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A ideologia do processo civil contemporâneo brasileiro

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02/01/2016 às 21:35
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Referências:

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FARIAS, Márcia Albuquerque Sampaio. (Coordenação) Processo Civil para Provas e Concursos. Processos de Conhecimento, de Execução e Cautelar. Analista e Técnico dos Tribunais e do Ministério Público. Niterói, RJ: Impetus, 2014.

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CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 15ª edição. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008.


Notas

[1] É bom advertir que o fator desconfiança não se limita aos advogados e se expande também aos agentes do Poder Judiciário (juízes) e do Ministério Público. Muitas pessoas simplesmente não acreditam na imparcialidade de tais agentes. Há um agravamento da desconfiança quando os órgãos encarregados de fiscalizar os juízes e os membros do Ministério Público deixam de punir eventuais desvios éticos e jurídicos, além a aberta alusão as hipóteses de corrupção financeira ou política.

[2] Friedrich Carl von Savigny (1779-1861) foi um dos mais respeitados e influentes juristas alemães do século XIX. Tendo sido o maior nome da Escola Histórica do Direito que teve grande influência no

Direito alemão bem como dos países da tradição romano-germânica, especialmente no Direito Civil.

Savigny foi responsável pela criação e desenvolvimento do conceito de relação jurídica e de diversos conceitos relacionados, como o de fato jurídico, tendo seu método histórico influenciado muitos outros movimentos, como a jurisprudência dos conceitos.

A chamada "polêmica Thibaut x Savigny" polarizou a discussão na Alemanha do século XIX, sobre a necessidade e conveniência da formação de um código que sistematizasse um direito civil unificado para todos os Estados Alemães.  Thibaut era filiado à escola jusracionalista e comungava do pensamento de que o homem, pelo exercício da razão e valendo-se de ideias inatas, seria capaz de deduzir princípios e normas de validade universal, o direito natural. Eram contrários à aplicação do direito consuetudinário e do código justinianeu aos germânicos. Assim, Thibaut acreditava que os reinos germânicos deveriam estabelecer uma codificação única do direito civil, nos moldes do Código Napoleônico, de modo a racionalizar e modernizar o direito germânico, permitindo, também, uma futura unificação.

Motivado pelo livro de Thibaut, "Da Necessidade de um Direito Civil Geral para a Alemanha", Savigny, também em 1814, publica a obra "Da Vocação de nosso Tempo para a Legislação e a Jurisprudência".

Nesse escrito, Savigny declara-se contrário à proposta de codificação do direito alemão. Ele acreditava que os costumes do povo seriam a fonte primária do direito e expressão imediata da consciência jurídica coletiva. Enquanto Thibaut acreditava num direito que é anterior ao homem, isto é, ideal e eterno, Savigny destacava seu caráter cultural, produto historicamente construído pelas gerações de cada povo. Savigny, portanto, defendia que o Direito não era revelado ao legislador pela razão, mas que deveria ser extraído do espírito do povo (Volksgeist).

Savigny identifica no direito os três elementos distintos, que combinados dariam corpo à totalidade do fenômeno jurídico. O primeiro seria o elemento popular, político ou consuetudinário, que se constitui pelos costumes. O jurista também denomina esse elemento de direito natural buscando enfatizar que, se há algum direito natural, esse é o que brota do seio das tradições de dada comunidade. O segundo, seria o elemento técnico, composto pelo trabalho dos juristas, os quais ele considera como os mais competentes para conhecer o direito e proporcionar sua evolução gradual pelo exercício da ciência jurídica. O direito que deveria ser estudado, assim, é aquele dos juristas (juristenrecht), isto é, o sistema jurídico desenvolvido na Alemanha a partir do estudo do direito romano e dos costumes.

