Intercessões entre Direito e literatura:uma análise do conceito de culpabilidade através da personagem Capitu, de Machado de Assis

Exibindo página 2 de 2
28/12/2015 às 10:24
Leia nesta página:

5.A concepção de culpabilidade: uma análise jurídica e psicanalítica.

Muito da provável culpa de Capitu se atribui à narração de Bento Santiago, o marido possivelmente traído que conta sua versão dos fatos. Está claro que o intuito do Dom Casmurro é defender-se, provar, ao longo da história, que Capitu é realmente culpada e que seria capaz de traí-lo.

 Desta maneira, o fato de ser Bento o narrador contribui para o mistério de duas maneiras: tanto ele se utiliza de todos os argumentos a que tem alcance para incriminar Capitu, o que pode levar o leitor a julgá-la culpada, como também o leitor pode interpretar seu ponto de vista como exagerado e afetado pelo ciúme, pela paranoia, podendo,  assim,  concluir que as provas apresentadas ao longo da narrativa podem não ser tão irrefutáveis e que talvez Capitu não seja culpada do adultério do qual é acusada.

Diante desse impasse e visto a importância para as intercessões entre o Direito, Literatura ; faz-se a necessidade de analisar a concepção de culpa da personagem Capitu ; adotando uma perspectiva distinta que observa a acepção da culpabilidade para a o Direito, bem como para a psicanalise .

A culpa está presente em todas as culturas; antropólogos, historiadores, cientistas sociais, psicanalistas e juristas, procuram uma concepção adequada para caracterizar tal sentimento ou fenômeno.  A culpa pode ser um sentimento pessoal ou fruto da concepção humana de julgamento do outro , cada indivíduo sente de maneira e proporção especifica, sendo a culpa um conceito abstrato e subjetivo. Segundo Moacyr Scliar (2007, p. 37):

Mas o que é a culpa? Podemos conceituar a culpa como uma acusação ou auto-acusação, por um crime ou uma falta ou ato inadequado, reais ou imaginários. Este conceito tem vários “ou” o que é uma evidência de imprecisão. Mas imprecisão é uma constante neste tema tão antigo quanto conflituoso.

Citando as diferentes abordagens que podem estar relacionadas com o tema, o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa (2012, p. 128) define a palavra culpa apresentando as seguintes concepções:

 1 responsabilidade por dano, mal, desastre causado a outrem 2 falta, delito, crime Ex.: grande é a c. de quem furta 3 atitude ou ausência de atitude de que resulta, por ignorância ou descuido, dano, problema ou desastre para outrem 3.1 Rubrica: termo jurídico. no direito civil, falta contra o dever jurídico, cometida por ação ou omissão e proveniente de inadvertência ou descaso 3.2 Rubrica: termo jurídico. no direito penal, ato voluntário, proveniente de imperícia, imprudência ou negligência, de efeito lesivo ao direito de outrem 4 fato, acontecimento de que resulta um outro fato ruim, nefasto; consequência, efeito Ex.: a inflação é c. da dolarização da economia 5 consciência mais ou menos penosa de ter descumprido uma norma social e/ou um compromisso (afetivo, moral, institucional) assumido livremente 6 Rubrica: psicologia. emoção penosa (de autorrejeição e desajuste social) resultante de um conflito (p.ex., entre impulso, desejo ou fantasia e as normas sociais e individuais) 7 Rubrica: religião. transgressão de caráter religioso e/ou moral; pecado Como podemos perceber, dentre as várias concepções apresentadas acima, encontramos a culpa como falta, omissão, responsabilidade, emoção e transgressão.

Na psicanalise, Freud analisa as “tendências julgadoras e punitivas” (FREUD, 2010, p.263) em personagens da literatura, ao passo que atribuía aos escritores um profundo conhecimento da sociedade e da alma humana. Pensava mesmo que os autores literários estavam muito adiante das pessoas comuns – entre elas cientistas e psicanalistas – porque bebiam em fontes para nós inacessíveis (FREUD, 1973, p.1286).

A culpa para Freud estaria ligada a relação do sujeito com a lei e a sociedade, em que toda uma herança simbólica representaria a culpa para o individuo e para o outro. O sentimento de culpa é sempre entendido, na perspectiva freudiana, como dispõe Gaspar ( 2007) decorrente da renúncia à satisfação passional. Essa renúncia teria origem no medo da perda do amor do Outro de quem o sujeito é dependente. Nesse sentido, a possível culpa que Bentinho incrimina Capitu seria decorrente do seu amor e apego exacerbado.  Nesse sentido,  Lacan ( 1990.p, 418) elenca:

“A inserção do homem no desejo está fadada a uma problemática especial, cujo traço primordial é que ela deve encontrar lugar em alguma coisa que a precede, que é a dialética da demanda, na medida em que a demanda sempre pede alguma coisa que é mais do que a satisfação a que ela apela, e que vai mais, além disso. Daí o caráter problemático e ambíguo do lugar onde se situa o desejo. Esse lugar está sempre para além da demanda, considerando que a demanda almeja a satisfação da necessidade, e no aquém da demanda, na medida em que esta, por ser articulada em termos simbólicos, vai além de todas as satisfações para as quais apela, é demanda de amor que visa ao ser do Outro, que almeja obter do Outro uma presentificação essencial - que o Outro dê o que está além de qualquer satisfação possível, seu próprio ser, que é justamente o que é visado no amor.”

Segundo Freud e Lacan existem uma intrínseca relação entre o afeto dispendido entre o individuo e o outro, com a concepção de culpa por ele aduzida. Assim, possivelmente, a paixão que Bentinho nutria por Capitu seria fator essencial para a atribuição infundada da traição. No amor doentio, além da sua própria satisfação o individuo deseja o Outro ser com exclusividade, mitigando suas relações interpessoais, visando apenas à satisfação pessoal e quase sempre; são acometidos por ciúmes doentios e exacerbados.

No que tange a teoria psicológica e psicanalítica da culpa, critica o alemão Jescheck ( 1981. P, 571) :

A concepção psicológica e psicanalítica da culpabilidade logo se mostrou, sem dúvida, como insuficiente porque não dava respostas às questões de quais relações psíquicas deviam considerar-se relevantes jurídico-penalmente e porque sua presença fundamenta a culpabilidade e sua ausência a exclui. Assim, não poder-se-ia explicar porque ainda quando o autor atuasse dolosamente e, portanto, tenha produzido uma relação psíquica com o resultado, deve negar-se sua culpabilidade se ele é um doente mental ou se agiu em estado de necessidade (§ 35). Tampouco poder-se-ia fundar o conteúdo da culpabilidade da culpa inconsciente com fundamento na concepção psicológica da culpabilidade, já que nela falta precisamente toda relação psíquica com o resultado

Assim fazer uma analise jurídica da concepção, faz-se imperioso. Na sua perspectiva jurídica, o Código Penal Brasileiro não traz definição para a culpabilidade, elevando-a um dos conceitos mais debatidos na teoria do delito. Nesse sentido conceituam Zaffaroni e Pierangeli,( 2006, p. 517 ) “esse conceito é um conceito de caráter normativo, que se funda em que o sujeito podia fazer algo distinto do que fez, e que, nas circunstâncias, lhe era exigível que o fizesse” .

Adotado na atualidade, o conceito normativo da culpabilidade traduz um juízo de reprovação pessoal pela prática de um fato lesivo a um interesse penalmente protegido (GOMES, 2007). Visto que, o adultério não é mais punido criminalmente, mas reprovável na perspectiva social, perante sua acepção jurídica a personagem Capitu seria considerada inocente. No entanto, no que tange à concepção psicanalítica de culpa e sua acepção moral fica a critério do leitor colmatar essa dúvida. 


6.Conclusão

A concepção do Direito evoluiu no tempo de acordo com os fenômenos sociais. Na contemporaneidade, busca-se um estudo jurídico mais humanizado, que leve em consideração os inúmeros fatores formadores de uma realidade social. Com esse intuito, faz-se necessário uma analise holística, em que as diversas faces do conhecimento, como: antropologia, sociologia, história, literatura e psicanálise; são associadas para a aplicação e interpretação do direito material, pois, este representa uma expressão dos anseios humanos.                                                                                       

A ideia central do trabalho foi fomentar o estudo do Direito associado à Literatura, na obra Dom Casmurro, de Machado de Assis. Mostrado a importância da interdisplinariedade como resposta a anseios sociais.  Dissecando o grande enigma da possível traição de Capitu e analisando as concepções distintas do conceito de culpabilidade; em um viés jurídico e psicanalítico. Teria ela cometido o adultério? Ou seria fruto da imaginação de Bentinho a possível traição?

Embora cada uma dessas conclusões possa ser neutralizada por outras propostas ou no livro existentes ou fora do livro, fica a critério do leitor responder tais questionamentos, visto que ele possui a função de grande interprete e julgador na obra. O papel do leitor torna-se indispensável na elucidação do enigma machadiano como o próprio Bentinho observa: “ Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta ou outra casta, não me aflijo nunca”.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Dessa maneira, cabe ao leitor retirar suas próprias conclusões se seria Capitu culpada ou inocente. Nesse aspecto consiste a extrema genialidade de Machado, deixando em aberto se a “dona dos olhos de cigana obliqua e dissimulada” haveria ou não cometido o adultério, permitindo que o leitor adentre ao universo lúdico da literatura.

Assim também ocorre no Direito o leitor da norma é o grande interprete é o seu maior interprete e os juristas devem prezar para que a hermenêutica seja exercida de maneira que leve a justiça e ao bem estar social.  

Diante o exposto, buscou-se realizar uma nova perspectiva de pensar o Direito e temas divergentes existentes nele; como o da culpabilidade. Em que a literatura surge com o papel fundamental de realizar uma reflexão critica, segundo analise de concepções psicanalíticas e literárias , com intuito primordial de repensar a dogmática exacerbada existente no Direito contemporâneo e associar novas formas de racionalizar as ciências jurídicas.


Referencias bibliográficas :

AFOLABI.  Niyi. MACHADO DE ASSIS: UMA TEORIZAÇÃO DE AMBIGÜIDADE. Revista Iberoamericana. Vol. LXVI, Núm. 190, Enero-Marzo 2000.

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Dixon, Paul B. Reversible Readings: Ambiguity in Four Modern Latin American Novels. Alabama: University of Alabama Press, 1985.

VENOSA, Silvio e Salvo. Introdução ao Estudo do Direito. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006.

TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; COPETTI NETO, Alfredo (org.). Direito & literatura: ensaios críticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008

OST, François. O tempo do direito. (Trad: Élcio Fernandes). Bauru: Edusc, 2005.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. (trad: Flávio Paulo Meurer). Petrópolis: Vozes, 1997.

GASPAR, Taís Ribeiro. O sentimento de culpa e a ética em psicanálise. Psyche (São Paulo) v.11 n.20 São Paulo jun. 2007.

GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio.  Direito Penal: parte geral. V. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

JESCHECK, Hans-Henrich. Tratado de Derecho Penal. Parte General, vol. I. Barcelona: Bosch, 1981.

LACAN, J. O Seminário: livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques Alain Miller(M. D. Magno, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Original publicado em 1973).

SILVA, Danyelle Marques Freire da. Dom Casmurro e Capitu : a obra literária que virou minissérie . Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 50-60

ZAFFARONI, Eugenio Raul. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, volume 1: parte geral. 6ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.


Assuntos relacionados
Sobre a autora
Betânia Gusmão Mendes

Advogada sócia do escritório Mota & Gusmão. Graduada em Direito pelas Faculdades Santo Agostinho, Montes Claros- MG.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos