Da ficção para realidade: os capitães nascimento do Brasil

09/12/2015 às 06:49
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Busca-se o presente artigo analisar a conduta dos vários "Capitães Nascimento" na vida real, figura aclamada nos filmes Tropa de Elite 1 e 2, rememorando e pondo em prática a temática do crime de Tortura, amparada em diploma especial, vide Lei 9455/97

Sumário: Introdução. 1. Da problemática tortura na atualidade. 2. Breves noções da lei 9455/97   3. Da tortura com resultado morte 4. Maus tratos ou tortura(?) 5. tortura como crime próprio e desclassificação para os crime de lesão corporal e abuso de autoridade. Considerações finais e referências.

Introdução

            Entusiasmados pela posição imponente, audaz, autoritária e destemida do Nascimento, o capitão do Filme "Tropa de Elite", o público clama por policias combatentes, não corruptos e que fazem a diferença na sociedade,com o fito de assegurar a harmonia e a garantia da ordem pública.

            A nação brasileira o viu, em uma primeira análise, na figura de um herói, todos querendo ser o tal capitão, uma vez que com a chegada de seu batalhão do BOPE, os delinquentes sabiam que com eles não tinham vez, sendo obrigados a fugir e abandonar seus postos, drogas e similares. Quando eram capturados, o jargão "a casa caiu" era rememorado. Sacos plásticos eram utilizados objetivando a confissão e a delação de eventual pessoa procurada; insultos de todas espécies eram ditos;  tapas na face; murros nas extremidades das mãos e pés; só paravam quando satisfeitos com o que queriam saber.

            Não podemos esquecer que a nossa Carta Cidadã nos assevera, mediante o  art. 5, III, que não são admitidos no ordenamento jurídico pátrio emprego de tortura ou tratamento desumano ou degradante. Nesses termos, pois, não admite-se exceções a esse inciso.

            Vemos antagonismos na mesma relação jurídica, por polos diferentes no tocante a postura dos agentes da lei: de um lado, a sociedade enaltecendo os policiais, que, na figura do Nascimento, é o suprassumo da eficiência; de outro, a apelação a práticas cruéis, desumanas e inóspitas aos até então vítimas das atitudes (im)pensadas dos agentes para saciar seus desejos mais íntimos de prender, apreender e executar ordens em benefício do Estado lato senso. Afinal, Nascimento é um exemplo a ser seguido(?).

1. Da problemática tortura na atualidade 

            Em julho de 2014, a Human Rights Watch enviou comunicação às autoridades brasileiras (PRESI/CNMP nº 523/2014) manifestando suas preocupações em relação à prática recorrente de tortura e tratamento cruel, desumano e degradante por policiais, agentes penitenciários e agentes do sistema socioeducativo do Brasil. Restou constatado que espancamentos, ameaças de agressões físicas e de violência sexual, choques elétricos, sufocamentos com sacos plásticos e violência sexual ocorrem justamente nas primeiras 24 (vinte e quatro) horas da custódia policial, geralmente com o objetivo de extrair informações ou confissões dos presos ou castigá-los por supostos atos criminosos(LIMA, p.928).

            Se não ocorrem nas primeiras 24 horas, podem ocorrer nas demais, dentro do cárcere, fora; depois de presos, os apenados estão literalmente sob a tutela do Estado, guarnecidos, pois, pela polícia. O filme não é mera ficção: é a realidade nua de um sistema que, em muito se fala em tortura, mas poucas são as medidas realmente tomadas, haja vistas que as provas andam diametralmente opostas aos que denunciam. Isso porque normalmente os agentes, quando a ação é imputada a policial, por exemplo, fazem tais atos em locais ermos, longe dos outros, dificultando ainda mais a averiguação de eventual culpado.

            Recentemente, muito se falou do caso Amarildo, ajudante de pedreiro que, segundo as investigações, recebeu descargas elétricas, fora sufocado com os sacos plásticos famosos do filme em comento, e mais: afogado em um balde por quase duas horas. E não é somente um caso isolado: há centenas, em diversos Estados do Brasil(2). Todavia, poucos são divulgados. 

            Segundo Marcelo Barros Correia, delegado e autor do livro "Polícia e tortura no Brasil", a tortura existe e existirá no Brasil por muito tempo porque os mecanismos que a produzem seguem intocáveis. O caso Amarildo é uma exceção que ganhou repercussão, mas existem vários outros “Amarildos” que seguem sendo torturados e não viram notícia. O Amarildo é um invisível que por uma circunstância ganhou visibilidade. No entanto, isso não altera em nada o quadro de invisibilidade dos demais(3).

            Assim, temos no Brasil, seja no sul quanto no norte, uma gama de crimes de tortura que afetam a mentalidade e o físico das vítimas, que são amplamente desvalorizadas e suscetíveis de sérios problemas "pós-fatos", podendo até levá-los à morte, dependendo do descompasso do agente.

2. Breves noções da lei 9455/97

            Com a lei 9455/97, Lei de Tortura, insculpida diante do clamor social nacional advindo de atos sórdidos de policias do 24º Batalhão da Polícia Militar contra moradores da favela Naval de Diadema, via filmagem entregue a emissoras da época. Foi instituída a prezada lei, tentado desde lá coibir tais práticas hediondas.

            O primeiro artigo do referido diploma vem nos esclarecer o que efetivamente é crime de tortura, tendo como verbos nucleares "constranger" e "submeter" alguém, in verbis:

                                                   "Art. 1º Constitui crime de tortura:

                                                   I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça,causando-lhe sofrimento físico ou mental:

                                                   a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

                                                   b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

                                                   c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

                                                   II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou  mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo".

                Vê-se, desde logo, que nos tipos penais inseridos no crime de tortura há a presença de violência ou grave ameaça e que essa conduta cause sofrimento físico ou mental. A punição é relativamente alta - reclusão de 02 a 08 anos-, podendo ser qualificada ou majorada.

            Quanto ao efeito da sentença condenatória, temos a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição de seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada(art.1, §5º, lei supra). Nesse ínterim, pelo que se entende analogicamente ao filme vislumbrado, caso as vítimas denunciassem nosso saudoso fictício capitão, ele estaria, em tese, prestes a perder seu cargo na corporação militar. Vale mencionar, também, que o diploma legal estabeleceu no §2º que quem se omite, quando tinha o dever de evitá-las, incorre em detenção, a chamada pela doutrina de "tortura-omissão", comumente abordada na prática. Sendo assim, todos os envolvidos na prática de atos de tortura deveriam responder pelos seus atos, inclusive os que nada fizeram para tais atos ocorrerem.

             A  grande maioria dos casos, como no próprio "Tropa de Elite", está inserida na modalidade "Tortura-Prova", nitidamente quando o referido Capitão pegava o saco plástico e, colocando na cabeça do "acusado", por vezes sem ter o devido conhecimento das perguntas que o oficial fazia, era submetido a ficar sem ar, na tentativa de asfixia, buscando informações, declaração ou confissão da vítima ou de terceiro. (art.1, I, 9455/97)

            Assim, em linhas gerais,  para Luciano Mariz Maia(2006, p.98), a modalidade tortura-prova ou de tortura-persecutória, é a praticada para forçar a confissão, a declaração ou informação da qual dispõe a vítima e que é de interesse do torturador.

            Ainda que essa seja a preponderante em nosso meio, não podemos esquecer da "tortura- castigo", que mais para frente tecerei comentário quanto a possibilidade de enquadrar tal ato como mero maus-tratos. Nesse tipo, do verbo nuclear submeter, necessário compreender que encontram-se as expressões "guarda, poder ou autoridade", podendo-nos pensar em muitos exemplos que elucidam tal inciso II, do artigo 1º, vide carceireiro para com preso;  a nível federal, Soldado EV para com sargento, capitão, major; em nível familiar, e nas relações de guarda, de pais para com filhos.

            Como no tipo penal há obrigatoriamente função de guarda, poder ou autoridade, a doutrina chama-o de crime próprio. A carência desses requisitos, pois, induz ao erro de tipo, absolvendo eventual acusação.

3. Da tortura com resultado morte

           

            Não nos foi mostrado, em ambas obras cinematográficas da série Tropa de Elite, casos em que os supostos meliantes, ao serem capturados pela polícia militar, viessem a falecer devido as práticas de tortura. Se o resultado morte fosse configurado, entendemos que, de pronto, deveríamos analisar o animus do agente - dolo-, em matar ou tão somente judiar a ponto de ceifar a vida de outrem, caso que em nosso ver este última seria condenado por tortura qualificado pela morte( art. 1º, §3º, lei supra).

            Da mesma sorte, caso o torturador quisesse fazer a vítima sofrer bastante antes de matá-la, mas sendo este o resultado fim desde o início, entendemos estar enquadrado em homicídio qualificado pelo crime de tortura.

4. Maus tratos ou tortura(?)

           

            Outra análise interessante de se fazer orbita em relação ao crime similar de maus tratos, devidamente capitulado no art. 136, do Código Penal. Rogério Greco ( 2015,p. 392), em sintética redação, nos demonstra as reais diferenças, a saber:

                                                                              "O agente que pratica o delito de tortura age, sempre, com   dolo de dano, ou seja, sua finalidade, ab initio, é a de causar intenso sofrimento físico ou mental à vítima. Não existe,                                                                                            ainda, coincidência de motivação entre o delito de tortura e o  crime de maus-tratos. Neste, o agente atua para fins de educação, ensino, tratamento ou custódia; naquele, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo"(1)

               

                Nessa esteira, a tortura gera intenso sofrimento, servindo de castigo pessoal ( art. 1, II), sendo os maus tratos um agir educacional, fins de tratamento, mais ameno. Não se vislumbra, pois, tal tipo penal nas ações advindas do Capitão Nascimento, mormente por serem severas e trazerem consigo legítimos traumas aos que passavam em suas mãos, ainda que penalmente culpáveis.

5. tortura como crime próprio e desclassificação para os crime de lesão corporal e abuso de autoridade.

            O que muito se aprende nos bancos escolares é o princípio da especialidade. Utilizando-se deste, vemos que quando um fato criminoso possui condições para ser abarcado em dois ou mais tipos penais, necessário afastar a incidência do tipo penal genérico, dando verdadeiro lugar ao tipo penal específico.

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            Sendo assim, ainda que a lesão corporal ou abuse de autoridade se encontrem dentro de determinada conduta, a lei 9455/97 traz para si o delito, absorvendo a conduta da lesão e abuso. A título probante, vemos que na lesão corporal, em regra deixam vestígios, facilmente constatados via Exame de Corpo delito.

            Todavia, nesses casos flagrantes em que há tortura, muitos agentes, no sentido lato da palavra, camuflam eventuais vestígios, como nas próprias menções do filme e de episódios infelizmente constantes Brasil afora: jornal molhado, saco na cabeça, batidas nos tornozelos...            Nestes casos, tão somente a palavra da vítima e, dificilmente, provas testemunhais conduzem para eventual sentença condenatória.O ônus probante é inteiramente entregue à alegada vítima.(MAIA:2006, p.243).

            Luciano Maia continua , afirmando que "se são raras as decisões de condenações, por tortura, de agentes públicos, é farta a jurisprudência do TJSP condenando padrastos e madrastas, mães e pais por abusos em enteados e enteadas, filhos e filhas, e até sobrinhos, nas penas da lei supra (MAIA:2006, p.242)

            Neste mote, ainda que o princípio da especialidade impere nessas causas, é notória a desclassificação das linhas de defesa nesses crimes de potencial penal lesivo menor - de acordo com as penas- da lesão corporal, que pode inclusive ser beneficiado do SURSI - suspensão condicional da pena imposta ao agente - como no abuso de autoridade, devendo o Juiz analisar com deveras cautela caso a caso, para não cometer injustiças em ambos os lados da relação jurídica, em prol da justiça.   

Considerações Finais

            A sociedade quer uma polícia preventiva, proba, que venha a somar com os homens de bem, trabalhadores, honestos e que pagam suas contas. Querem ver bandido preso, quando culpado, e solto quando nada deve. Necessitam ver a tão preconizada justiça em prática, não admitindo violências ou excessos de poder.

            Da mesma maneira que idolatram um policial que cumpre com seu papel social, também são friamente hostis, não aceitam receber ordens, queimam ônibus quando algum de seus pares morre em função dos brigadianos - como ocorrera dias atrás - perturbando todo um sistema pacificador.

            O policial sempre será o bom para uns ou o grande cruel para outros; uns corruptos, outros honestos, vide Tropa de Elite 1 e 2. De qualquer sorte, uma resposta uníssona entre todos é certa, ou deveria ser: os crimes de tortura não podem mais prosperar em nosso meio social.

            Poderia instituir-se, como forma de repressão a atitudes abrigadas no tipo do crime de tortura, o exame de corpo de delito em determinadas pessoas presas ou detidas, a critérios estabelecidos pelo Judiciário,  com o fito de verificar se houve tortura como condão de extrair confissão das "vítimas", afora técnicas no período de formação dos brigadianos e policiais civis e  federais, para o aprimoramento destes para com as pessoas que são abordadas: seres humanos.         

            Não queremos aqui ser garantistas penal exacerbados, até porque sabemos que entre o ser e o dever ser, na atualidade, muito se muda. O que almejamos, todavia, são paridade igual de armas, ou seja, com o grupo de inteligência da policia militar e/ou civil, as informações cedo ou tarde aparecem, não necessitando,pois, da força bruta, que gera sequelas futuras a indivíduos que não são obrigados a prestar contas a policiais em exercício de função, ainda que representem a força estatal. São seus direitos, não podendo ser violados.

            Ressalta-se aqui que estamos falando de indivíduos que não oferecem perigos atual ou iminente, que não estão tentando reagir ou qualquer outro meio que induza ao ataque. Se houver violência por parte do suposto criminoso, entendemos ser perfeitamente cabível o uso moderado da força policial, baseando-se na legítima defesa.

             Neste mote, o crime de tortura deve ser visto com reserva, garantindo o pleno contraditório para não cometer injustiças ao acusado, mas ser vista a prova com vigor, e, sendo o outro lado punido, aplicar penas altas, haja vista ser um crime hediondo, repudiado por todo o ordenamento jurídico pátrio e internacional.

            Da ficção para realidade, a posição do fictício Capitão Nascimento e os que se parecem com ele na prática, em nosso meio, não legitimam seus atos, não representam a real função da polícia militar brasileira e não nos faz querer aplaudí-los por seus atos cruéis, ainda que com ânimo exaltado e contra quem comete crimes. Palavras de um advogado e cidadão de bem.           

Referências bibliográficas

CORREIA, Marcelo Barros, retirado do site " http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-tortura-no-brasil-e-uma-politica-de-estado-5761.htm", datado em 07.12.2015

FORUM, revista,  retirado do site "www.revistaforum.com.br/blog/2015/10/sessao-de-tortura-pm-do-ceara-raspa-tatuagem-de-homem-na-faca/", datado em 07 de outubro de 2015

LIMA,Renato Brasileiro de,Manual de processo penal, 3ª edição, Editora Juspodivm, Revista ampliada e atualizada, 2015.

GRECO, Rogerio, Curso de Direito Penal: parte especial, volume II: introdução à teoria geral da parte especial:crimes contra a pessoa- 11.ed.Niterói,Rj:Impetus, 2015

MAIA, Luciano Mariz. Do Controle Judicial da Tortura Institucional: À luz do direito Internacional dos Direitos Humanos.  Recife: Tese (Doutorado), Universidade Federal de Pernambuco, 2006.

Notas
(1) Alguns julgados também dão suporte as palavras do emitente doutrinador, como este do Ministro Gilson Dipp se pronunciou, em 2004, asseverou que enquanto na hipótese de maus-tratos, a finalidade da conduta é a repreensão de uma indisciplina, na tortura, o propósito é causar o padecimento da vítima; para a configuração da segunda figura do crime de tortura é indispensável a prova cabal da intenção deliberada de causar o sofrimento físico ou moral, desvinculada do objetivo de educação, vide STJ REsp 610395 / SC; RECURSO ESPECIAL 2003/0175343-3. Data do julgamento: 25/05/2004. Publicado em DJ 02.08.2004 p. 544..

(2) Sessão de tortura: PM do Ceará "rasga" tatuagem de homem na faca, vide "www.revistaforum.com.br/blog/2015/10/sessao-de-tortura-pm-do-ceara-raspa-tatuagem-de-homem-na-faca/", datado em 07 de outubro de 2015.

(3) Retirado do site http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-tortura-no-brasil-e-uma-politica-de-estado-5761.html, em 07.12.2015

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Sobre o autor
Rodrigo Zarpelão

Advogado, graduado pela PUCRS. pós graduado em direito público IMED; pós graduando em direito constitucional aplicado e direito previdenciário. Já autou como monitor do curso de delegado de polícia, faculdade IDC, RS.página profissional: https://www.facebook.com/zarpelaoadv/?ref=bookmarks

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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