Artigo Destaque dos editores

Modificações na Parte Geral do novo CCB.

Das pessoas e dos bens

Exibindo página 3 de 3
Leia nesta página:

DOMICÍLIO

Pontes de Miranda [19] assim definia domicílio:

"é o espaço em que a pessoa exerce os atos de sua vida de relação, como centro da sua atividade no mundo jurídico, para onde se lhe dirige o que lhe interessa, ou a outrem interessa, e de onde a pessoa dirige a outrem o que tem interêsse de dirigir.....

O domicílio é fato jurídico, não é simples acontecimento do mundo fáctico. Há suporte fáctico, em que um dos elementos é o haver centro (ou haver centros) das relações sociais, não só jurídicas, da pessoa, - suporte fáctico, que o direito recebe como fato jurídico".

Portanto, residência constitui o elemento mais comum para o domicílio, sendo os artigos que dela tratam exemplificativos das situações que normalmente ocorrem, sem, contudo, ser ela o elemento básico para a caracterização de domicílio, conceito mais amplo, como com muita agudeza percebeu o gênio de Pontes.

Tais observações, especialmente a caracterização do suporte fáctico do domicílio como o centro das relações sociais da pessoa, traduziam o sentido da expressão lingüística "centros das ocupações habituais", constante do Código Beviláqua. Outrosssim, o NCC, nesse ponto, faz mudança digna de nota ao trocar essa expressão por lugar de exercício da profissão (art. 72 do NCC), quanto as relações jurídicas advindas da atividade profissional.

Tal alteração baseou-se na crítica que fazia parte da doutrina relativamente ao enunciado "centro das ocupações habituais". O culto Ministro Moreira Alves [20], elaborador do Projeto do NCC, em sua Parte Geral, assim dispôs sobre o tema:

"Com referência ao domicílio, houve uma falha do Código Civil. Todos aqueles que estudam o domicílio civil sabem que este tem dois conceitos: o conceito geral, de que é a residência com a intenção de permanência e aquele outro apregoando que também é domicílio o centro de atividades habituais – o que mereceu a crítica sarcástica de um dos grandes civilistas deste País, Eduardo Espínola, o qual afirmou que também seria domicílio do bêbado aquele botequim em que todas as tardes se embebedasse. Criou-se, então, a figura do domicílio profissional, quase que como um pendant com relação ao domicílio das agências ou filiais das pessoas jurídicas, ou seja, um domicílio apenas para as relações decorrentes da profissão."

Primeiramente, perceba-se a contraposição de duas teorias, ainda sob a ótica do CC de 1916: uma defendendo a existência de dois tipos de domicílio, a residência com ânimo definitivo, e o centro de atividades habituais; outra, Ponteana, defendendo ser o domicílio o centro das relações sociais da pessoa, das quais a residência seria o exemplo mais comum. À esse respeito, veja-se a lição de Pontes:

"Se A reside em Petrópolis e tem o seu escritório no Rio de Janeiro, para onde se dirigem todas as declarações de vontade, ou comunicações de vontade, de conhecimento, ou de sentimento, que tenham de ser recebidas por ele, e de onde as dirige, pré-excluindo-se qualquer constituição de domicílio no lugar da residência, domicílio de A é o lugar em que tem o escritório, e não o lugar em que tem residência".

Agora, com a substituição da expressão centro de atividades habituais por lugar de exercício da profissão, duas são as soluções interpretativas: uma defender que se tornou mais nítida a diferenciação entre o domicílio oriundo da residência com ânimo definitivo, e um outro domicílio, dito profissional, abarcando apenas as relações jurídicas relativas à profissão; outra defender que se deve interpretar a nova expressão como se exercício de profissão tivesse o sentido de centro das atividades da pessoa (profissão deveria ser interpretada em sentido amplo, abarcando qualquer atividade que a pessoa pratique, e não apenas o trabalho remunerado).

Literalmente, a primeira parece ser mais correta, ainda mais quando conta com a adesão expressa do elaborador do Projeto.

Contudo, segundo ela, qual seria o domicílio do aposentado (que não exerce mais a sua profissão), que tendo uma casa em Barra de São Miguel, onde ele dorme todas as noites e toma um banho de mar todas manhãs, passasse os seus dias em Maceió, na casa de uma filha sua, sendo este o local de onde ele expede a maioria das suas manifestações de vontade e toma conhecimento das que lhe são dirigidas ? Caso ele fosse demandado em uma ação segundo a regra geral do domicílio do réu, deveria ser demandado em Maceió ou Barra de São Miguel ?

Ora, ele não reside em Maceió, afinal de contas o conceito de residência exige habitat continuado, e não mera estadia durante o dia; por outro lado, apesar de possuir residência na Barra de São Miguel (onde ele não estabeleceu laços mais profundos, não tendo intenção de lá exercer a plenitude de suas relações jurídicas), todas as suas manifestações de vontade e conhecimento são praticadas em Maceió (ex: é lá onde ele recebe a sua aposentadoria, joga bingo todas as tardes, participa do Clube da melhor idade, faz suas compras, etc.).

Caso prevalecesse a tese literal, ou ele seria uma pessoa sem domicílio (já que na Barra ele tem residência sem intenção de permanecer, e em Maceió ele não tem residência), ou, o que é mais correto diante do princípio de que todos têm um domicílio, dever-se-ia aplicar a regra de considerar o lugar da sua residência o seu domicílio, sendo vedado demandar-se em Maceió.

Tal solução não se coaduna com a finalidade do domicílio (fixar um ponto territorial para fazer-lhe lugar das relações jurídicas do indivíduo), assim como contraria o princípio de que a pessoa deve ter por domicílio o lugar que quiser, pois a maioria das relações jurídicas do aposentado são deliberadamente praticadas em Maceió.

Com esse exemplo quer-se aclarar a correção da tese de que o conceito de lugar de exercício da profissão deve ter acepção ampla, e não restrita as relações profissionais, de modo a não alterar o anterior sentido de domicílio existente no CC de 1916, mais consentâneo à função desse instituto e cientificamente mais correto.


BENS

A primeira mudança digna de menção refere-se ao art. 44, II do CC de 1916, que inseria entre os imóveis por determinação legal as apólices da dívida pública gravadas com a cláusula de inalienabilidade, dispositivo este que não foi repetido no NCC, pelo que passou este tipo de bem a ser considerado móvel. Acertada a mudança, já que não havia sentido imobilizar apenas este tipo de título de crédito, o que aliás dificultava a sua venda, diminuindo o seu valor, o que contrariava o seu próprio objetivo.

Por sua vez, o art. 81, I, traz um novo tipo de imóvel, qual seja a edificação que, mesmo separada do solo, pode ser removida de um lugar para outro sem perder a sua unidade. Inclui-se aqui aquelas casas pré-fabricadas, que mesmo podendo se deslocar (o que constitui móvel por natureza) de um lugar para outro não deixam de ser imóveis.

De outra banda, no art. 83, I, acrescentou-se entre os bens móveis por determinação legal as energias que tiverem valor econômico (energia elétrica, eólica, etc.), ao mesmo passo em que se retirou a menção expressa aos direitos de autor como bem móvel dessa categoria, constante do art. 48, III, do texto revogado. Essa última supressão se coaduna com a disciplina dos direitos autorais posta em prática pela legislação extravagante, no caso a Lei nº 9610/98, que continua regendo a matéria, dividindo os direitos autorais em duas categorias, a primeira os direitos morais de autor, com a natureza de direitos da personalidade (ex: manter inédita a obra e impedir mudança do texto por terceiro), e a outra a dos direitos patrimoniais do autor, esta sim bem móvel, inclusive por expressa determinação do art. 3º da citada lei. Em suma, a mencionada supressão não traz mudança significativa, apenas deixa ainda mais clara a disciplina do direito autoral pela legislação especial.

Já no art. 87, que trata dos bens divisíveis, o NCC, seguindo diretriz já pacífica na doutrina, inseriu menção expressa à diminuição do valor ou do uso a que se destina o bem como critério para fixar a indivisibilidade. Quer dizer, enquanto o CC de 1916 só dispunha sobre diminuição na substância do bem, como critério para considerar divisível ou indivisível este, o NCC se refere a diminuição na substância, no valor econômico ou prejuízo no uso a que ele se destina, incorporando assim a lição de há muito encampada na doutrina pátria.

À respeitos dos bens, a alteração mais expressiva refere-se ao art. 93, que traz a novel classe dos bens acessórios chamados de "pertença".

No antigo Código tinha-se os imóveis por acessão intelectual, ou como estatuído no art. 43, III, do Código Civil, "tudo quanto no imóvel o proprietário mantiver intencionalmente empregado em sua exploração industrial, aformoseamento ou comodidade". Imóveis por acessão intelectual eram os bens móveis, de propriedade do mesmo indivíduo proprietário do bem imóvel onde são colocados, tendo por finalidade servir ao próprio bem imóvel e não ao seu proprietário. Tais bens podiam ser caracterizados por tratores colocados em uma fazenda para o cultivo da terra, aparelhos de ar condicionado, animais, persianas. A imobilização dos bens referidos no art. 43, III, do Código Civil podia ser desfeita a qualquer momento, nos termos do determinado no art. 45 do mesmo Diploma legal. Agora, o novo Código fala em pertença (arts. 93 e 94), incluídos entre os bens acessórios (distintos do bem principal).

Pontes de Miranda [21] assim definia referidos bens:

"o que não é parte integrante da coisa, mas se destina a servir ao fim, econômico ou técnico, de outra coisa, inserindo-se em relação específica, que corresponda a esse serviço (relação de pertinencialidade), - salvo se a transitoriedade do serviço, ou o uso do tráfico pré-exclui, ou exclui, a relação específica, - chama-se pertença.... A pertença não é parte integrante da coisa, nem essencial, nem não essencial".

