Princípios constitucionais e revisão da planta de valores genéricos do IPTU.

A justiça na tributação do IPTU a partir da correta revisão da Planta de Valores Genéricos para fins de IPTU

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16/12/2015 às 10:16
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A revisão da Planta de Valores Genéricos do IPTU visa dar conhecimento ao Fisco Municipal da base de cálculo do tributo. Motivo de celeumas as revisões constantemente são objeto de ataques por sua inconstitucionalidade.

INTRODUÇÃO

Discussão frequente nos tribunais, as revisões da Planta de Valores Genéricos para fins de IPTU, tem sido alvo de debates calorosos acerca do aumento promovido na base de cálculo do tributo. As ADI’s movidas contras leis de revisão da planta apontam aumento exorbitante e em percentuais exageradamente elevados, desejando que tais iniciativas sejam realizadas de modo suave e em aumentos graduais.

Certo que o aumento do IPTU, por ser medida não simpática, deva ser promovido com método científico adequado e discutido com a sociedade, cujo escopo seja promover “justiça fiscal”. A discussão deve trazer à luz os princípios constitucionais que orientam o Sistema Tributário Nacional desde de 1988, enquanto ainda não efetivados plenamente na realidade do País.

O presente trabalho visa abordar os principais princípios que devem orientar a correta instituição do IPTU, atentando-se primordialmente para seus reflexos na Planta de Valores Genéricos, método próprio para o conhecimento da base de cálculo do IPTU.

Sem pretender esgotar o assunto, procuramos fazer a defesa de uma tributação justa que enleve o caráter republicano da tributação do IPTU e a natureza solidária da sociedade que se pretende construir no Brasil desde a Constituição Republicana de 1988.

1. A CORRETA REVISÃO DA PLANTA DE VALORES GENÉRICOS DO IPTU E SUA CONVERGÊNCIA COM O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA.

Cumpre, inicialmente, relembrar que todo o Sistema Jurídico Pátrio sedimenta-se sobre o princípio matriz constitucional da dignidade da pessoa humana, enaltecido já no preâmbulo da Constituição Republicana no auspicioso desejo de assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Sobre este pavimento alicerçou-se outros valores de suprema grandeza que orientam a construção do Direito no Brasil.

Um valor fundamental e nuclear do nosso sistema é o princípio da igualdade. Ele é informador de todos os subsistemas constitucionais, inclusive o tributário. Presente no art. 3º, da Constituição Republicana, é intuitivo perceber que não será possível “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, que consiga “erradicar a pobreza e a marginalização” e “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” sem se fizer resplandecer, sobre todas as luzes, a isonomia.

O princípio da igualdade, posto que consagrado, de forma genérica no art. 3º, da CF, mereceu consagração específica no art. 150, inciso II, da Carta Constitucional:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

[...]

II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;

O sentido exato da disposição não é despiciendo. Como primeira vedação clara, sob a qual nos deteremos, tem-se a afirmação de que é defeso o tratamento desigual entre os contribuintes que se encontrem em situação equivalente. A equivalência aqui é de fatos em relação à hipótese legal (fato jurígeno). Trata-se de vedação de qualquer desigualação, ainda que a pretexto de igualar os desiguais.

O conceito tradicional extraído da formulação aristotélica e reformulado entre nós por Rui Barbosa no brocardo “tratar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam”, sofre aqui limitação[i]. Sim, porque não é justo que contribuintes que possuam as mesmas condições econômicas e encontram-se fatidicamente debaixo da mesma repercussão jurídica de fato, sofram consequências jurídicas distintas. Fosse assim, ofender-se-iam todos os demais valores republicanos contidos na Constituição Federal.

Luciano Amaro busca explicar o princípio para quem: “diante da lei ‘x’”, toda e qualquer pessoa que se enquadre na hipótese legalmente descrita “ficará sujeita ao mandamento legal”. E continua ao dizer que para a lei “não há pessoas ‘diferentes’ que possam, sob qualquer pretexto, escapar do comando legal, ou ser dele excluídas.” A posição é instrutiva, pois “o princípio da igualdade está dirigido ao aplicador da lei”, significando que este não pode diferenciar as pessoas, para efeito de ora submetê-las, ora não, ao mandamento legal. Por suas próprias palavras: “Em resumo, todos são iguais perante a lei”.[ii]

Na posição de Sacha Calmon Navarro Coelho tem-se o seguinte formulado teórico:

[...] o princípio da igualdade da tributação impõe ao legislador: a) discriminar adequadamente os desiguais, na medida de suas desigualdades; b) não discriminar entre os iguais, que devem ser tratados desigualmente.[iii]

Com essa premissa maior é possível considerar, conforme exposição do autor, sendo a base de cálculo do IPTU o valor venal dos imóveis, todos os contribuintes que possuam imóveis com valor a ser atribuído para fins de tributação do IPTU devem sofrer avaliação imobiliária igualitária. Isso não quer dizer que todos os imóveis possuam o mesmo valor, mas que apreciados pelo mercado o sejam igualmente para fins de imposição do IPTU.

Essa conclusão decorre da lição de Hugo de Brito Machado, para quem o valor venal vem a ser “aquele que o bem alcançaria se fosse posto à venda, em condições normais”, “o preço pelo qual provavelmente o bem poderá ser vendido” ou o “preço para venda a vista, certamente, no qual não podem estar incluídos quaisquer custos”.[iv] Assim, todos os imóveis precisam ter sua determinação com base nos mesmos critérios usados pelo mercado para a definição de seus preços para a incidência do IPTU.

A expressão: “exorbitante”, comumente usada nos recursos administrativos e ações judiciais, pode ser indicativo de argumento pouco científico das insurgências. Se a revisão da Planta de Valores Genéricos que promover majoração dos valores de imóveis, edificados ou não for decorrente de análises e estudos precisos realizados sobre a Planta de Valores Genéricos anterior, com a constatação de desigualdades nos valores venais atribuídos para fins de IPTU, ela deve ser alterada, ainda que implique em aumento significativo do IPTU. Isso para se eliminarem bases de cálculo irrisórias.

Salienta-se que não se exige precisão matemática, mas apenas arbitramento com proximidade razoável, em razão da Planta de Valores Genéricos, como o próprio nome sugere, definir preços genéricos.[v] Exige-se, no entanto, obediência a metodologia estabelecida pela legislaçao, a qual pode ser ilidida mediante revisão de lançamento por provocação do contribuinte em avaliação individual. É comum em alguns municípios a instituição de Comissão de Valores Imobiliários para os estudos preliminares dos valores de mercado para os imóveis urbanos.

Desta feita, não se justifica, que pessoas nas mesmas condições, vizinhos ladeados, arquem com tributação distinta pelo simples fato da Planta de Valores Genéricos para fins do IPTU estiver desatualizada.

2. DO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA COMO DECORRÊNCIA LÓGICA DA ISONOMIA E SUA NÃO OFENSA PELA REVISÃO DA PLANTA GENÉRICA DE VALORES DO IPTU

Como corolário do princípio da isonomia, o princípio da capacidade contributiva não precisaria estar expresso. Não obstante, a Constituição Republicana assim dispõe:

Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:

[...]

§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

Chega-se a conclusão pela simples leitura do dispositivo: a graduação dos impostos deve considerar a capacidade econômica do contribuinte. Entretanto, na prática, o instituto é causa de confusões conceituais.

É que a expressão “capacidade econômica”, apreendida muitas vezes como equivalente de capacidade contributiva deve ser enxergada na fórmula do pranteado Geraldo Ataliba, a implicar “real possibilidade de diminuir-se patrimonialmente o contribuinte, sem destruir-se e sem perder a possibilidade de persistir gerando riqueza como lastro na tributação”. Sendo, pois, expressão mais antiga que a própria Ciência das Finanças[vi], a capacidade contributiva significa que o contribuinte deve colaborar com os gastos públicos em razão de sua “força econômica”.

No que diz respeito a “gradação”, intimamente ligada ao enunciado linguístico “sempre que possível”, a doutrina considera que o princípio da capacidade contributiva exige, se possível, que os impostos sejam progressivos, isto é, “tenham alíquotas majoradas na medida em que se aumenta a dimensão da base de cálculo”.

O importante a ser observado nesta fala é que aumentando-se a dimensão da base imponível, “presume-se que o sujeito passivo da obrigação tributária” que “tenha maior capacidade econômica em relação aos demais contribuintes” mereça uma “tributação desigual”, já que a condição os desiguala, “para que todos tenham tratamento isonômico”[vii].

Disso se extrai que a tributação incide desigualmente sobre o detentor de maior capacidade econômica. A uma, de forma objetiva, o princípio da capacidade contributiva consubstancia que a exteriorização de riquezas é indicativa da suportabilidade quando da incidência do ônus fiscal. A duas, subjetivamente, quando expressa “repartição do impacto tributário, de tal modo que os participantes do acontecimento contribuam de acordo com o tamanho econômico do evento”.[viii]

Buscando aplicar o princípio da capacidade contributiva ao IPTU, viável apenas em seu caráter objetivo, é preciso considerar que o tributo é aferido com base no valor venal do imóvel, apurado: a) de acordo com as peculiaridades do mercado em que se situa (ex.: regiões de maior ou maior valor); b) méritos e deméritos e sua localização na cidade (ex.: próximo ou distante dos centros econômicos); c) aparelhos públicos de que é servido (ex.: com ou sem pavimento asfáltico); d) qualidades ou defeitos de sua localização do terreno (ex.: aclive ou declive); e) se foi beneficiado com edificação (ex.: construção residencial ou comercial); f) qualidade desta edificação (ex.: simples ou luxuosa); g) dentre outros aspectos que são indicativos da condição sócio-econômica de seu proprietário. Trata-se de “presunção de capacidade contributiva”, de modo que jamais o contribuinte poderá, alegando ausência da referida capacidade, eximir-se do pagamento do imposto, “uma vez que esta se revela com a mera propriedade do imóvel”[ix]

Diga-se que, num País com tamanho déficit habitacional, se tornou um grande privilégio ser proprietário de imóvel urbano. Os preços dos terrenos vagos é expressivo e de difícil aquisição às famílias de baixa renda. Tem-se que a propriedade do imóvel faz exsurgir a capacidade de contribuir em razão do próprio patrimônio. De sorte que por base imponível o valor venal do imóvel ajusta-se adequadamente, não podendo o Gestor Público deixar de instituir o tributo em desobediência à fórmula legal sob pena de renunciar receita, cujas consequências atingem diretamente os serviços públicos prestados ao cidadão, precisamente os que mais necessitam deles.

A crença de que os Fiscos Municipais, através de seu Parlamento, não poderiam revisar a Planta de Valores Genéricos, na opinião simplista esboçada muitas vezes nos dizeres: “aumentar todo encargo de uma só vez”, não se sustenta numa interpretação aprofundada de nosso ordenamento jurídico. Deveria parcelar? Aumentaria em etapas? Ao contrário, o princípio da capacidade contributiva obriga que a definição correta dos valores dos imóveis é a tônica na cobrança do IPTU.

É possível constatar, ad argumentandum, que a única hipótese de aumento “expressivo” em razão de uma equivocada revisão anterior ou, mesmo, por desídia em atualizar a Planta de Valores Genéricos, não pode dar suporte para assertivas que inviabilizem uma revisão mais precisa e detalhada que represente a realidade dos preços de mercado.

Ao bem da verdade os contribuintes que possuam imóveis de valor expressivo evidenciam sua capacidade contributiva e todos os demais contribuintes em igual situação devem ter base imponível valorada sob os mesmos parâmetros em nome da capacidade econômica de que dispõem. Não é moralmente aceitável e ofensivo aos mecanismos democráticos de “participação”[x](o qual também inclui o dever de contribuir) que o contribuinte continue a pagar valores irrisórios pela imprecisão na avaliação anterior, sob o argumento mal fundamentado cientificamente de que a subida não pode ser “de uma só vez”.

Veja-se que a revisão da Planta Genérica é calcada em fatos, os quais são descritos na hipótese de incidência tributária, que enseja a presunção de riqueza dos contribuintes. Não a fortuna, mas patrimônio suficiente para arcar, na pior das situações, com percentuais mínimos de alíquotas.

Não fere mesmo a capacidade contributiva o simples fato da Administração Tributária revigorar sua Planta Valores Genéricos, há muito desatualizada. Ainda que sua revisão tivesse por fundamento uma má avaliação perpetrada em exercícios anteriores, não há empecilhos à correção em uma precisa reavaliação. Não é dever apenas do contribuinte pagar corretamente o tributo, mas obrigação da Administração assegurar a correta avaliação dos imóveis. Afinal, nenhum contribuinte tem “direito adquirido” à “perpetuação da ilegalidade”[xi], ainda que sob o nobre patrocínio da “segurança jurídica”.

Nesta esteira, o tributarista Roque Antônio Carrazza faz uma exposição sensata sobre o princípio. Note-se:

Em relação aos impostos sobre a propriedade (imposto territorial rural, imposto predial e territorial urbano, imposto sobre a propriedade de veículos automotores etc.), a capacidade contributiva revela-se com o próprio bem, porque a riqueza não advém apenas da moeda corrente, mas do patrimônio, como um todo considerado. Se uma pessoa tem, por exemplo, um apartamento que vale um milhão de dólares, ela tem capacidade contributiva, ainda que nada mais possua. Apenas, sua capacidade contributiva está imobilizada. A qualquer tempo, porém, esta pessoa poderá transformar em dinheiro aquele bem de raiz.

[...]

Enfatizamos que a capacidade contributiva, para fins de tributação por via de IPTU, é aferida em função do próprio imóvel (sua localização, dimensões, luxo, características, etc.), e não da fortuna em dinheiro de seu proprietário. Não fosse assim, além da incerteza e insegurança, proliferariam situações deste tipo: pessoa hoje pobre, mas que adquiriu caríssimo imóvel em período economicamente faustoso de sua vida profissional, estaria a salvo do IPTU. Ou deste: num prédio de luxo, com um apartamento por andar, cada proprietário pagaria um IPTU diferente (assim, v.g., o banqueiro bem sucedido pagaria no grau máximo e o aposentado, que recebe pensão previdenciária do INSS, nada pagaria). Não nos parece seja este o espírito do dispositivo constitucional. A nosso ver, a só propriedade do imóvel luxuoso constitui-se numa presunção iuris et de iure de existência de capacidade contributiva (pelo menos para fins de tributação por via de IPTU). Estaria inaugurado o império da incerteza se a situação econômica tivesse que ser considerada na hora do lançamento deste imposto.

Portanto, a capacidade contributiva revela-se, no caso do IPTU, com o próprio imóvel urbano. Do contrário, não se teria mais mãos a medir. Apenas à guisa de exemplo, dois proprietários de imóveis urbanos idênticos pagariam IPTUs diferentes porque um deles é rico industrial e outro, modesto aposentado. Não é isto, obviamente, o que a Constituição quer.[xii] (sic).

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A sistemática adotada pelo laureado autor nos aponta o princípio da proporcionalidade. “A técnica da proporcionalidade – obtida pela aplicação de uma alíquota única sobre uma base tributável – é instrumento de justiça fiscal ‘neutra’, por meio do qual se busca realizar o princípio da capacidade contributiva.” A técnica induz que o “desembolso de cada qual seja proporcional à grandeza da expressão econômica do fato tributado”.[xiii]

O Supremo Tribunal Federal “já se pronunciou no sentido de que o princípio da capacidade contributiva é prestigiado, no caso dos impostos ditos reais, pela mera técnica da proporcionalidade”[xiv]. De fato, não é o desejo da Constituição Republicana permitir que a desigualdade e a injustiça fiscal sejam perpetuadas quando da cobrança do IPTU (tributo real) em razão de incorreções na Planta de Valores Genéricos. Não é possível tolerar que contribuintes em igualdade de condições se beneficiem injustificadamente com tributação menos onerosa em nome da suposta tese de ofensa aos preceitos constitucionais sob a comum e vaga alegação de “ruptura súbita do natural planejamento pelo contribuinte”.

Não se cogita que um proprietário de imóvel valorado pelo mercado não possua recursos para pagar, anualmente o IPTU (relativamente baixo maioria dos Municípios) e sujeito a parcelamentos. Será problema para o grande latifundiário urbano? Pode não possuir liquidez ou disponibilidade financeira, mas que possui recursos é inegável.

Além disso, os Municípios preveem isenção ou mesmo remissão das dívidas do IPTU em casos de contribuintes de baixa renda (aposentados, portadores de necessidades especiais, famílias em estado de hipossuficiência grave, etc.) quando proprietários de apenas um imóvel utilizado para sua residência (princípio de vedação de tributação do mínimo existencial).

Veja-se um julgado esclarecedor:

[...]

3. Uma vez estabelecida, em lei e pelo valor venal do imóvel, a base de cálculo do IPTU, cabe à Administração Municipal fixar o valor de bens, independente de intervenção do respectivo Legislativo.

4. O valor venal, por sua natureza, é estabelecido segundo critério decorrente do fenômeno mercadológico, não da evolução inflacionária.

5. Sem elementos de convicção seguros, não há como se admitir violado o princípio da capacidade contributiva, insculpido no art. 15, § 1º, da Constituição Federal. Apelo parcialmente provido” (TJSP, 1ª C., Ap. Cível 1922663341, rel. Des. Leo Lima, m.v., j. 6.4.93).

Nos dizeres de Roque Antônio Carrazza:

Digamos que duas pessoas tenham imóveis idênticos (com as mesmas dimensões, o mesmo material, as mesmas características). Eles devem pagar – é claro – o mesmo montante de IPTU. Por quê? Porque ambas têm a mesma capacidade contributiva (pelo menos em relação a este imposto).[xv]

Por consequência visualiza-se que a capacidade contributiva impõe instituição igualitária do IPTU sobre os contribuintes que detenham condições econômicas de suportar a exação. Essa acepção deve ser levada a cabo a partir da correta revisão da planta.

3. DA REVISÃO DA PLANTA GENÉRICA DE VALORES E VEDAÇÃO AO EFEITO DE CONFISCO

O princípio da vedação ao confisco insculpido no inciso IV, do art. 150, da Constituição Federal deriva do princípio da capacidade contributiva, atuando aquele em conjunto com este,[xvi] já que essa capacidade econômica se traduz numa aptidão para suportar a carga tributária sem que haja perecimento da riqueza tributável que lhe dá suporte.

O confisco se caracteriza essencialmente pela desproporcionalidade entre os efeitos da cobrança do tributo e a capacidade contributiva que modo a dificultar sobremaneira a capacidade de se sustentar e se desenvolver[xvii]. Não tem a ver o confisco com o efetivo valor do tributo ou a potencialidade do aumento.

É sobre o direito de propriedade que a vedação de confisco apresenta uma de suas melhores facetas ao impedir que a pretensão governamental aproprie-se injustamente do patrimônio particular, parcial ou integralmente, “em face da insuportabilidade da carga tributária imposta”[xviii].

Sob outra visão, Paulo Cesar Bária de Castilho, entende que “confisco tributário consiste em uma ação do Estado, empreendida pela utilização do tributo, a qual retira a totalidade ou parcela considerável da propriedade do cidadão contribuinte, sem qualquer retribuição econômica ou financeira por tal ato”.

Não obstante tais ponderações iniciais, o problema de maior complexidade no estudo do direito tributário está em delimitar-se o “efeito de confisco”, conforme corriqueiramente se invoca. É que a aferição da tributação confiscatória se apresenta de forma “casuística”[xix]. Como se sabe, o comando constitucional não proíbe o confisco em si, mas veda a utilização do tributo com “efeito de confisco”. Nisso estaria a dificuldade hermenêutica.

Conseguimos abstrair do texto constitucional que o princípio pretende evitar que o ente tributante avance sorrateira e sub-repticiamente sobre o patrimônio do contribuinte. Veda-se a prática antieconômica de uma exação excessiva, em evidente menoscabo da capacidade contributiva e do direito de propriedade. Muito desafiador, contudo, é analisar nos casos concretos a compatibilização da carga tributária com a capacidade econômica de cada um.

Na opinião de Kiyoshi Harada a missão parece simples: “é confiscatório o tributo que desrespeite a capacidade contributiva; a capacidade contributiva é superada quando o tributo passa a ter efeito confiscatório”[xx].

Consenso é que a vedação ao confisco deve ser feita em função da totalidade da carga tributária:

[...] ou seja, no cotejo entre a capacidade tributária do destinatário do tributo e o grau de suportabilidade econômico-financeira da incidência de todos os tributos que podem sobre ele incidir, em dado período, destinados a uma mesma entidade tributante[xxi].

Concordando, Hugo de Brito Machado diz que “o caráter confiscatório do tributo há de ser avaliado em função do sistema, vale dizer, em face da carga tributária resultante dos tributos em conjunto”[xxii].

A opinião ganhou guarida no Supremo Tribunal Federal, na ADIn 2010-MC/DF, de memorável relatoria do Ministro Celso de Mello, verbis:

A proibição constitucional do confisco em matéria tributária nada mais representa senão a interdição pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, a injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais (educação, saúde, habitação, por exemplo). A identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte – considerando o montante de sua riqueza (renda e capital) – para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que os houver instituído (União Federal, no caso), condicionando-se, ainda, à aferição do grau de insuportabilidade econômica e financeira, à observância pelo legislador, de padrões de razoabilidade destinados a neutralizar excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo poder público. Resulta configurado o caráter confiscatório de determinado tributo, sempre que o efeito cumulativo – resultante das múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal – afetar, substancialmente, de maneira irrazoável, o patrimônio e ou os rendimentos do contribuinte.

A posição deste julgado em particular dispensa mais citações uma vez que vem representando a opinião majoritária. É no mesmo sentido que a jurisprudência quando se refere “as múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal” Não poderia qualquer ente, na totalidade da carga tributária, após considerar o montante da riqueza do contribuinte, avançar sobre o patrimônio de forma insuportável.

Se, pois, a vedação de tributação com efeito de confisco leva em conta a capacidade contributiva, cujo apurado “tem de ser feito dentro do conceito de justiça social”, que “deve ser medido pelo critério da capacidade contributiva”, por consequência, crê-se que a “capacidade de pagar o imposto” seja “a soma da riqueza disponível, depois de satisfeitas as necessidades elementares da existência, que pode ser absorvida pelo Estado, sem reduzir o padrão de vida do contribuinte e sem prejudicar as suas necessidades econômicas.”[xxiii]

Dessa forma, não havendo na legislação fórmula precisa, somente caso a caso se pode dizer se é confisco ou não, pois uma situação que para alguns pode ser confiscatória, para outros já não será, como bem coloca Luciano Amaro:

[...] o princípio da vedação de tributo confiscatório não é um preceito matemático; é um critério da atividade do legislador e é, além disso, preceito dirigido ao intérprete e ao julgado que, à vista das características da situação concreta, verificação se um determinado tributo invade ou não o território do confisco.[xxiv]

Imagine-se uma hipotética situação: determinado imóvel urbano possui valor de mercado em R$20.000,00 (vinte mil reais), mas que por má avaliação tem base de cálculo atribuída em R$2.000,00 (dois mil reais). Se a alíquota aplicada for de 1%, o contribuinte pagará R$20,00 (vinte reais) de IPTU. O mesmo imóvel é edificado, alcançando valor de mercado em R$200.000,00 (duzentos mil reais), mas sem os devidos alvarás de construção e alteração dos cadastros da Prefeitura efetua pagamento a menor do imposto. Todavia, com prévia atualização cadastral feita pela Administração e revisão da planta genérica para próximo do valor de mercado, alcança R$ 180.000,00 (cento e oitenta mil reais), aplicando-se alíquota de imóvel construído (0,35%), teremos R$ 630,00 (seiscentos e trinta reais), ou seja, um aumento em mais de 3.000% (três mil por cento). No exemplo citado o valor do imóvel subiu em razão das benfeitorias realizadas e da má avaliação anterior. Há confisco se o ente tributante revisa o valor do imóvel? Não se nos concentrarmos no que representa a vedação de tributação com efeito de confisco apresentada nesta exposição, cujo silogismo nos conferiria um resultado favorável ao Fisco.

Cogitemos de outra hipótese: um imóvel qualquer foi avaliado na planta genérica em R$9.000,00 (nove mil reais) há mais de quatro anos. Apesar disso seu valor de mercado vem subindo ano a ano em percentuais muito superiores à inflação em razão de equipamentos e serviços públicos em sua proximidade, de modo que alcançou valor final de R$80.000,00 (oitenta mil reais). Se for aplicada a alíquota de 1,5% (um e meio por cento) sobre a base tributável desatualizada resulta no tributo a recolher em R$135,00 (cento e trinta e cinco reais). Tal imóvel tem seu cadastro atualizado e o valor na Planta de Valores alterado para R$60.000,00 (sessenta mil reais). Se sofrer incidência de mesma alíquota o valor do IPTU será R$900,00 (novecentos reais), ou seja, mais de 500% (quinhentos por cento). Nesse caso o aumento expressivo decorre da depreciação da avaliação anterior. Eventual desprezo do Gestor Público ao correto valor da base imponível não passará branco sem ofensa ao princípio da isonomia, tratado em subitem anterior.

Em todos os casos apresentados acima, semelhantes às situações concretas, a subida foi considerável, porém não se pode concluir ser necessário um aumento gradual (em parcelas), afinal os demais contribuintes podem estar pagando valores corretos. Se o valor do imóvel reflete o ganho patrimonial que o contribuinte teve ao longo dos anos, mesmo nos casos de IPTU mais elevados, ele representa um percentual mínimo do patrimônio imobiliário, o qual não será, ainda que em muitos anos de tributação, confiscado.

Uma análise diversa poderia redundar na seguinte situação esdrúxula: um contribuinte tem rendimentos mensais de R$6.000,00 (seis mil reais), ao fazer sua declaração de Imposto de Renda (IR) pagando alíquota de 27,5% (vinte e sete e meio por cento), desconsiderados eventuais fatores de dedução deveria pagar R$19.800,00 (dezenove mil e oitocentos reais) de IR. No ano seguinte, realiza bons negócios e passa a ter uma renda mensal de R$50.000,00 (cinquenta mil reais). Com a mesma alíquota, mais uma vez desconsiderando-se possíveis fatores de dedução teria que pagar R$198.000,00 (cento e noventa e oito mil reais). Na ótica de muitos o aumento de 900% (novecentos por cento) do tributo não deveria ocorrer porque a “subida” não pode ser de “uma só vez”. Definitivamente, não se pode creditar validade a isso.

É inegável a apreciação imobiliária ocorrida no País nos últimos anos. Reforma de praças, revitalização de áreas urbanas, construção de escolas e postos de saúde, projetos habitacionais, apoio a grandes empreendimentos imobiliários, comerciais e industriais, dentre outras ações, foram, ao longo do tempo, causando na área urbana um revigorar nos preços imobiliários, até para regiões antes sem qualquer interesse de mercado.

O simples ato de atualizar o valor venal dos imóveis, se isso representa a realidade de mercado, não pode ser tido por confisco, muito mais quando se trata de simples reflexo do incremento patrimonial que tiveram os contribuintes. Com essa entonação temos o pronunciamento abaixo:

E conquanto a atualização da Planta Genérica de Valores, prevista nos Anexos da Lei Complementar n.º 666/2013 possa realmente implicar, em alguns casos, na majoração do valor venal de imóveis situados no âmbito do Município de Atibaia em percentuais superiores a 300%, isso não representa, de modo algum, confisco ou violação aos princípios da capacidade contributiva, da razoabilidade ou da dignidade da pessoa humana. (TJSP, ADIN 2001017.52.2014.8.26.0000, Des. Rel. Paulo Dimas Marcaretti, Órgão Especial, Julgamento em 14.05.2014, Registro 16.05.2014).

Afinando-se ao julgamento, Paulo de Barros Carvalho, lembrado no Acórdão, admoesta:

[...] de evidência que qualquer excesso impositivo acarretará em cada um de nós a sensação de confisco. Porém, o difícil é detectarmos os limites. Haverá sempre uma zona nebulosa, dentro da qual as soluções acarretarão para o subjetivismo.[xxv]

Não sem razão o Supremo Tribunal Federal asila o entendimento de que, “quando prevista em lei”, não é inconstitucional “a apuração da base de cálculo do IPTU – valor venal do imóvel, CTN, art. 33 – mediante a reavaliação econômica do imóvel, segundo a previsão dos padrões da Planta de Valores Genéricos”.[xxvi]

O raciocínio do recente julgado que levou o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão a declarar como inconstitucional a lei revisora da Planta de Valores de São Luis (ADIn 15562/2011) assentou-se em circunstâncias bem distintas e especialíssima. Por primeiro o Município de São Luis isentou mais de metade dos imóveis da cidade e vinha promovendo atualizações com base em índices oficiais ano a ano. Em segundo o aumento foi generalizado em todos os imóveis não isentos, situação que causou a desproporção na nova avaliação com percentual médio em 500% (quinhentos por cento). Por fim, a decisão alerta o fato da revisão ter sido promovida de modo açodado e não debatida com a sociedade.

4. PROPORCIONALIDADE OU RAZOABILIDADE APLICADAS À ISONOMIA, CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E VEDAÇÃO AO CONFISCO.

Comumente o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade é classificado pela doutrina como princípio ligado aos princípios da interpretação da Constituição[xxvii]. Ele aparece ladeado de outros princípios como “da unidade da Constituição”, “do efeito integrador”, “da máxima efetividade”, “da justeza ou da conformidade funcional”, “da concordância prática ou harmonização”, “da força normativa” e “da interpretação conforme a Constituição”.

Não se cogita contrariamente de que em essência, como prenuncia Coelho, o princípio “consubstancia uma pauta de natureza axiológica” que deriva diretamente das ideias republicanas “de justiça, eqüidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins” (sic). No fundo “enquanto princípio geral de direito” serve para interpretar todo o ordenamento jurídico.[xxviii]

Então, na colisão de valores constitucionais, entraria em jogo a proporcionalidade para que ambos, aparentemente em conflito, possam subsistir proporcional e razoavelmente. Sim, e porque, em se tratando os princípios constitucionais em normas polissêmicas, o sentido real e prático de valor constitucional deve manter-se incólume sob pena de injustiça e ofensa à própria Constituição do Estado.

Da proporcionalidade exsurge o postulado da “tributação justa” a qual levaria em conta o caráter “compulsório” da tributação como forma de contribuição para os gastos públicos “na proporção” dos haveres de cada um, sempre “na medida e na conformidade da lei”. Nisto estaria completa a noção republicana de prevenção contras os “excessos” e “surpresas” praticados pelo Estado, visto que a tributação também pressupõe “autorização” dos cidadãos[xxix].

Julga-se que não é possível haver justiça tributária se todos os contribuintes não contribuírem de modo igualitário (isonomia) e na medida de suas forças econômicas (capacidade contributiva). Não podemos tolerar que, havendo tamanho déficit nos serviços públicos de saúde, educação e infraestrutura urbana, tão necessários à redução das desigualdades sociais, sobretudo num País tão rico e contrastante, possam existir contribuintes pagando tributo irrisório em evidente e odiosa condição de privilégio.

Salta aos olhos o fato de que um determinado contribuinte, podendo pagar mais, venha pagando valores tão baixos, enquanto outros, em situação similar pagam ITPU corretamente. Ao permitir-se isso teríamos a injustiça e ofensa ao “bom senso”.

Não se pode presumir que os contribuintes são pegos de “surpresa”, sobretudo pelas indicações de mercado. Se não houver mudança nas metodologias de avaliação na última revisão da planta, se lei for previamente debatida com a sociedade, não haverá desproporção ou exagero, senão aumento natural decorrente da apreciação de mercado.

A revisão frequente e adequada da Planta de Valores Genéricos do IPTU se adéqua bem aos “princípios morais, éticos e de justiça”, de modo que resguarda a capacidade contributiva dos indivíduos, “não representando um confisco de suas rendas”, mas um fator que estimula o desenvolvimento socioeconômico da Cidade, “atenuando as desigualdades sociais e proporcionando a justa distribuição”[xxx] da renda. Nisto é atendida a proporcionalidade e a razoabilidade.

Veja-se como última referência os dizeres da ADIn 2064066-04.2013.8.26.0000, movida pelo PSDB contra a lei revisora da planta de valores do IPTU do Município de Tatuí, São Paulo, de relatoria do Desembargador Antônio Luiz Pires Neto, julgada em 11 de junho de 2017:

Nessa linha, é perfeitamente possível a revisão da planta genérica de valores (mesmo em patamar que escape ao padrão dos índices utilizados em revisões anteriores) para que seja alcançado, na medida do possível, o real valor do bem. E, nesse caso, ou seja, quando a norma tem por objetivo a simples atualização da planta genérica de valores (para que fique ajustada ao mercado imobiliário), não há falar-se em confisco ou eventual violação dos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e capacidade contributiva, o que ocorreria somente se a revisão atingisse patamar tal que superando abusivamente os parâmetros orientados pelo mercado imobiliário - inviabilizasse o direito de propriedade, hipótese inocorrente na espécie dos autos.

Denota-se que não é o percentual de elevação dos valores imobiliários da planta que determina se o aumento é abusivo ou não, mas se a revisão foi promovida adequadamente para os valores reais do bem imóvel. Não importa se o percentual foi expressivo, o que releva-se é o fato de ser correspondente a justeza do tributo instituído.

5. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E CORRETA REVISÃO DA PLANTA DE VALORES GENÉRICOS DOS TERRENOS E TABELA DE PREÇOS DE CONSTRUÇÕES PARA FINS DO IPTU.

O multissecular princípio da legalidade se põe com um relevante balizamento do Estado de Direito e com reflexos diretos às matérias tributárias. De natureza dúplice, visa proteger o cidadão contra a imposição de obrigações tributárias sem prévia previsão legal (art. 5º, inciso II, c/c art. 150, inciso I, da CF), mas também obriga ao Administrador determinar-se de acordo com o direito positivo exigindo os tributos de sua competência (art. 37 c/c art. 145, da CF)[xxxi].

Na Constituição Republicana, o legislador constituinte atentou ao valor republicano de que as ações da Administração Pública devem ser pautadas pela legalidade. De forma pragmática, significa que o legislador, “ao elaborar a lei, deve, obviamente, obedecer à Constituição”. Mais que isso, deve o legislador (administrador público, juiz), “por não serem senhores, mas servidores da lei”[xxxii], subordinarem-se à ela.

A Administração Pública, justamente porque está subordinada à lei, “não pode afrontar o direito positivo”. Deve ser submetida aos controles internos e externos que garantem a legalidade dos atos por ela praticados. Aliás, como dito acima, não só é exigedo, como também alerta que a Administração se paute pelos critérios de “eqüidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, etc., agindo sempre de modo mais útil ao interesse público”(sic)[xxxiii], vocação do Estado de Direito.

Por este viés, não pode o Fisco excluir fato jurígeno da tributação, compreendo-se nele a sua dimensão ou “aspecto quantitativo”[xxxiv], ou seja, sua base de cálculo. Se agir assim, fere frontalmente o princípio da legalidade renunciando a receita do IPTU.

Ora, a base de cálculo do IPTU há de ser necessariamente o valor venal (ou, conforme a melhor doutrina, o valor real) dos imóveis urbanos, conforme se extrai do art. 33, do Código Tributário Nacional, o que se ajusta ao que dispõe o art. 156, inciso I, da Constituição Republicana. É despiciendo maiores aprofundamentos sobre o sentido expressão “valor venal”, o qual demonstra com margem razoável o montante econômico que o bem imóvel representa.

Noutro ponto, descortinando a base de cálculo há de se notar que ela possui funções relevantes na órbita tributária, sendo a principal a de “constatar a observância dos princípios da capacidade contributiva”[xxxv]. Como se apurará corretamente a capacidade econômica do contribuinte do IPTU se a base de cálculo estiver erroneamente dimensionada? Se por ela se revela a justeza na cobrança do imposto, uma má avaliação representará, na prática, um tributo efetivamente mal-instituído e com ofensa à legalidade e a capacidade contributiva.

Esclarece-se, para isso, que a Lei Complementar n.º 101, de 04 de maio de 2000 - LRF, que “estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências”, determina o seguinte:

Art. 14 [...]

§ 1º A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.

A responsabilidade com as finanças públicas é implícita no comando constitucional ao obrigar o gestor público a conduzir o planejamento orçamentário do Estado, no dirigismo econômico bem próprio das democracias sociais (também de acordo com o art. 174, da Constituição Republicana).

O primado dessa “ordem econômica” instituída pela Constituição de 1988, funda-se na “dignidade da pessoa humana”, a qual proclama o necessário “desenvolvimento econômico e social”[xxxvi]. Para atingir este objetivo o Estado precisa levar a cabo os objetivos orçamentários e cuidar das receitas a que faz jus.

Cuidando-se as leis instituidoras da revisão das Plantas de Valores Genéricos do IPTU de normas que devam se sujeitar às regras da Lei de Responsabilidade Fiscal, sua aprovação com má avaliação implicaria em inconstitucionalidade de propositura, sobretudo por incorrerem os Prefeitos nas penalidades decorrentes da prática (ofensa ao princípio da legalidade). Veja-se o comando do Decreto-Lei 201/67, do qual resulta em cassação do mandato, in verbis:

Art. 4º São infrações político-administrativas dos Prefeitos Municipais sujeitas ao julgamento pela Câmara dos Vereadores e sancionadas com a cassação do mandato:

[...];

VIII - Omitir-se ou negligenciar na defesa de bens, rendas, direitos ou interesses do Município sujeito à administração da Prefeitura;

Sobre o assunto teceu alguns comentários Wolgran Juqueira Ferreira:

Já se disse, no inciso anterior, o que omissão; mas, não é somente através dela que o prejuízo pode advir. Também pela negligência. Consiste essa em uma das formas culpa, e se denominam in omittendo, o que vale dizer: desleixo ou inação.

Tem o prefeito a obrigação de ficar atento no trato e cuidado com os bens públicos municipais ou sujeitos à administração da prefeitura.

Especifica o texto legal que o prefeito não pode se omitir ou negligenciar na defesa de bens, rendas, direitos ou interesses do município.[xxxvii]

A luz disso, são zelosas as gestões públicas tendentes a uma correta tributação. Uma correta revisão da Planta de Valores Genéricos, revela-se oportuna sempre que houver valorização imobiliária. Legitima-se, sob o aspecto constitucional, por guardar correspondência com o princípio da legalidade decorrente da norma que institui o IPTU.

CONCLUSÃO

Sendo realidade, na maioria dos Municípios, o total desprezo às normas que obrigam a cobrança regular dos tributos de competência destes Entes, circunstância não menos esquecida pelo Tribunal de Contas, mais atento aos gastos públicos do que às receitas públicas, é grave a falta de desvelo com essas receitas próprias, das quais emana grande parte dos recursos necessários aos perseguidos objetivos fundamentais da República (art. 3º, CR).

A negligência na cobrança do IPTU é gravíssima, pois, cuidando-se de importante fonte de receita, tem como maior virtude o fato de tributar o patrimônio e não a atividade econômica[xxxviii], representando grande modelador dos investimentos e inegável instrumento de distribuição de riquezas inibindo a concentração de patrimônio.

Não agir com desprezo às suas receitas próprias do Município é comando que se impõe, mediante correta revisão da Planta de Valores Genéricos promovida por lei, a fim de adequar a base de cálculo do tributo à realidade econômica da cidade, bem como à riqueza de boa parte de sua população. Nobre que aqueles que possuem mais benefícios decorrentes da existência do Estado devam colaborar para que os menos favorecidos possam se elevar na condição de cidadania, por meio de acesso a mais educação, saúde e projetos de promoção social, de modo a materializar o caráter “solidário” de nossa sociedade.

A toda evidência, manter atualizada a Planta de Valores Genéricos do IPTU é uma das melhores iniciativas de caráter público no cumprimento das responsabilidades fiscais e sociais, com escopo de relevar-se o princípio da legalidade.

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Sobre o autor
Renato Luiz Barbosa Brandão

Advogado, Procurador Jurídico do Município de Jataí-Goiás, Pós-graduado em Direito e Direito Processual Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade Federal de Jataí-Goiás, Ex-Professor do Curso de Direito do Centro de Ensino Superior de Jataí, membro da Comissão Especial de Regularização Fundiária do Município de Jataí.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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