execução deverão ser idôneos à identificação dos elementos subjetivos do delito colimado e, preponderantemente, capazes de produzir lesão efetiva ao bem jurídico relevante tutelado pelo sistema jurídico-penal, concretizando, como conseqüência, os elementos objetivos do tipo. O critério objetivo-individual, na hipótese, funcionará como um princípio geral orientador para a percepção do momento exato em que a execução foi encetada.

Execução existente, existente também a tipicidade da tentativa (formal, material e conglobante). O juízo de tipicidade deve ser realizado no instante em que foi dado início à execução. Neste momento, inexistem dúvidas para o agente executor de que seus atos são dirigidos ao fim de produzir o resultado típico planejado. Com o desenrolar desses atos, tende a agravar-se progressivamente a respectiva lesão (ou o perigo concreto) até então já produzida, chegando ao ápice quando o delito se consumar.

Em virtude de dado comportamento do agente (formal e axiologicamente considerado) ter-se encaixado perfeitamente dentre aqueles tipos penais de injusto legitimamente construídos e que, em princípio, merecem ser reprimidos, passa-se a proceder um juízo de culpabilidade, com base nos fatos até então concretizados, ocorridos no curso do processo de execução em análise e ainda pendente. Levando-se em conta ser o autor imputável, potencialmente capaz de conhecer a ilicitude dos atos já praticados e com possibilidades de ter agido na esfera da licitude, evidencia-se a reprovabilidade de seu comportamento em face do contexto social. Até agora, está flagrante que o agente está tentando consumar um fato injusto e culpável, isto é, fato considerado concretamente ilícito perante a ordem jurídica e censurável pelo sentimento predominante na sociedade.

Todavia, no transcurso da execução, podem ocorrer circunstâncias alheias a vontade do agente, que venham a impedir que o evento previsto e desejado aconteça, o que proporcionará a sua submissão à sanção cominada no respectivo tipo de delito tentado. Com efeito, indispensável descobrir-se o sentido da palavra vontade, expressa no referido dispositivo legal.

4.1. Conceito e sentido da expressão circunstâncias alheias à vontade

Entende-se, como sendo vontade do agente, o ânimo, o sentimento, a intenção interna que o motiva a exteriorizar materialmente (ou declarar) os atos a ela correspondentes, em conformidade com o seu direito constitucional à liberdade (art.5.º,II), que assegura, em regra, a predominância do princípio da autonomia. A vontade real do indivíduo, quando externada, representa a motivação da conduta por ele praticada, dando-lhe o verdadeiro sentido. Todavia, a exteriorização da conduta só terá validade se, efetivamente, traduzir a intenção do agente, destinada à produção de alguma conseqüência jurídica. Assim, a vontade interna do agente, além de constituir o suporte da exteriorização dos atos planejados, representa a força criadora dos efeitos almejados e porventura produzidos. Inexistente a vontade interna, inexistirá conduta a ela relacionada. Viciado o seu conteúdo, deturpada será a sua exteriorização.

Sabe-se que o agente criminoso, antes de iniciar a execução (exteriorização) dos atos dirigidos à produção do resultado típico, planeja mentalmente todo o iter criminis. O querer a realização desse plano identifica o conteúdo da vontade própria do criminoso, no momento em que dá início aos atos lesivos de execução do crime.

Percebe-se, assim, que a expressão circunstâncias alheias à vontade, prevista no tipo de tentativa, é referente à vontade própria do agente, existente no início e propulsora dos atos de execução então externados. Se, por algum acontecimento superveniente ao início da execução, esta vontade, este animus laedendi, não se concretizar no resultado visado, estará caracterizada a tentativa do crime. Independe se tais fatos alheios vão atuar no aspecto psicológico do agente, fazendo-o, por si só e contra a sua vontade inicial, interromper o processo executivo, ou se vão impedir o resultado pelo desvio natural do nexo causal. Importa, sim, é que fatores, inexistentes e imprevisíveis no instante inicial da execução, surgiram a posteriori e atuaram contrariamente à vontade lesiva e inicial do agente. Sob este enfoque, tais fatores, como elementos constitutivos da vontade de desistir (ou do se arrepender), não deixam de caracterizar circunstâncias alheias àquela vontade delituosa, que é a verdadeira impulsionadora dos atos de execução.

Estando inequivocamente demonstrada a vontade inicial (e proibida) do agente no momento em que iniciou a execução e provocou concretamente os conseqüentes efeitos danosos, responderá o agente pela prática de crime tentado, caso não tenha alcançado o resultado típico desejado, por circunstâncias alheias àquela vontade inicial que o impulsionou a agir de forma injusta e culpável, salvo a existência de norma eliminadora da pena, como a da desistência voluntária.


5. Interpretação sistemática do tipo penal de desistência voluntária (art.15 do CP)

Descreve o art.15 do Código Penal, in verbis: "Art.15. O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados".

Até então, constatou-se que, iniciada a execução do plano delitivo, motivado por aquela vontade inicial, portadora do inequívoco animus laedendi, o agente demonstra indubitavelmente a presença dos elementos subjetivos do delito (dolo ou fins específicos) em sua mente, por meio do liame que os une ao modo como os atos são executados e aos danos concomitantemente ocasionados. Estes representam a procura incessante pelo resultado típico pretendido, constituído pelos elementos objetivos do crime de resultado naturalístico.