O terceiro elemento do direito seria o elemento legal, composto pela legislação, que teria função declarativa. Savigny sustenta que o direito se origina da dinâmica entre o primeiro e segundo elementos e que a legislação deveria apenas esclarecer pontos obscuros dos costumes ou questões não pacificadas pela doutrina, sob os quais pairasse incerteza.  Portanto, a legislação, em seu entendimento, não deveria jamais ir contra o espírito do povo e instituir um costume ou princípio que já não existisse na tradição.

Savigny afirma que a codificação promove o engessamento do direito, paralisando-o no tempo, o que dificultaria a atuação das forças históricas e da consciência coletiva para o aprimoramento do ordenamento jurídico: não havia que se falar de um direito saxônico puro, pois o direito romano era elemento constitutivo do direito alemão, assim como não havia como se falar em uma língua pura, isto é, independentemente das influências históricas na formação do espírito do povo que a ela deu origem.

Nesse sentido, Savigny critica a Escola da exegese dizendo que um código, culminação do intelectualismo jurídico, implica fatalmente um colapso da fecundidade jurídica.

[3] Karl Engisch acertadamente concluiu que o conceito de discricionariedade ou poder discricionário é um dos conceitos mais plurissignificativos e mais difíceis da teoria do Direito. E atentemos que a decisão tomada na discricionariedade não é a mesma decisão da teoria decisionista. Na discricionariedade, a decisão é limitada pelo permissivo legal e pelos princípios constitucionais. Além disso, a norma jurídica permite e limita a discricionariedade. Ao passo que na teoria decisionista a atuação do legitimado é ilimitado, porquanto ele é quem cria a própria norma; a decisão não é autorizada pela norma anterior, pois sequer existe norma neste momento.

[4] Na justiça de gabinete se permitia ao monarca corrigir as irregularidades processuais cometidas pelos juízes. Michael Kolhlhaas que é um personagem citado por Rudolf Von Ihering em seu livro " A luta pelo direito" era um homem marcado pelas injustiças. Assim Ihering afirmou que depois que a mais vil e odiosa justiça de gabinete lhe trancou as vias de direito, resolver expressar todo o seu rancor sacando da espada de sua própria justiça particular, e espalhando o medo, a intranquilidade e o terror no espírito dos detentores do poder imperial da época.

A justiça de gabinete é a prevalência do senso comum e teórico dos juristas legalistas sobre o senso comum do cidadão, que, mesmo sem poder, dada sua resignada ignorância do Direito e seu eventual analfabetismo, sabe muito bem o que é a justiça e onde se encontra, e denuncia sua ausência, quando é o seu oposto que se impõe à sua realidade pessoal e circundante.

[5] Demandas repetitivas”, “demandas de massa” ou ainda “causas repetitivas” são termos jurídicos que correspondem a um conjunto significativo de ações judiciais cujo objeto e razão de ajuizamento são comuns entre si. Surgem, na prática, a partir de lesões ou supostas lesões a direitos individuais ou coletivos que atingem uma quantidade considerável de pessoas de maneira idêntica, cujas demandas judiciais não podem ser tuteladas conjuntamente seja por razões legais ou pela preferência de cada um dos ofendidos. Ocorre, por exemplo, com ampla frequência em dissídios individuais homogêneos (diversas ações que visam à tutela de um mesmo direito individual supostamente desrespeitado) derivados de lesão aos direitos do consumidor, assim como em diversas demandas decorrentes de descumprimento de contratos de adesão relativos a grandes instituições.  Há incidência de demandas repetitivas até mesmo entre um particular e o governo, sobretudo nas hipóteses em que um procedimento administrativo não corresponde ao entendimento   predominante das instâncias do Poder Judiciário. No Brasil, por exemplo, há uma constante discussão entre as medidas realizadas pelo INSS e as reformas realizadas pelo Judiciário.  Em pesquisa realizada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC/PR, foi evidenciada uma concentração de feitos envolvendo o sistema de concessão e tomada de crédito, tido como o maior responsável para o progressivo incremento de demandas judiciais de massa no Brasil

[6] Fundada por Hermann Kantorovich (1906, A Luta pela Ciência do Direito), essa doutrina defende — atenção! —para a época — a plena liberdade do juiz no momento de decidir os litígios, podendo, até mesmo, confrontar o que reza a lei. O juiz não estaria lançando mão apenas do seu poder decisório, mas, mais do que isso, a sua função de legislador, seu poder legiferante para encontrar aquilo que ele, juiz, percebe como “o justo”.

[7] Lenio Streck concorda ser possível que um juiz possa deixar de aplicar uma lei ou uma regra jurídica. Mas apenas em seis hipóteses. Fora disso, repristinará coisas serôdias como a Escola do Direito Livre e outros quetais verbies. O permissivo inclui quando se tratar de inconstitucionalidade, quando for o caso de aplicação de critérios de resolução de antinomias; quando aplicar a interpretação conforme à Constituição; quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto; quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto e quando for o caso de deixar de aplicar uma rega em face de um princípio, entendidos estes como normas deontológicas aplicáveis no código lícito-ilícito e não como standards retóricos ou enunciados performativos (tipo princípio da conexão, da afetividade, da eventual ausência de plenário, da rotatividade".

(In: Streck, Lenio. O Brasil revive a Escola do Direito Livre E dá-lhe pedalada na lei"

Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jun-25/senso-incomum-brasil-revive-escola-direito-livre-lhe-pedalada-lei Acesso em 20.11.2015)

[8] É impossível não lembrar de uma antiga canção sob o título "Nada além" de autoria de Custódio Mesquita e Mário Lago... e numa de suas estrofes... a revelação verídica:

Nada além. Nada além de uma ilusão. Chega bem. E é demais para o meu coração. Acreditando em tudo que o amor. Mentindo sempre diz. E vou vivendo assim feliz.  Na ilusão de ser feliz(...) (In: http://www.vagalume.com.br/mario-lago/nada-alem.html).

[9] Luhmann fora inicialmente acusado por Habermas de decisionista, mormente em decorrência da obra "Sociologia do Direito. E, a partir da crítica habermasiana, Luhmann buscou o conceito de autopoiese em Maturana e Varela, assim como o termo "encerramento operativo" e, na tentativa de explicar a unidade do sistema, quando surge a noção de "encerramento operativo".

O dito encerramento estabelece a diferença entre sistema e meio e só se realiza e é possível pelo sistema.  O ponto cardinal desse preceito teórico reside em que o sistema estabelece seus próprios limites, mediantes operações exclusivas (...).

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Em outras palavras, é o sistema quem determina o que é meio e o que é ambiente. Luhmann distingue os sistemas técnicos dos sistemas de sentido. Os primeiros são praticamente fechados a causalidade e somente em determinadas circunstâncias reagem aos estímulos provenientes do meio.

Já os sistemas de sentido têm a particularidade de poder estar referidos ao meio e de reproduzi-lo dentro de si mesmos, sem que tenham de produzir efeitos causais. Para Luhmann (2009), é mediante o encerramento operativo que o sistema observa o ambiente por meio de suas operações internas, adquirindo conhecimento e fazendo com que suas estruturas particulares possam ser construídas e transformadoras destas. Enquanto produz as operações, o sistema não mantém contato direto com o meio; ele apenas o observa e o conhece com de suas operações internas. Lembra que a autopoiese proposta por Luhmann não se prende a categoria vida, haja vista ser muito mais abstrata, porquanto um sistema autopoiético é aquele que, a partir de suas próprias estruturas, se reproduz e se desenvolve, mas jamais poderá suprimir a si próprio. Vem do grego autos que significa a si próprio e poiesis que significa criação e geração.

[10] Alessandro Passerin d'Entrèves (1902-1985) é filósofo antifascista e estudou o direito italiano. Considerado o mais importante pensador do liberalismo italiano no século XX. Foi um dos fundadores da filosofia política italiana

[11] John Rawls (1921-2002) foi professor de filosofia política na Universidade Harvard, foi autor de uma "Teoria da Justiça", Liberalismo Político e O Direito dos Povos. Promoveu a retomada da teoria do contrato social, e propôs a responder de que modo podemos avaliar as instituições sociais: a virtude das instituições sociais consiste no fato de serem justas. Assim, para o doutrinador, uma sociedade bem ordenada compartilha de uma concepção pública de justiça que regula a estrutura básica da sociedade. Com base nesta preocupação, Rawls formulou a teoria da justiça como equidade.  Ao retornar a figura do contrato social como método, não pretendeu fundamentar a obediência ao Estado (como na tradição do contratualismo clássico inspirado em Hobbes, Locke e Rousseau). Vinculou-se propriamente à Kant, ao construtivismo kantiano, trazendo a noção de contrato como recurso para fundamentar um processo de eleição de princípios de justiça.

[12] O problema da cooperação está nas explicações metafísicas que cercam o tema. Afinal, só há processo em jurisdição contenciosa porque há crise, representada por um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida e levado à resolução pelo Judiciário. Cada sujeito assume nele uma diferente função e representa um diferente interesse.

A cooperação proposta no art. 6º do CPC/2015 configura como um limite imposto ao exercício dos direitos processuais, particularmente, ao contraditório. E tal limite não é novidade.

A cooperação promover uma relativa eticização semelhante à que já se obteve no âmbito do direito civil com a consagração das cláusulas gerais como as da boa-fé objetiva e do abuso de direito.

[13] Karl Engisch (1899-1990) jurista alemão, também chamado de Hans Joachim Hirsch, considerado um dos grandes teóricos criminais do século XIX. Fora membro do partido nazista, mas teve atitude crítica e cética. Analisando a decisão na discricionariedade administrativa poderemos traçar um paralelo entre esse instituto e o desicionismo, respeitando, logicamente, as propriedades inerentes a cada elemento. Por essa análise pode esclarecer sua compatibilidade ou incompatibilidade com a teoria decisionista. A possibilidade de reforma da decisão pelo órgão jurisdicional afirmou que ocasionalmente tem-se mesmo pretendido definir decisões discricionárias precisamente como aquelas que não são judicialmente sindicáveis.

A discricionariedade administrativa é a escolha entre opções, segundo os critérios de conveniência e oportunidade da Administração Pública e de acordo com o permissivo legal.

[14] Tal incidente tem particular importância para o entendimento do atual momento da dogmática processualista, em que se pretende a construção de um processo civil que busque a efetivação dos valores de segurança e eficiência e em que o conceito de estabilidade jurídico opera em proveito ao superior interesse dos jurisdicionados. Segundo Alexandre Freitas Câmara trata-se de um incidente que visa minimizar as divergências jurisprudenciais fazendo com que num determinado tribunal se adote sempre a mesma interpretação da lei. Para se evitar diversas interpretações pela mesma norma, acarretando a possibilidade de duas pessoas, com situações idênticas, tenham suas demandas julgadas de forma diversa.

[15] Dennis Lloyd, Barão Lloyd de Hampstead (1915-1992) foi jurista britânico e foi renomado professor da Universidade de Londres. Entre as publicações temos: A ideia da Lei (1964) e Introdução à Jurisprudência (1959).

[16] O “Império do Direito” é o título de uma obra de Ronald Dworkin onde apresenta quatro teses distintas a respeito do desenvolvimento do direito moderno. Ele se insere nos principais debates a respeito da natureza do direito, tanto da perspectiva filosófica como as críticas a Schmitt, Kelsen e Austin, como da perspectiva sociológica com a referência central de Marx Weber.

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Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Gisele. A ideologia do processo civil contemporâneo brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4567, 2 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45508. Acesso em: 23 nov. 2024.

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