A (ir) regularidade da prisão do senador Delcídio do Amaral

10/12/2015 às 22:24
Leia nesta página:

Trata-se de artigo que aborda a inconstitucionalidade da prisão do senador Delcídio do Amaral à luz dos princípios Constitucionais Penais, demonstrando a irregularidade na formal e material na prisão decretada em desfavor do congressista.

A prisão do senador Delcídio do Amaral pegou todos de surpresa (ou não), porque, até então, os olhos estavam voltados para os grandes empreiteiros. O fato é que, no curso dessa operação Lava Jato, a prisão de políticos até era esperada, porém não da forma como esta ocorreu.

O objetivo aqui não é o de dizer se a regra Constitucional está certa ou errada ao vedar a prisão (salvo uma exceção) de membro do congresso nacional, mas, sim, demonstrar que a prisão do senador foi efetuada em desacordo com a ordem constitucional vigente.

Esta prisão mostrou-se bem intencionada aos olhos da sociedade, afinal, o povo clama por justiça e os corruptos que se aproveitam da confiança depositada neles por meio do voto, devem ser expurgados da vida pública, sofrendo penas exemplares.

Sendo assim, toda a prisão de político corrupto é bem vista por todos, ou seja, a decisão do judiciário que prende político envolvido em crimes de corrupção (ou qualquer que seja) ganha mais legitimidade por conta do apoio popular.

No entanto, deve-se ter em consideração que o Brasil é um Estado democrático de Direito, fundado em princípios republicanos que visam garantir que, por meio de direitos e garantias insculpidas na Constituição Federal, todos tenham assegurados seus direitos básicos.

Para tanto, a Constituição da República impõe regras limitadoras aos legisladores. Tais regras tem o condão de assegurar que o indivíduo não venha a sofrer injustiças por excessos cometidos pelo Estado.

No caso específico, verifica-se que a prisão do senador Delcídio Amaral é inconstitucional, embora tenha sido vista com bons olhos pela sociedade. Isto porque, quanto à Constituição da República ouve a relativização exacerbada de uma garantia, criando-se uma nova “exceção”, com fundamento no princípio da proporcionalidade, já em relação à legislação de regência não houve a observância das formalidades da prisão em flagrante, tampouco a subsunção das condutas imputadas ao tipo penal descrito no artigo 2º da Lei 12850/13. 

Importante demonstrar aqui que o atropelo de garantias constitucionais para agradar a opinião pública pode ser um precedente muito perigoso, podendo o prejuízo voltar-se, como sempre, ao lado mais fraco, ou seja, ao cidadão comum.

Explico. A Constituição da República foi fundada em princípios norteadores do direito. Com isso, buscou-se assegurar garantias individuais com base em valores éticos e morais de senso comum.

Contudo, para toda regra há uma exceção, portanto, tais valores não são absolutos e devem ser relativizados para resguardar o interesse mor, qual seja, o interesse coletivo.

Ocorre que utilização indiscriminada de princípios relativizadores de garantias constitucionais, caracterizam verdadeira afronta ao próprio interesse coletivo, uma vez que decisões podem ser tomadas sem respaldo da lei e de acordo com a consciência do julgador (que é um ser humano e pode ter entendimento pessoal destoado do senso comum, pode estar “mal humorado” e outras tantas variáveis).

A aceitação de relativizações dessa magnitude pode ensejar decisões nos mais diversos campos do direito ao arrepio do direito posto, que foi referendado pela sociedade brasileira por ocasião da Magna Carta de 88.

O eminente Ministro Eros Grau, elucida com brilhantismo essa relativização negativa, por ocasião do julgamento do HC 95.009:             

Tenho criticado aqui – e o fiz ainda recentemente (ADPF 144) – a ‘banalização dos ‘princípios’ [entre aspas] da proporcionalidade e da razoabilidade, em especial do primeiro, concebido como um ‘princípio’ superior, aplicável a todo e qualquer caso concreto, o que conferiria ao Poder Judiciário a faculdade de ‘corrigir’ o legislador, invadindo a competência deste. O fato, no entanto, é que proporcionalidade e razoabilidade nem ao menos são princípios – porque não reproduzem as suas características – porém postulados normativos, regras de interpretação/aplicação do direito.”

No caso que ora cogitamos, esse falso princípio estaria sendo vertido na máxima segundo a qual ‘não há direitos absolutos’. E, tal como tem sido em nosso tempo pronunciada, dessa máxima se faz gazua apta a arrombar toda e qualquer garantia constitucional. Deveras, a cada direito que se alega o juiz responderá que esse direito existe, sim, mas não é absoluto, porquanto não se aplica ao caso. E assim se dá o esvaziamento do quanto construímos ao longo dos séculos para fazer, de súditos, cidadãos. Diante do inquisidor não temos direito. Ou melhor, temos sim, vários, mas como nenhum deles é absoluto, nenhum é reconhecível na oportunidade em que deveria acudir-nos.” (Voto do Ministro Eros Grau no Julgamento do HC 95.009/STF)

Foi, inclusive, exatamente com base no princípio da proporcionalidade que a prisão do senador foi decretada.

Pois bem.

O artigo 53, §2º da Constituição Federal prevê que “Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.”. 

Ocorre que não houve flagrante, pois não estavam presentes nenhuma das hipóteses previstas no artigo 302 do CPP. Contudo, ainda que houvesse o flagrante, o crime em questão não é inafiançável.

Não bastasse isso, o senado federal ao ratificar a decisão do STF, mantendo prisão em flagrante de Delcídio, que, posteriormente fundamentada no artigo 312 do CPP, foi convertida em prisão preventiva, acabou por ratificar uma prisão que sequer está prevista na Constituição Federal, ou seja, inconstitucional. 

Primeiro não houve flagrante porque o senador Delcídio do Amaral não foi surpreendido cometendo crime, logo após tê-lo cometido ou em circunstâncias que indicassem que ele teria cometido tal delito.

Além disso, no caso em questão, não há o que falar em crime permanente no caso do senador. Isto porque a conduta ilícita imputada ao congressista aproxima-se do tipo penal descrito no §1º do artigo 2º da Lei 12.850/2013, já que sua prisão se deu em razão de ter tentado impedir ou embaraçar a investigação ocorrida na operação Lava Jato.

Nesse caso, verifica-se que tal delito é crime instantâneo de efeitos permanentes, pois as condutas lesivas são limitadas ao tempo em que houve a tentativa de impedir ou embaraçar a investigação.

Portanto, não caberia a prisão em flagrante já que o que se perpetua no tempo são os efeitos do crime e não o a conduta ofensiva que ensejaria a situação de flagrância.

Logo, não houve situação que ensejasse a prisão flagrante. Como então converter para preventiva? Ninguém sabe.

 Segundo os crimes pelos quais o congressista está preso não são inafiançáveis.

É que a Constituição da República elenca quais são os crimes inafiançáveis: racismo (inciso XLII), prática de tortura (inciso XLIII), tráfico de entorpecentes e drogas afins (inciso XLIII), crimes hediondos (inciso XLIII), terrorismo (inciso XLIII).

Além disso, a Lei 8072/90 (Lei dos crimes hediondos) também traz em seu artigo 1º um rol de crimes considerados inafiançáveis:

I – homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, incisos I, II, III, IV, V, VI e VII);

I-A – lesão corporal dolosa de natureza gravíssima (art. 129, § 2o) e lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3o), quando praticadas contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição;

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II - latrocínio (art. 157, § 3o, in fine);

III - extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2o);

IV - extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ lo, 2o e 3o);

V - estupro (art. 213, caput e §§ 1o e 2o);

VI - estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1o, 2o, 3o e 4o);   

VII - epidemia com resultado morte (art. 267, § 1o). 

VII-B - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1o, § 1o-A e § 1o-B, com a redação dada pela Lei no 9.677, de 2 de julho de 1998).      (Inciso incluído pela Lei nº 9.695, de 1998)

VIII - favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º).

Como pode ser visto, os crimes pelos quais o senador Delcídio do Amaral está preso, não se subsumem a nenhum dos crimes considerados inafiançáveis, logo não poderia ter sido preso ainda que fosse surpreendido em flagrante, o que também não ocorreu.

Terceiro ponto a ser destacado é a inexistência de previsão, na Constituição Federal, de prisão cautelar de congressista no curso de mandato eletivo.

A decisão do STF foi fundamentada no artigo 312 do CPP, especificamente na conveniência da instrução penal e na garantia da ordem pública.  No entanto, tais dispositivos legais fundamentam a prisão preventiva que não pode ser decretada em face de membro do congresso nacional, por força do §3º do artigo 53 da Carta Cidadã.

Deste modo, está clara a inconstitucionalidade da prisão imposta ao senador Delcídio do Amaral, seja pela ausência de situação de flagrância, seja por ser o crime afiançável ou por inexistir a possibilidade de prisão cautelar para membro do Congresso Nacional.  

Aceitar que o órgão máximo do judiciário, guardião da Constituição, profira decisões contrárias à Carta Magna, é o mesmo que aceitar que cada juiz da 1ª instância, desembargador na 2ª instância, decida com base em sua consciência (não o livre convencimento do juiz) pessoal, ainda, que esta seja contrária à Lei que deveria ser aplicada.

Com isso, vive-se em uma total insegurança jurídica uma vez que a regra do jogo muda a cada entendimento pessoal do julgador, adotando-se para tudo a “teoria da Katchanga”, onde direitos fundamentais são indiscriminadamente relativizados utilizando-se de princípios que são imotivadamente sobrepostos ao sistema objetivo do ordenamento jurídico.

Com base em que o STF entendeu ser razoável e proporcional a prisão de um congressista, mesmo que sem previsão contitucional ou legal? Pois é... Katchanga.

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Sobre o autor
Julio Vargas

Bacharel em direito pela Universidade Guarulhos, estagiou no Ministério Público Federal, Defensoria Pública do Estado de São Paulo e ARTESP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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