Não obstante, pode ocorrer de, no curso do procedimento de execução, o agente, voluntariamente, desistir de prosseguir com os atos necessários ainda pendentes ou, se já os houver terminado, impedir que tais atos provoquem aquele resultado típico antes querido.

Surge, então, o âmago da questão, em torno do qual se desenvolve toda a controvérsia sobre a natureza jurídica de tais institutos. O tipo de tentativa descreve ser delito tentado aquele cuja execução foi iniciada, mas não se consumou por circunstâncias externas à vontade do agente. O tipo de desistência voluntária (ou de arrependimento eficaz) determina que, caso o agente evite, com eficácia, a produção do evento antes desejado e ainda em fase de execução, não responderá pelo correspondente delito (rectius: pela tentativa deste), mas, tão-somente, pelos fatos praticados até o momento da desistência ou do arrependimento (se configurarem algum delito subsidiário).

A priori, devemos entender o sentido das expressões formadoras do tipo sob exame.

5.1. Conceito e sentido da palavra voluntariamente

A vontade, da qual resultará o comportamento voluntário, deve ser a realmente existente no interior do agente, podendo ou não ser livre a sua exteriorização. Aí está o cerne do problema: saber a respeito de que e de quem a vontade deve ser considerada autônoma ou livre, o que possibilitará a compreensão do sentido de voluntariamente.

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Em regra, há voluntariedade quando o agente puder mas não quisercontinuar os atos de execução. Diz-se em regra porque nem sempre o não-querer manifestado pelo agente está vinculado a sua manifestação livre de vontade.

A partir de tais considerações, pode-se entender que a desistência será voluntária nas hipóteses em que o agente constituiu a sua nova vontade, livremente, no transcurso do procedimento de execução, sem estar coagido por alguma ação especial do sistema penal, circunstâncias estas que suprimir-lhe-ía a opção de poder agir de outro modo. Ademais, mesmo se presente a possibilidade real de agir diversamente, a voluntariedade estará ausente se todos os demais caminhos disponíveis a serem seguidos representarem um risco ou uma desvantagem desproporcional, que qualquer ser humano de padrões normais não suportaria. A nova vontade, impulsionadora da conduta de desistência, não seria livre em tais hipóteses, mas, sim, imposta coativamente pelas circunstâncias a seu redor.

Independe, para se excluir a voluntariedade da conduta, se tal ação especial do sistema existiu apenas na imaginação do agente, em função de sua falsa representação da realidade. Basta, contudo, que determinado fato concreto se coloque como empecilho à liberdade de agir conforme o plano delituoso inicial.

Desnecessário, também, para o conceito de voluntariedade, saber se o agente desistiu motivado (ou não) por valores éticos ou morais de conduta. Caso contrário, o agente que desistiu poderia ser prejudicado em razão de um entendimento puramente subjetivo por parte do aplicador da lei, por ser objetivamente impossível descobrir-se o ânimo real e condicionante da vontade de desistir do agente. O fato relevante é que a desistência foi efetivamente voluntária e evitou a consumação do resultado típico previamente pretendido.

Se o agente desiste voluntariamente e, algum tempo depois, retorna ao local e retoma a execução do delito, aproveitando-se do que antes fizera, inexistiu desistência voluntária, pois a suposta desistência do propósito criminoso apenas postergou a realização deste. Todavia, se o agente volta ao local e recomeça tudo novamente, não se aproveitando de nenhum dos atos antes praticados, existiu desistência voluntária em relação ao fato precedente.

É fundamental, para caracterizar a voluntariedade, que o agente seja imputável. Todavia, é prescindível que a exteriorização da desistência voluntária (ou do arrependimento ativo) seja espontânea, pois, o que importa é o agente ainda possuir o domínio das decisões sobre os atos de execução.

Independentemente de se tratar de desistência voluntária ou de arrependimento ativo, mister se faz que a conduta contrária e neutralizante da causalidade, movimentada pela exteriorização da vontade inicial e criminosa do agente, seja eficaz, evitando (ou impedindo), que a lesão típica de consume.

5.2. Significado da expressão só responde pelos atos já praticados (tentativa qualificada)

Considerada eficaz a neutralização dos efeitos produzidos em decorrência dos atos executivos realizados até o momento em que desistiu ou arrependeu-se, o agente ficará impune, por força do conteúdo normativo do dispositivo legal sob comento. Todavia, se os atos de execução até então praticados preencherem todos os elementos constitutivos de algum tipo de delito subsidiário e autônomo, o agente que os realizou estará sujeito à correspondente coerção penal.

É hipótese de tentativa qualificada, existente quando os atos de execução dirigidos à consumação de determinado crime, abarcam, inevitavelmente, algum tipo penal subsidiário, por ser o caminho necessário e servir de instrumento (crime-meio) à realização do objetivo visado.

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Sobre o autor
Renato Rodrigues Gomes

Procurador da Fazenda Nacional em Nova Friburgo-RJ e Mestre em Direito Público pela UERJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Renato Rodrigues. A natureza jurídica da "desistência voluntária" e do "arrependimento eficaz".: Uma questão de interpretação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 145, 28 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4510. Acesso em: 26 abr. 2024.

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