Portanto, deixaram de existir os imóveis por acessão intelctual, sendo agora tratados como pertenças. A grande diferença é que, não sendo imóvel (na modalidade acessão intelectual, como no antigo código) a pertença (coisa pertencente na terminologia Ponteana) não segue o destino do bem principal, salvo disposição em contrário da lei, das partes ou das circunstâncias do caso. Dessa forma, se na compra e venda de uma fazenda, estando silentes as partes, nada se dispuser sobre o destino dos bens móveis que servem aos fins do imóvel, deve-se entender que estes não foram objeto da negociação, ao contrário do que dispunha o direito anterior, onde se fazia necessária a expressa determinação dos contratantes para se ter essa disposição, se não eles deviam ser entendidos como vendidos.

Por derradeiro, o art. 95 inova ao trazer a possibilidade de negociação com frutos e produtos ainda ligados ao bem principal, ou seja, bens que a rigor são imóveis, podem ser negociados como móveis, o que positiva a teoria dos móveis por antecipação legal.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Cabe ainda uma palavra para dizer que o bem de família voluntário passou agora a ser disciplinado no Direito de Família, saindo da Parte Geral.


Conclusão

Como já anteriormente afirmado, fugiu ao objetivo desse estudo uma análise pormenorizada, fulcrada no método dialético, contrapondo todas as teorias explicativas de cada um dos institutos postos em tela, o que não impediu a utilização de método científico hábil a extrair o sentido a meu ver (sempre buscando esclarecer o sentido de cada norma revelado pelo legislador) mais escorreito para cada um dos dispositivos analisados, ainda que de forma sucinta, muito mais preocupada com a colocação do sentido extraído do que com os caminhos percorridos para a esse sentido se chegar.

Ciente disso, pretendeu-se aqui oferecer uma noção geral dos novos enunciados lingüísticos postos em vigor pelo novo Código Civil, seguidos de rápidas linhas acerca da sua exegese, à luz dos postulados metodológicos indicados na introdução, pelo menos quanto aos seus mais importantes dispositivos relativos aos Livros das "Pessoas" e "Bens", inseridos na Parte Geral; desde já colocando-nos à disposição para eventuais críticas.


Notas

01. LÔBO, Paulo Luiz Netto, Constitucionalização do Direito Civil, in Revista de Informação Legislativa, nº 141, Brasília: Senado Federal, jan/março 1999, p. 103.

02. Que busca atingir a igualdade material, como nos adverte Bonavides: "Pelo princípio da igualdade material entende-se, segundo Pernthaler, que o Estado se obriga mediante intervenções de retificação na ordem social a remover as mais profundas e pertubadoras injustiças sociais.". in BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, pp 343 s.

03. REALE, Miguel. Capítulo I, in FERREIRA, Aparecido Hernani (coord) O Novo Código Civil – discutido por juristas brasileiros, Campinas: Bookseller, 2003, p. 30.

04. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, 4ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1974, Tomo I, p. 19.

05. Ob. cit., p. 77.

06. MELLO, Marcos Bernardes de, Teoria do Fato Jurídico (Plano da Existência), 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 145.

07. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, 3ª ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, Tomo V, p. 10 s.

08. COSTA, Adriano Soares da, Incidência e Aplicação da Norma Jurídica: uma crítica ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho, in www.mottaesoares.com.br, pp. 8 ss.

09. VENOSA, Silvio de Salvo, Direito Civil – Parte Geral, 3ª ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 190.

10. Ob. Cit., p. 54.

11. LÔBO, Paulo Luiz Netto, Danos Morais e Direitos da Personalidade, in Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro: Ed. Patmos, nº 06, pp. 87ss, abril/junho de 2001.

12. PAMPLONA FILHO, Rodolfo e GAGLIANO, Pablo Stolze, Novo Curso de Direito Civil – Parte Geral, São Paulo: Saraiva, 2002, volume 1, p. 168.

13. NADER, Paulo, Curso de Direito Civil – Parte Geral, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 215.

14. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 12ª ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 201.

15. Ob. cit., Tomo I, p. 286.

16. SILVA, Ovídio A. Batista da, Curso de Processo Civil, 5ª ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, Vol. 1, p. 244.

17. ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção, A desconsideração da personalidade jurídica e o direito do consumidor: Um estudo de direito civil constituciona,. In TEPEDINO, Gustavo (coord.), Problemas de Direito Civil Constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 246.

18. ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção, ob. Cit., p. 263.

19. Ob. cit., Tomo I, pp. 248-251.

20. MOREIRA ALVES, José Carlos, in Revista do Conselho da Justiça Federal, nº 9.

21. Ob. cit., Tomo II, p. 113s.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Angelo Braga Netto Rodrigues de Melo

Especialista e Mestre em Direito pela UFAL. Professor de Direito Civil, Administrativo e Tributário dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação de diversas instituições de Ensino Superior. Autor do livro "Substituição Tributária Progessiva no ICMS - Teoria e Prática". Procurador de Estado. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Angelo Braga Netto Rodrigues. Modificações na Parte Geral do novo CCB.: Das pessoas e dos bens. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 144, 27 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4518. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos