Direitos subjetivos do acusado de tráfico de drogas e substâncias afins

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Este trabalho aborda os direitos subjetivos do acusado de prática de crime de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins.

A sociedade não deve punir.

A sociedade não deve se vingar.

A vingança cabe ao indivíduo, a punição a Deus.

A sociedade está entre os dois.

O castigo está acima dela, a vingança abaixo.

Nada tão grande nem tão pequeno lhe convém.

Não deve punir para vingar-se;

Deve corrigir para melhorar.

                                                                                  Victor Hugo

RESUMO

Este trabalho aborda os direitos subjetivos do acusado de prática de crime de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins, com o intento de se defender a garantia constitucional da liberdade do acusado até a comprovação da materialidade e autoria do crime.

Palavras-Chave: Direitos subjetivos. Prática de crime de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins.

ABSTRACT

This paper adresses the legal rights of the accused to practice illicit trafficking crime of narcotic substances or similar drugs with the intente to defend the constitutional guarantee of freedom of the accused to prove tion of materiality and authorship of the crime.

Keywords: subjective rights. Commission of a crime of illicit trafficking in narcotic substances or subs-related drugs.

INTRODUÇÃO

                   O uso de plantas, com efeitos alucinógenos, encontra-se em relatos históricos de mais de cinco mil anos. Os primeiros registros a respeito do ópio datam de mais de cinquenta e cinco séculos. A maconha era conhecida e utilizada no Egito e Mesopotâmia havia quatro mil anos. Drogas intoxicantes eram usadas nos bacanais de Dioniso e nos festins de César, na antiga Roma. Os espanhóis, quando chegaram ao México, ali já encontraram a veneração dos astecas ao cacto peiote, do qual se estrai a mescalina. Na América do Sul, os incas tinham plena consciência dos perigos da coca.

                   O problema das drogas, entretanto, cresceu de forma assustadora nos últimos duzentos anos, especialmente após o isolamento dos compostos ativos do ópio, com o quais se obtém a morfina e, desta, a heroína. Outras drogas sintéticas apareceram no século XX, em especial o LSD e, mais recentemente, o ecstasy. O uso da cocaína arraiga-se, alastra-se, aterrorizando a sociedade. Atrás dela, o rastro da violência.

                   O uso inadequado dessas substâncias entorpecentes preocupa não só nosso país, mas qualquer nação civilizada do mundo. Dele decorre a deterioração pessoal, os problemas de saúde, a criminalidade.

                   A luta contra os tóxicos vem requerendo não só a implementação de mecanismos de repressão e repulsa ao tráfico, mas, especialmente, ações visando à eliminação dos fatores que levam à toxicomania.

                   Não é problema fácil de ser resolvido. Daí o legislador voltar-se para a elaboração de leis que visam à prevenção, tratamento e repressão dos tóxicos.

                   Vicente Greco Filho lembrou que a antiga Lei Antitóxicos (Lei Federal n.º 6.368, de 21 de outubro de 1976), “procura ressaltar a importância da educação e da conscientização geral na luta contra os tóxicos, único instrumento realmente válido para se obter resultado no combate ao vício”.[1]  A Lei Federal n.º 11.343/2006, vai na mesma direção.

                   Os constituintes de 1988 equipararam o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes e drogas afins ao crime hediondo, restringindo direitos dos acusados de tais crimes. E, em 1990, pela Lei de Crimes Hediondos, os legisladores infraconstitucionais impuseram novas restrições.

                   O ius postulandi, entretanto, não é atividade desenfreada. É algo “que se submete a um diligente controle com vistas às garantias (formais e materiais) devidas ao direito de liberdade do cidadão”.[2] O acusado de qualquer crime terá, sempre, garantias penais e processuais penais, diante do Estado repressor.

                   A partir deste trabalho, pretendemos discutir alguns direitos subjetivos do acusado de crime de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins, iniciando pelo direito à liberdade provisória. Em trabalho futuro, abordaremos o direito de apelar em liberdade, a pena alternativa, a suspensão condicional da pena (sursis) e o livramento condicional.

2 DIREITO À LIBERDADE PROVISÓRIA EM CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES E DROGAS AFINS

                   É a Lei Federal n.º 11.343/2006 que dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica.

                   Do capítulo II – Dos crimes –, interessa-nos, a princípio, no presente estudo, os artigos 33 (caput e § 1º), 34 e 36:

Art. 33.  Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

§ 1º  Nas mesmas penas incorre quem:

I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;

II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;

III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.

Art. 34.  Fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a qualquer título, possuir, guardar ou fornecer, ainda que gratuitamente, maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de drogas, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 1.200 (mil e duzentos) a 2.000 (dois mil) dias-multa.

Art. 36.  Financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos, e pagamento de 1.500 (mil e quinhentos) a 4.000 (quatro mil) dias-multa.

            Nestes dispositivos se encontram os “verbos”, podemos dizer ações, que repercutem juridicamente quanto aos entorpecentes.

3 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A LEI DE CRIMES HEDIONDOS

                   Nossos constituintes de 1988, vislumbrando formas de coibir os crimes de maior repercussão e que causam repulsa à sociedade, sinalizaram:

A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem. (Art. 5º, inciso XLIII).

                   O legislador ordinário – pressionado pela opinião pública e empurrado pela mídia, que via no Direito Penal a responsabilidade pelas desilusões e fracassos da sociedade que exigia, diante de uma onda desenfreada de sequestros, garantias contra a criminalidade exacerbada –, observando a “sinalização” do inciso XLIII do artigo 5.º da Constituição Federal, definiu, no artigo 1.º da Lei Federal n.º 8.072/1990, os crimes hediondos e trouxe outras determinações. Na redação original (artigo 2º, inciso II), vedava-se a concessão de liberdade provisória aos acusados de prática de crime hediondo ou de outro a ele equiparado. Mais tarde, a Lei Federal n.º 11.464/2007 excluiu a vedação à liberdade provisória.

                   A Constituição Federal e a Lei de Crimes Hediondos referem-se a tráfico ilícito de substâncias entorpecentes e drogas afins. Ao analisar a matéria, Alberto Silva Franco lembrou que na legislação penal brasileira não há nenhuma figura típica perfeitamente estruturada, que atenda pelo nomen iuris de tráfico ilícito de entorpecentes.

                   A Lei Antitóxicos contém explícitas hipóteses de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, em relação às quais devem ter incidência os dispositivos da Lei de Crimes Hediondos[3]. Há, porém, que se notar o fato de que não são todos os comportamentos descritos nos artigos 33, 34 e 36 da Lei Federal n.º 11.343/2006 que se enquadram no conceito caracterizado pelo substantivo tráfico e adjetivado pelo vocábulo ilícito. “A área de significado da palavra tráfico está vinculada à idéia de comércio, mercancia, trato mercantil, negócio e ainda de negócio fraudulento, indecoroso[4]. Dessa forma, é forçoso entender que o uso indevido ou mesmo o uso próprio não se encaixam na ideia de tráfico ilícito. Consequentemente, “não há cuidar, em relação às diferentes modalidades de uso (semear para uso próprio, induzir, instigar ou auxiliar alguém no uso de entorpecente, utilizar local para uso indevido, contribuir para incentivar ou difundir o uso indevido etc.), da aplicação da Lei 8.072/90.” Crimes hediondos: anotações sistemáticas à lei 8.072/90. 4.ª ed., Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2.000, p. 131.

                        Assim, considerando a inexistência de uma figura típica perfeitamente estruturada, definidora do que vem a ser tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e em se observando o caráter multifacetado que as condutas descritas nos arts. 33, 34 e 36 da Lei Federal n.º 11.343/2006 podem assumir, recomenda-se e chama-se a atenção da autoridade policial, do Promotor de Justiça e, principalmente, do Juiz, para que atuem com a máxima cautela no enquadramento de hipóteses da Lei Antitóxicos em relação à Lei de Crimes Hediondos.

4 PRISÃO CAUTELAR (FLAGRANTE E PREVENTIVA)

                        Previstos em lei processual penal, existem diversos tipos de prisão, sendo de interesse direto ao nosso estudo as prisões em flagrante e preventiva.

                        As normas legais que disciplinam a prisão em flagrante e a prisão preventiva, ambas de natureza cautelar, encontram legitimidade jurídico-constitucional em regra inscrita na própria Constituição Federal, que admite o instituto da cautelar penal através do Art. 5.º, LXI, da CF: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.

                        De natureza processual, a prisão cautelar visa a assegurar o desenvolvimento normal e eficaz do processo. É providência excepcional e de caráter instrumental que se acomoda, com fidelidade, ao princípio constitucional da presunção de inocência[5]. Este princípio não revogou a prisão preventiva, que não leva em conta a culpabilidade do réu, mas sim atende à finalidade do processo, como medida necessária à garantia da ordem pública, para facilitar a colheita de prova (conveniência da instrução criminal) e assegurar a aplicação da lei penal, conforme disciplinado no art. 312 do Código de Processo Penal.

                        Entende José Frederico Marques que não se pode negar “que a prisão cautelar ‘por conveniência da instrução criminal’ e ‘para asseguramento da aplicação da lei penal’ se apresenta, numa perspectiva inicial, em harmonia com a Constituição”, pois “a função das providências cautelares consistia precisamente em assegurar os meios ou os resultados do processo”.[6] 

                        Vicente Greco Filho tem entendimento semelhante. Ensina:

“A presunção de inocência ali instituída não é incompatível com a prisão processual em flagrante, preventiva, pronúncia e sentença condenatória recorrível de natureza cautelar. Em nenhum país do mundo que adota a mesma presunção pensou-se em considerar revogada a prisão processual, que não induz presunção de culpa, mas necessidade de ordem pública”[7]. (Destacamos).

                        Alberto Silva Franco, no entanto, levanta a questão da prisão cautelar que tem, por parâmetro, a garantia da ordem pública. Diz ele que a prisão cautelar, nesse caso, impõe-se quando o fato criminoso executado provoca clamor público, em virtude de sua gravidade ou em razão da periculosidade do agente. Nessa situação e em outras assemelhadas, diz ele, “a medida cautelar não visa dar tutela ao processo a que está instrumentalmente vinculado, mas, sim, ‘acautelar o meio social e a própria credibilidade da Justiça’.”[8] Assim, a medida de coerção perderia seu caráter de providência cautelar e de instrumento destinado ao desenvolvimento normal e eficaz do processo para se constituir em verdadeira medida de segurança. Em tal situação, a prisão visando à garantia da ordem pública assumiria um perfil político-ideológico, “transformando-se na viga mestra da corrente criminológica ‘da lei e da ordem’, que objetiva atender, de maneira exclusiva, às exigências da defesa social”[9]. Desta forma, entraria em choque com o princípio constitucional da presunção de inocência:

“O conceito de ‘garantia da ordem pública’, enquanto contiver a definição, a dimensão e o espaço conferidos, na atualidade, por algumas manifestações jurisprudenciais e doutrinárias, lesionará o princípio da presunção da inocência e não poderá servir de suporte à prisão cautelar, pois esta deixará de estar, com exclusividade, a serviço de finalidades intraprocessuais para tornar-se uma medida de caráter penal.”[10]

5 REQUSITOS PARA A EFETIVAÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR

5.1 Critério da necessidade

                        Considerando que, no Estado de Direito, a liberdade é prerrogativa fundamental do cidadão e que os réus têm o direito de livres aguardarem o julgamento dos seus processos, o critério da necessidade é imprescindível à prisão do acusado de crime de tráfico de drogas. A hediondez ou a crueldade do crime não justificaria a decretação de prisão preventiva, desde que milita em favor do acusado a presunção de inocência. A conveniência da instrução criminal e a garantia da ordem pública somente dariam ensejo à prisão cautelar do acusado quando demonstrada cabalmente a sua necessidade, com base em fatos concretos. Simples conjecturas e prejulgamentos seriam inaceitáveis. É desta forma como pensa, de forma clara e perfeita, o Desembargador Márcio Bártoli:

Excepcionalmente, cabe a custódia preventiva, sempre inspirada e tendo como base um juízo de necessidade. Torna-se necessária a imposição dessa medida de coerção pessoal processual, como uma providência de segurança; como garantia da aplicação da lei ou para assegurar a colheita de boa prova processual. No caso em exame, a decisão tem como fundamento três premissas: 1) a impossibilidade de concessão de qualquer benefício aos infratores de fatos descritos na lei antitóxicos; 2) a qualificação legal do crime praticado como hediondo e 3) a garantia da ordem pública. Com referência à primeira, verifica-se que se parte de uma suposição interpretada erroneamente. Pode o autor do crime definido na lei especial não ter benefício quanto ao regime de cumprimento de pena, sem que isto indique a necessidade de imposição de prisão preventiva. Essa assertiva pressupõe um odioso e inadmissível pré-julgamento da conduta dos pacientes, além do que se a hipótese for analisada em conjunto ao teor da Segunda proposição – obrigatoriedade de decretação da custódia por ser o crime hediondo – determinará a conclusão de que está de volta a abominada prisão preventiva obrigatória, medida drástica de privação de liberdade, em boa hora afastada da legislação processual penal. Por outro lado, não é porque determinada infração foi considerada pela lei como crime hediondo que compulsoriamente se imporá a medida. Como antes mencionado, a preventiva deve sempre ter como fundamento uma razão de necessidade e não uma simples, e até redundante, rotulação (hediondo), até porque toda ação considerada pelo legislador como transgressão ao conjunto de normas também não deixa de ser repugnante. A garantia da ordem pública, como o terceiro fundamento da prisão processual, não encontra apoio nos elementos fáticos coligidos no decorrer do processo. Tal requisito não pode estar calcado em mera suposição de que a liberdade dos pacientes ensejará a que se reiterem delitos, com prejuízo da boa ordem social. E não se pode privar alguém de sua liberdade por causa de mera suposição; com base em mera eventualidade de que delitos futuros possam ocorrer, por mera possibilidade; mas, ao contrário, só por fundada probabilidade, o que não se verifica no caso em tela”.[11] (TJSP – HC 99.852, voto vencido).

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                        Assim, a prisão cautelar é necessária como providência de segurança, como garantia da aplicação da lei ou para assegurar a colheita de boa prova processual. Em suma, para facilitar ou possibilitar a instrução criminal e a aplicação de lei penal.

                        O Superior Tribunal de Justiça também já se manifestou sobre o assunto, oportunidade em que o Ministro e relator Fernando Gonçalves ressaltou que o fato de tratar-se de crime hediondo, isoladamente, não é impeditivo da liberdade provisória, haja vista princípios constitucionais regentes da matéria (liberdade provisória, presunção de inocência e obrigatoriedade de fundamentação das decisões). “Faz-se mister, então, que, ao lado da configuração idealizada pela Lei 8.072/90, seja demonstrada também a necessidade da prisão, in casu evidenciada para assegurar a aplicação da lei penal”.[12]

                        Vejamos, nesse sentido e em casos de tráfico de entorpecentes, como tem se posicionado aquele Superior Tribunal de Justiça:

“CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS.

Prisão preventiva que invoca abstratamente motivos como ‘ordem pública’, ‘credibilidade da Justiça’, ‘aplicação da lei penal’ e ‘lei de crimes hediondos’ fica no plano puramente teorético e não desce ao concreto. A Constituição Federal de 1988, por ter consagrado expressamente os princípios da dignidade da pessoa humana, da presunção da inocência e da fundamentação dos atos judiciais, pede fique demonstrada concretamente que a prisão processual é imprescindível, necessária. Recurso ordinário conhecido e provido.”[13] (Destacamos).

                        No mesmo sentido é o pensamento de Luiz Vicente Cernicchiaro: “A prisão preventiva porque, claramente, restringe o exercício do direito de liberdade, tem, como pressuposto, a necessidade da constrição”. Entende ele que, se assim não fosse, “substancialmente, representaria antecipação de eventual condenação criminal.”[14]

                        O fato de a prisão ter sido fruto de flagrante não é suficiente, por si só, para que se mantenha o acusado na prisão. Da mesma forma que na prisão preventiva, na prisão em flagrante a necessidade da custódia tem que ficar comprovada, como bem nos ensina o Desembargador e Relator Luiz Betanho (Tribunal de Justiça de São Paulo):

A prisão cautelar, no estado atual do ordenamento jurídico brasileiro, é medida excepcional que deve ser adotada apenas quando estritamente necessária, seja para a garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, desde que haja prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria. Justamente por isso é que o juiz, ao examinar a comunicação da prisão em flagrante ou requerimento de prisão preventiva, deve examinar com cautela se estão presentes aqueles motivos autorizadores da custódia do cidadão, sem decisão condenatória transitada em julgado, porque ele é presumido não-culpado, por preceito constitucional (art. 5.º, inciso LVII). O próprio Código de Processo Penal, na redação vigente desde 1977, pela Lei 6.416, estabeleceu (art. 310, parágrafo único) a obrigação de se verificar a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, quando o acusado é preso em flagrante. Quer dizer que a simples prisão em flagrante não basta, por si, para que se considere legal a manutenção do acusado no cárcere, pois a prisão pode ser desnecessária, no caso concreto”.[15] (Destacamos).

5.2 Gravidade do delito insuficiente à prisão cautelar

                        A gravidade do crime, em especial quando se trata de crime hediondo, tem sido apontada por muitos operadores do Direito como suficiente à decretação da prisão preventiva, ou mesmo à manutenção da prisão em flagrante. Tais posicionamentos, entretanto, fogem por completo ao real objetivo da cautelar, que é o desenvolvimento regular do processo.

                        A custódia cautelar não pode, como já vimos, ser efetivada sem a devida necessidade. Se assim ocorresse, se fosse decretada simplesmente em face da gravidade do delito, estaríamos diante de punição sem processo, ferido o princípio do due process of law. Nesse sentido, podemos colher sábia lição do ex-Ministro Sepúlveda Pertence:

“A fundamentação da prisão preventiva – além da prova da existência do crime e dos indícios suficientes de autoria – há de indicar a adequação dos fatos concretos à norma abstrata que a autoriza como garantia da ordem pública, por conveniência da instrução ou para assegurar a aplicação da lei penal (CPP, arts. 312 e 315). A gravidade do crime imputado, um dos malsinados ‘crimes hediondos’ (Lei 8.072/90), não basta à justificação da prisão preventiva, que tem interesse cautelar, no interesse do desenvolvimento e do resultado do processo e só se legitima quando a tanto se mostrar necessária: não serve à prisão preventiva, nem a Constituição permitiria que para isso fosse utilizado, a punir sem processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual, entretanto, ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’ (CF, art. 5.º, LVII)”. [16]

5. 3 Ordem pública como fundamentação

                        A prisão preventiva, por afetar o status libertatis do cidadão, impõe a obediência ao princípio da legalidade, sendo imprescindível a indicação do fato que recomenda a restrição ao exercício do direito de liberdade, quer seja por conveniência da instrução criminal, para assegurar a aplicação da lei penal ou para assegurar a ordem pública. Quanto a esta última, no particular, compreende a preservação da sociedade contra eventual repetição do delito pelo mesmo agente e, de acordo com Luiz Vicente Cernicchiaro, também é cabível quando o bem jurídico “é afetado por conduta que ocasione impacto social, por sua extensão ou outra circunstância. Constitui resposta à vilania do comportamento do agente, havendo probabilidade da autoria e probabilidade de condenação”.[17]    

                        Defende-se, ainda, fundamentação baseada na garantia da ordem pública, nos casos em que o crime repercute de forma tal a por o acusado em risco de linchamento. É como pode ser visto em julgamento do STJ, cujo relator foi o Min. Fernando Gonçalves:

“A inaudita brutalidade de que se revestiu o crime, importando, inclusive, na ameaça de linchamento, justifica, como lançado pelo juiz a quo, o decreto de prisão preventiva, porquanto o Poder Público tem o dever de assegurar a integridade do acusado, como meio de garantir a aplicação de lei penal e, também, a manutenção da ordem pública”.[18]

5.4 Necessidade de fundamentação

                        É por demais reconhecido que o tráfico de drogas, como também aqueles configurados como hediondos, é crime abjeto e deve ser reprimido à altura de sua gravidade. A decretação da custódia preventiva, ou a manutenção da prisão em flagrante, entretanto, como já se viu, não pode ser sustentada face apenas à gravidade do delito. A prisão cautelar precisa sempre de motivação, de fundamentação. Não basta apenas mencionar diplomas legais, é preciso fundamentar. O magistrado não pode jamais limitar-se a enumerar os artigos e pressupostos do Código de Processo Penal, mas está obrigado pela Constituição Federal (art. 93) a fundamentar sua decisão, em especial quando está em jogo o status libertatis de um indivíduo. A exigência de fundamentação, pelo nosso ordenamento jurídico, visa à garantia do cidadão contra eventuais excessos do Estado-juiz.

                        Vejamos a posição do Min. Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça:

“RHC. ENTORPECENTES. FLAGRANTE. NULIDADE DO AUTO. IMPROPRIEDADE DO WRIT. PRISÃO CAUTELAR. AUSÊNCIA DE CONCRETA FUNDAMENTAÇÃO. NECESSIDADE DA MEDIDA NÃO-DEMONSTRADA. ORDEM CONCEDIDA.

I. O writ é meio impróprio para a apreciação de alegações relativas à eventual nulidade do auto de prisão em flagrante, devido a ofensas à integridade corporal da paciente, que teriam sido praticadas por policiais, mas que não foram prontamente evidenciadas.

II. Exige-se concreta motivação ao óbice à liberdade provisória de paciente reconhecidamente primária e sem maus antecedentes, mesmo em sede de delitos hediondos, não bastando a simples alusão à vedação do art. 2º, inc. II, da Lei nº 8.072/90.

III. Ordem concedida para revogar a prisão cautelar efetivada contra SILLEY CORREA DE SOUZA, determinando a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver presa, sem prejuízo de que o Julgador, com base em fundamentação concreta, venha a decretar novamente a custódia”.[19]

                        Também o Supremo Tribunal Federal já se manifestou na mesma direção, como se pode ver no julgamento do HC 68.530-7-DF, em que foi relator o Min. Celso de Mello:

“O ordenamento jurídico brasileiro, ao tornar a exigência de fundamentação das decisões judiciais um elemento imprescindível e essencial à válida configuração dos atos sentenciais, refletiu, em favor dos indivíduos, uma poderosa garantia contra eventuais excessos do Estado-juiz, e impôs, como natural derivação desse dever, um fator de clara limitação dos poderes deferidos a magistrados e Tribunais. Os juízes e Tribunais estão, ainda que se cuide do exercício de mera faculdade processual, sujeitos expressamente ao dever de motivação dos atos constritivos do status libertatis que pratiquem no desempenho de seu ofício. A conservação de um homem na prisão requer mais do que simples pronunciamento jurisprudencial. A restrição ao estado de liberdade impõe ato decisório suficientemente fundamentado, que encontra suporte em fatos concretos.”[20]

                        É extremamente importante o entendimento do que é e como deve ser feita a fundamentação. Forçoso entender, neste aspecto, a necessidade de indicar os fatos (e não meras conjecturas) que levam o magistrado a tomar a decisão de restringir a liberdade do cidadão. Assim, por exemplo, garante-se a ordem pública, com a custódia, quando se colhe, pela prova produzida, que o acusado vem embaraçando e atormentando a Justiça; que apresenta uma vida eivada de transgressões à lei; que é habituado ao crime e arredio à vida em sociedade. Em sendo apurados esses fatos, é presumível que a liberdade do acusado levará à concretização de novos delitos e, consequentemente, ao comprometimento da ordem pública. A aplicação da lei penal pode ser arguida quando circunstâncias e fatos indicarem não existir garantia suficiente à administração da justiça. Nestes aspectos, é o Desembargador Márcio Bártoli (em voto vendido), quem ensina com maestria:

“A decisão, por ser carente de motivação e por não conter fundamentação nos elementos de prova coligidos na fase de inquérito, não pode subsistir. O despacho contém apenas expressões genéricas, como, por exemplo, gravidade do fato, periculosidade do agente, e refere-se a alguns dos requisitos da prisão preventiva – garantia da ordem pública e asseguração da aplicação da lei pena –, também sem indicá-los nos dados probantes, tornando-os, apenas, mera e simples possibilidade. A gravidade de um fato penal não faz presumir, por si só, a periculosidade do agente. Toda ação que o legislador definiu, no Estatuto Penal, como proibida, por atentar contra bem jurídico considerado valioso, é grave, e nem todo fato grave, de per si, revela a periculosidade do agente e determina a imposição dessa medida de coerção à liberdade. A avaliação da periculosidade do agente não pode ser presumida pela prática de uma ação criminosa grave. Depende, em verdade, da análise de vários fatores, como a sua personalidade, os seus antecedentes e os motivos e circunstâncias do crime. Análise, repita-se, sempre conjugada à prova obtida na fase de inquérito. Garante-se a ordem pública, com a decretação de uma prisão preventiva, quando se apura, pela prova produzida, que o acusado é pessoa que se mostra como constante e embaraçoso tormento à ação da justiça, porque apresenta uma vida pontilhada de transgressões à lei, revelando sensível e habitual orientação para o crime e inaptidão à vida em sociedade. Diante da comprovação desses fatos no processo é provável e forçoso concluir que a sua liberdade ensejará a reiteração de delitos, comprometendo a boa ordem social que se pretende. Assegura-se a aplicação da lei penal quando circunstâncias indicarem não existir garantia suficiente à administração da justiça, sendo de toda conveniência a decretação da excepcional medida como antecipação da providência final. Em suma, a decretação de prisão preventiva não é proibida nem foi restringida. O que se exige é que o Juiz fundamente, com os elementos do processo, a necessidade de sua imposição (...)”.[21]

E se não está perfeitamente configurada a classificação jurídica do fato delituoso? E quando há dúvida se o ilícito praticado foi tráfico ou uso de drogas? Em tais casos, a dúvida deve favorecer ao réu (in dubio pro reu), especialmente se ele não esteve envolvido anteriormente com o tráfico de substâncias entorpecentes. Nesse sentido, vemos:

“Se há séria dúvida quanto ao acerto da classificação jurídica dos fatos, se é caso de ‘trazer consigo’ para tráfico, ou para mero uso da droga, tem-se que tal situação favorece ao réu, sem antecedentes criminais, justificando-se possa acompanhar a ação penal em liberdade”.[22]

6 REVOGAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA OU CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA?

                        Durante o transcorrer de um processo em que se apura a prática de um crime de tráfico de substância entorpecente, ou mesmo de um crime hediondo, o juiz, observando a necessidade, como já se viu, poderá decretar a prisão preventiva. Em sendo decretada, poderá o Juiz conceder liberdade provisória ou cabe revogá-la, caso desapareçam os motivos que levaram à decretação da prisão?

                        Alguns operadores do Direito entendem que, ocorrendo atraso na instrução criminal sem culpa da defesa ou afastados os motivos que deram ensejo à fundamentação da decretação da cautelar, não cabe a liberdade provisória, mas sim a revogação da prisão preventiva. É como podemos perceber nos seguintes julgados:

“É possível a revogação de prisão preventiva, decretada em processo que se apura a prática de crimes hediondos, ante o excesso de prazo na instrução criminal, não causado pelos acusados.”[23]

                        Vicente Amêndola Neto afirma que, estando o acusado preso e cessados os motivos que o levaram à prisão preventiva, não cabe, em tal caso, a liberdade provisória, mas o sim a revogação da medida cautelar, o que pode se dar de ofício ou mediante pedido de reconsideração. Revogada a prisão, “o indiciado ou acusado será liberado sem que lhe seja imposta nenhuma obrigação, ressalvadas, obviamente, as decorrentes de sua condição no inquérito ou processo”.[24]

                        Julio Fabbrini Mirabete, por sua vez, diz que a liberdade provisória não se confunde “com o relaxamento da prisão em flagrante, onde se segue o preceito do art. 5.º, LXV, da CF, de que ‘a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária’ e que se limita às situações de vícios de forma e substância na autuação e que nunca acarreta ao acusado deveres e obrigações”. 

                        A questão, entretanto, parece-nos não ter maior importância pois, na prática, uma e outra medida devolvem o status libertatis ao acusado. Isto é o que importa.  

6.1 A liberdade provisória face à lei de crimes hediondos e a Constituição Federal

                        É ponto pacífico na doutrina e na jurisprudência que, demonstrada a necessidade da prisão cautelar, atendidos os requisitos da lei, não há que o se questionar: é perfeitamente cabível e constitucional a privação da liberdade do acusado de crime de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes e drogas afins. Isso não impedia que a liberdade provisória, com ou sem fiança, constituísse, no Código de Processo Penal brasileiro, “um direito subjetivo processual do cidadão, despojado de sua liberdade”, e representasse, “como o reverso de uma moeda, a contra face das medidas de cautela da prisão preventiva e da prisão em flagrante.”[25]

                        Com o disposto no art. 2.º, II, da Lei Federal n.º 8.072/1990 (redação original) os crimes hediondos, a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo tornaram-se insuscetíveis de liberdade provisória. O dispositivo veio seco, duro, forte; calou-se sobre o aspecto da necessidade e demais requisitos legais. Vedou, enfim, pura e simplesmente, de maneira absoluta, ainda que em relação a certos e determinados delitos, a possibilidade de se conceder liberdade provisória aos acusados de prática de tais crimes. Entretanto, o legislador, com a Lei Federal n.º 11.464/2007, retirou do citado inciso a expressão “liberdade provisória”, liberando sua concessão. E o fez corretamente. A prevalecer a privação da liberdade provisória, teríamos uma excrescência jurídica: o acusando preenchendo os requisitos exigidos em lei para a obtenção da liberdade provisória; havendo nos autos indícios suficientes de sua inocência, quer seja pela atipicidade do fato, pela antijuridicidade de sua conduta, pela ausência de sua culpabilidade ou qualquer outro fator que justifique a sua libertação, ainda assim ele ficaria custodiado, o que é inadmissível.

6.2 Liberdade provisória e dignidade da pessoa humana

                        A dignidade da pessoa humana é o suporte de todos os direitos fundamentais consagrados na nossa Carta Magna. Essa dignidade é brutalmente afrontada quando se veda o direito fundamental à liberdade provisória, ainda quando a prisão é desnecessária. A privação não necessária da liberdade individual significa uma pena precipitada e, como tal, ofende a dignidade da pessoa atingida. Trata-se de arbítrio que deve ser combatido.

6.3 Princípio da liberdade provisória

                        O inciso LXVI, do art. 5.º da Constituição Federal, expressa o princípio constitucional do direito à liberdade provisória: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”. Tal direito tornou-se imediata e plenamente aplicável a partir da promulgação da nossa Carta Magna, independentemente de qualquer lei intermediadora. Segundo nos ensina Alberto Silva Franco,

“Pouco importa que o texto constitucional, referindo-se à liberdade provisória, aluda à cláusula ‘quando a lei admitir’. Isto não significa, à evidência, que a Constituição Federal ao referir-se à mencionada cláusula tivesse autorizado o legislador ordinário a proibir, de forma absoluta, ou mesmo em relação a certos e determinados delitos, a liberdade provisória. Tal entendimento conduziria a lei infraconstitucional a uma posição diametralmente oposta ao direito fundamental consagrado pelo legislador constituinte e em contraste com outros direitos fundamentais correlatos. O poder que o legislador ordinário tem ao seu alcance, quer lhe seja atribuído expressamente ou implicitamente, não pode englobar, em si, um poder de disposição. O reconhecimento desta função ao legislador não pode interpretar-se como colocando-o numa situação de preponderância em face da Constituição”.[26]

                        Conforme esclarece Vieira de Andrade, o poder do legislador ordinário é vinculado, pois “não lhe é possível afectar ou modificar o conteúdo do direito fundamental, sob pena de se inverter a ordem constitucional das coisas”.[27]

                        João José Leal expressa o entendimento de que, hoje,

“diante da lei processual e da própria Constituição Federal, é direito subjetivo do cidadão preservar sua liberdade, mesmo se preso em flagrante por crime inafiançável. Basta que, no caso concreto, a prisão preventiva não possa ser decretada por falta de elemento essencial à sua subsistência jurídica: a necessariedade. O princípio fundamental é o de que ninguém será submetido à prisão provisória (prisão decorrente de flagrante ou de decreto judicial preventivo) se a custódia cautelar não estiver devidamente justificada pela extrema  necessidade do caso concreto (...).”[28]

                        Desta forma, há que se entender que, se o acusado atende às exigências da lei, a liberdade é um direito, antes de ser um simples benefício a critério exclusivo do magistrado.

                        Observe-se, entretanto, que o princípio constitucional do direito à liberdade provisória não impede, como já vimos, a prisão, enquanto cautelar. Esta, presentes os seus pressupostos de aplicabilidade, pode e deve ser decretada.

                        O Desembargador Márcio Bártoli (TJSP), ao relatar o HC 105.484-3 (RT 671/323), assim defendeu o direito à liberdade provisória:

“A Magna Carta consagra como direito fundamental o princípio da liberdade provisória, ao declarar que ‘ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança’, segundo a disposição constante no inc. LXVI do art. 5.º. Se a Carta homenageia o princípio da liberdade provisória dos autores de qualquer delito, uma lei ordinária não pode restringir esse direito. Diante desse texto, hoje o princípio da liberdade provisória é a regra e a prisão cautelar a exceção. (...) É por isso que, ante as flagrantes violações ao texto constitucional e considerando que toda prisão processual cautelar deve estar adstrita a um juízo de necessariedade, que não pode ser presumido por lei, torna-se possível a concessão de liberdade provisória, repita-se, direito fundamental constitucional, aos autores dos denominados crimes hediondos e de tráfico ilícito de entorpecentes, se não houver nos autos, comprovadamente, a hipótese de necessariedade da decretação de prisão preventiva. Esse juízo de necessariedade é decorrente da excepcionalidade da prisão cautelar, diante do texto constitucional da consagração da liberdade provisória”.[29]

6.4 Princípio do devido processo legal

                        No inciso LIV, do art. 5.º, da Constituição Federal, encontramos positivado o princípio constitucional do devido processo legal (due process of law): “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

                        A não concessão da liberdade provisória sem a presença dos requisitos da prisão cautelar vem de encontro a esse princípio. Primeiro porque, sem finalidade cautelar, antecipa a pena sem o devido processo legal, como bem observa Alberto Silva Franco: “prisão preventiva ou prisão em flagrante, despojadas de sua finalidade cautelar, que se fundamenta na necessidade de uma ou de outra dessas medidas de coerção, significa pena aplicada para atender exigências de defesa social, ou para fazer face ao clamor da sociedade, ou para impedir a prática de delitos, ou ainda para fins de exemplaridade”.[30] Em tais situações, as medidas cautelares estariam dotadas de carga aflitiva imediata, verdadeira antecipação da pena, sem observância do devido processo legal.

6.5 Princípio da presunção de inocência

                        O inciso LVII, do art. 5.º, da Constituição Federal, encerra o princípio constitucional da presunção de inocência: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A insuscetibilidade de liberdade provisória atenta contra esse princípio uma vez que faz recair sobre o acusado um juízo de culpabilidade e de periculosidade, além de antecipar uma pena para alguém que ainda não foi condenado. É assim como vê o Desembargador Márcio Bártoli, do Tribunal de Justiça de São Paulo:

“Em primeiro lugar porque emite um forte e pesado juízo de culpabilidade e periculosidade sobre o agente autor dos crimes definidos na lei. Em segundo lugar porque, como antes mencionado, ocasiona inegavelmente uma antecipação da pena, que constitui grave ofensa contra a qualidade de inocente determinada pela Constituição Federal. É por isso que Antônio Magalhães Gomes Filho acentua que: ‘À luz da presunção de inocência, não se concebem quaisquer formas de encarceramento ordenadas como antecipação da punição ou que constituem corolário automático da imputação, como sucede nas hipóteses de prisão obrigatória, em que a imposição da medida independe da verificação concreta do periculum libertatis’”.[31]

                        A prisão cautelar, sem a verificação de sua necessidade, e a inadmissibilidade da concessão de liberdade provisória, não se acomodam ao Estado Democrático de Direito e lesam “o princípio fundamental da presunção de inocência na medida em que, em desarmonia com a Constituição Federal, aplica uma pena de caráter aflitivo e iguala acusado e culpado”.[32]

                        João José Leal entende que a proibição absoluta de concessão da liberdade provisória é juridicamente insustentável, em face do princípio constitucional da presunção de inocência, e eticamente inaceitável, “por contrariar a idéia de Justiça como valor transcendental”. Afirma, sem rodeios, que, “em certos casos de crime hediondo, se o juiz verificar que a manutenção da prisão em flagrante é desnecessária, poderá conceder ao indiciado ou acusado a liberdade provisória”.[33] Estaria, assim, em harmonia com o princípio da presunção de inocência.

                        Pensa de forma semelhante o Min. Vicente Leal, do Superior Tribunal de Justiça, como se pode observar nos seguintes julgamentos, em que foi relator:

“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO PREVENTIVA. PRESSUPOSTOS. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. CUMPRIMENTO FORA DA COMARCA. PRECATÓRIA. CPP, ART. 289.

A prisão preventiva, medida extrema que implica  sacrifício à liberdade individual, concebida com cautela à luz do princípio constitucional da  inocência  presumida, deve fundar-se  em razões objetivas, demonstrativas  da existência de motivos concretos susceptíveis de autorizar sua imposição.

 Meras considerações  sobre a  gravidade do delito, bem como sobre a prova da existência de crime e indícios suficientes da autoria não justificam  a custódia preventiva, por não atender aos pressupostos inscritos no art.  312, do CPP.

A circunstância única de responder o réu em liberdade por anterior crime de tráfico de droga não impede a concessão de liberdade provisória, em face do princípio Constitucional da presunção de inocência.

Para o cumprimento de ordem de prisão em lugar fora  da jurisdição, é  imprescindível a expedição de carta precatória, contendo o inteiro teor do mandado, nos termos do preceito inscrito no art. 289, do Código de Processo Penal.

                 Habeas corpus concedido”.[34] (Destacamos).

“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO EM FLAGRANTE. PRETENSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA. DENEGATÓRIA DESMOTIVADA.  CPP,  ART. 310, PARÁGRAFO ÚNICO.

Segundo o comando expresso no parágrafo único do art. 310, do Código de Processo Penal o juiz concederá liberdade provisória ao réu preso em flagrante se constatar a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva.

A decisão que nega a liberdade provisória ao preso em flagrante deve ser fundamentada, com indicação objetiva de fatos concretos susceptíveis de causar prejuízo à ordem pública ou à instrução criminal, bem como por em risco a aplicação da lei penal, situando-se na mesma linha daquela que decreta a prisão preventiva.

A circunstância única de ter sido o réu preso em flagrante por tráfico de droga não impede a concessão de liberdade provisória, em face do princípio Constitucional da presunção de inocência.

Recurso ordinário provido. Habeas Corpus concedido”.[35] (Destacamos).

CONCLUSÃO

                        O problema das drogas vem, cada vez mais, preocupando a sociedade, não só a brasileira, mas de todo o mundo.

                        No Brasil, como forma de coibir, de reprimir o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes, esse crime foi equiparado ao hediondo, com as consequências, restrições e limitações de direitos inerentes a tais crimes.

                        Com o advento da Constituição de 1988, com a positivação de princípios fundamentais como o da liberdade provisória, do devido processo legal e da presunção de inocência, consagraram-se os princípios fundamentais e a dignidade da pessoa humana. Em decorrência, ao acusado de crime de tráfico de drogas, como a qualquer pessoa apontada como autora de um ilícito penal, são reconhecidos certos direitos.

                        A liberdade provisória é direito subjetivo do acusado de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins porque, com a nova ordem constitucional, para a manutenção da prisão, não basta a situação de flagrância ou a gravidade do delito. É necessária a presença de pelo menos um dos requisitos ensejadores da prisão preventiva. Assim, mesmo preso em flagrante, o acusado de tráfico ilícito de drogas tem, em certas situações, direito à liberdade provisória. É como pensam aqueles doutrinadores e operadores do Direito que vêem a liberdade como prerrogativa fundamental do cidadão, admitindo, excepcionalmente, a custódia preventiva, sempre inspirada e tendo por base um juízo de necessidade.

                        Os doutrinadores e operadores do Direito que vêem a liberdade como prerrogativa fundamental do cidadão não se satisfazem com pressupostos básicos como prova do crime e indícios de autoria. Entendem que a liberdade do ser humano é algo sagrado e que a vedação à liberdade provisória sem a presença dos requisitos ensejadores da prisão cautelar fere a dignidade da pessoa humana, afronta o princípio do devido processo legal, ofende o princípio da presunção de inocência.

REFERÊNCIAS

AMÊNDOLA NETO, Vicente. Habeas corpus – Tráfico de entorpecentes. 2. ed. São Paulo : Editora de Direito, 1997.

FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos: anotações sistemáticas à lei 8.072/90. 4. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2.000.

GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos. Prevenção – Repressão. 5. ed. São Paulo : Saraiva, 1987.

________ . Tóxicos. Prevenção – Repressão. 6. ed. São Paulo : Saraiva, 1989.

LEAL, João José. Crimes hediondos – Aspectos político-jurídicos da Lei n.º 8.072/90. São Paulo : Atlas, 1966.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de processo penal – interpretado. 7. ed. São Paulo : Atlas, 2.000.

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Sobre o autor
Leonardo Barreto Ferraz Gominho

Graduado em Direito pela Faculdade de Alagoas (2007); Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2010); Especialista e Mestre em Psicanálise Aplicada à Educação e a Saúde pela UNIDERC/Anchieta (2013); Mestre em Ciências da Educação pela Universidad de Desarrollo Sustentable (2017); Foi Assessor de Juiz da Vara Cível / Sucessões da Comarca de Maceió/AL - Tribunal de Justiça de Alagoas, por sete anos, de 2009 até janeiro de 2015; Foi Assessor do Juiz da Vara Agrária de Alagoas - Tribunal de Justiça de Alagoas, por sete anos, de 2009 até janeiro de 2015; Conciliador do Tribunal de Justiça de Alagoas. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito das Obrigações, das Famílias, das Sucessões, além de dominar Conciliações e Mediações. Advogado. Professor da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF -, desde agosto de 2014. Professor e Orientador do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF -, desde agosto de 2014. Responsável pelo quadro de estagiários vinculados ao Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF - CCMA/FACESF, em Floresta/PE, nos anos de 2015 e 2016. Responsável pelo Projeto de Extensão Cine Jurídico da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF, desde 2015. Chefe da Assessoria Jurídica do Município de Floresta/PE. Coautor do livro "Direito das Sucessões e Conciliação: teoria e prática da sucessão hereditária a partir do princípio da pluralidade das famílias". Maceió: EDUFAL, 2010. Coordenador e Coautor do livro “Cine Jurídico I: discutindo o direito por meio do cinema”. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821832; Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito civil e direito processual civil”. Volume 01. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821749; Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito das famílias e direito das sucessões”. Volume 01. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821856. Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito das famílias e direito das sucessões”. Volume 02. Belém do São Francisco: Editora FACESF, 2018. ISBN: 9788545558019. Coordenador e Coautor do livro “Cine Jurídico II: discutindo o direito por meio do cinema”. Belém do São Francisco: Editora FACESF, 2018. ISBN: 9788545558002.

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