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O impacto da reforma tributária no federalismo brasileiro

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09/12/2003 às 00:00
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A questão tributária e o Federalismo Brasileiro

Há muito que se vem discutindo a interferência e os impactos das questões tributarias impactando nosso federalismo nacional. Aliomar Baleeiro [13], como deputado Federal pelo Estado da Bahia, ao tratar do Projeto de Código Tributário Nacional (atual CTN), relatava os percalços e as vantagens na codificação a ser implementada como lei. Em matéria tributária afirmava que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios se regem por textos diversos de direito tributário, muito embora todos eles se entronquem ou pretendam entroncar-se na Constituição Federal, como primeira fonte jurídica da imposição. Cada Estado ou Município regula diversamente os prazos da prescrição, as regras da solidariedade, o conceito do fato gerador, ass bases de cálculo dos impostos que lhe foram distribuídos.

Ademais, ainda prelecionava que "não raro, alguns dilatam as prerrogativas, invadindo o campo da competência de outras pessoas de Direito Público, apossando-se sem partilha de tributos da competência concorrente e operando distorções violentas do conceito de taxa para disfarce de impostos que lhe são vedadas, quando não ultrapassando limitações do Texto Supremo."

Em geral, qualquer proposta de reforma tributária, o contribuinte é disputado por três competências fiscais, como se objeto fosse e muitas vezes desprezada sua capacidade contributiva e a justiça fiscal. A metodização de milhares e milhares de disposições fiscais, nos diversos níveis de competências, duma parte, e doutra, o conteúdo político da unificação de Direito Tributário federal, estadual e municipal, fundamentam, sem dúvida, como oportuna, imprescindível, patriótica e lúcida, a iniciativa de tornar a proposta de reforma fiscal uma nova codificação para nosso país. Entrementes, este fato não poderá jamais abalar ou abrir polêmica sobre a questão da indissolubilidade da Federação Brasileira.

Portanto, quanto à proposta de reforma fiscal no Congresso Nacional, questiona-se na atualidade a Titularidade estadual do ICMS. Este é um dos tópicos de grande polêmica e alguns admitem que desde a Reforma de 66, um dos grandes erros conceituais foi o de conceder a titularidade do ICMS aos Estados. As conseqüências desse desenho têm sido federalismo competitivo, guerra fiscal interna, problemas de origem e destino, falta de harmonização na política tributária nacional e legislação complexa.

A solução ideal para o problema, como já ficou constatado em propostas anteriores de reforma tributária, seria passar a competência desse imposto para a União. No entanto, politicamente, devido às características do federalismo brasileiro, em particular a forte descentralização federativa, está claro que uma proposta nesse sentido não seria factível.

Portanto, uma reforma tributária viável seria aquela que alcançasse a simplificação da legislação do imposto e a adoção de alíquotas nacionalmente uniformes. Além da questão da uniformidade, seria oportuna uma ampla revisão da estrutura das alíquotas do ICMS, de modo a conferir maior neutralidade ao imposto e a reduzir a tributação excessiva de bases importantes, como será abordado a seguir. Outro ponto relevante seria vedar a concessão de quaisquer benefícios ou isenções fiscais, determinando que vantagens financeiras a contribuintes sejam dadas pela via orçamentária.

Quanto à questão de origem e destino, está clara, sobretudo teoricamente, a superioridade do modelo baseado no destino, que, inclusive, seria um fator a contribuir para a eliminação da competição tributária na federação brasileira. No entanto, a recomendação, válida para qualquer medida em política tributária, é uma migração lenta e monitorada, de modo a causar o menor impacto possível no status quo das finanças públicas estaduais e ajustar a administração tributária ao novo modelo.

Outro aspecto a ser tratado e que afeta diretamente a questão é a existência de bases supertributadas. Chama a atenção a grande concentração da arrecadação do ICMS em operações relativas a energia, serviços de telecomunicações, veículos, cigarros e combustíveis, que estão sujeitas à incidência monofásica do imposto, resultando assim em cerca de 50% de sua arrecadação. Ou seja, metade das receitas do mais importante imposto sobre valor agregado do País é cobrada pela via da substituição tributária, negando, portanto, a própria natureza de valor agregado do imposto.

Essas bases são, em geral, sujeitas a alíquotas elevadas (até 33% "por fora") e, considerando que também sofrem incidência das contribuições sociais sobre o faturamento, estão sendo supertributadas no modelo atual. Como se tratam de bases de grande peso econômico, acabam por anular a progressividade que seria esperada da estrutura de alíquotas seletivas do ICMS e encarecer os investimentos produtivos no País.

A questão não fica restrita apenas ao ICMS, mas também o ISS. No que concerne ao ISS, a questão contemporânea central é a competição tributária nociva ante a inexistência de legislação que faculte a incidência de alíquotas marginais mínimas e benefícios fiscais. Municípios podem fazer uso de legislação que permite a ocorrência de guerra fiscal.

Constata-se que estas questões tributária em discussão na reforma fiscal no Congresso Nacional diretamente levantam o questionamento sobre o pacto federativo. Em função deste fato é que devemos envidar todo o esforço para adequar o novo modelo tributário e a sua administração às necessidades da sociedade, sem no entanto, lesar o pacto federativo, respeitando as competências de cada ente, ou então criando novas competências tributárias para cada ente sem haver logicamente superposição destas.


Conclusão: a reforma tributária viável e o Federalismo

O desafio é, portanto, saber qual caminho esperar da tão aclamada reforma tributária, após oito anos de tentativas, a maioria delas frustrada. A questão que se segue, no momento, é qual a reforma que poderia, de fato, ser implementada, minimizando as substanciais dificuldades de negociação federativa existentes no Brasil. A chamada reforma tributária viável, portanto, abrange um cenário onde as alterações propostas para o modelo tributário brasileiro levam em consideração tanto os condicionantes externos como as próprias restrições econômicas e políticas internas.

Devido inclusive ao centralismo político da época, que tornou mais fácil a aprovação de temas envoltos em dissenso, a última reforma tributária brasileira, abrangente e pontual, foi realizada em 1966. Naquele momento, foi implementada uma reforma que rompeu com o modelo anterior adotado no País e lançou as bases do federalismo fiscal que orienta o sistema tributário brasileiro até os dias de hoje. Desde então, inúmeras propostas de reformulação ampla foram apresentadas, mas nenhuma que tenha sido bem sucedida em sua implementação ou que tenha conseguido corrigir os defeitos sistêmicos originados em 1966.

Indubitavelmente, o federalismo fiscal concebido em 1966, competitivo e não cooperativo, tem obstruído a racionalidade e simplicidade do sistema tributário brasileiro. No entanto, todas as soluções propostas nas últimas décadas não foram factíveis, inclusive no que se refere à reforma promovida pela Constituição de 1988. A atual Constituição orientou-se pela pressão descentralizadora da época e acabou por agravar o problema existente, tendo repassado aos Estados as bases dos antigos "impostos únicos" da União sem os respectivos repasses de encargos. A partir de então, o desequilíbrio fiscal federal aumentou, tendo sido necessária a criação de instrumentos como o Fundo Social de Emergência e o Fundo de Estabilização Fiscal para desvincular receitas constitucionalmente vinculadas, de modo a dar graus de liberdade para a União realizar política econômica.

Conforme mencionado anteriormente, as dificuldades a serem superadas no aprimoramento do Sistema Tributário Nacional, em sua maioria, estão atreladas ao federalismo fiscal brasileiro, ou seja, à sua baixa racionalidade e ao seu caráter competitivo. Portanto, a solução ideal, indubitavelmente, demanda negociação política complexa, o que tem entravado o processo de reforma nos últimos anos. Assim, tornou-se imprescindível falar do factível, do viável, e não do ideal.

Vale destacar que a tributação da renda já foi reformulada ao longo dos últimos seis anos e, portanto, encontra-se atualmente em níveis de sofisticação e modernização compatíveis com as melhores legislações tributárias internacionais. Dessa forma, salvo por medidas pontuais de curto prazo, não há necessidade de qualquer modificação estrutural nos impostos incidentes sobre a renda.

O projeto de reforma tributária viável deverá focar prioritariamente, no que concerne ao ICMS, federalização normativa, com a criação de alíquotas uniformes em todo o território nacional e vedação de benefícios fiscais de qualquer natureza e introduzir o princípio do destino na cobrança do ICMS, desde que se faça um rearranjo global no atual sistema de partilhas vertical e horizontal; por outro lado, no que concerne ao ISS, fixação de alíquotas mínimas nacionais e vedação de benefícios fiscais; e como o IPI também esta sendo pauta envolvendo o pacto federativo propõe-se converter o IPI em verdadeiro excise, reduzindo o atual espectro de incidência, desde que se assegure compensação arrecadatória pela nova incidência da Contribuição para o PIS e da Cofins e que, além disso, se reveja o sistema atual de vinculação e partilha.

Devemos ter em mente, que além do aspecto tributário, no que pertine ao federalismo, devemos respeitar que a federação é forma de Estado cujo objetivo é manter reunidas autonomias regionais e assenta-se sobretudo, na Constituição Federal, sendo esta soberana e os Estados federados autônomos, mas nunca soberanos. A reforma fiscal proposta pelo Estado Federal deverá congregar aspectos que convirjam para a manutenibilidade e reforço a situação de pacto federativo e não o contrário. Ademais, o Estado Federal deve estar fundado, nesta reforma fiscal, na descentralização política e principalmente, na participação da vontade regional na vontade nacional.

Portanto, a conclusão principal é a de que a tributação moderna está crescentemente enquadrada em uma série de condicionantes externos e de restrições políticas e econômicas internas. O Brasil, ciente dessa nova realidade, já iniciou um processo de adequação de seu sistema e de suas administrações tributárias, mas, certamente, o futuro exigirá uma permanente adaptação a mudanças, dado que as pressões por alterações tornam-se permanentes. A reforma tributária, portanto, deve ser enxergada como um processo dinâmico de adequação. O mais importante, entretanto, é que se tenha claro que o caminho deve ser trilhado com responsabilidade técnica acima de tudo, respeitando acima de tudo o pacto federativo prescrito em nosso texto constitucional, dado que o grau de autonomia do governo em relação ao sistema tributário que sob certa ótica, será cada vez mais reduzido. Soluções mirabolantes de criatividade excessiva podem ser perigosas e colocar em risco a própria estabilidade econômica e o pacto federativo do País.

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NOTAS

01. MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Trad. De Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

02. NASCIMENTO, Walter Vieira do. Lições de história do direito, 8ª.edição, Rio de Janeiro:Ed.Forense, 1996.

03. ROSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social – Princípios de Direito Político, trad. Antônio de P.Machado, Ediouro.

04. CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário, Editora Malheiros, 16ª. edição pp. 104-139.

05. CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. Almedina:Portugal, 1999.

06. HESSE, Konrad. Elementos de Direito constitucional da República federal da Alemanha.ed. Sergio Fabris, pp. 180-183, 1998.

07. FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 1999.

08. PORTO, Walter Costa. Constituições Brasileiras, Senado Federal, Centro de Estudos Estratégicos, ESAF, volume IV, 1937.

09. BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras, Senado Federal, Centro de Estudos Estratégicos, ESAF, volume V, 1946.

10. BRITO, Luiz Navarro de. Constituições Brasileiras, Senado Federal, Centro de Estudos Estratégicos, ESAF, volume VI, 1967.

11. TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional, Malheiros: São Paulo, 16ª. edição, 2000.

12. FILHO, Ferreira. Curso de Direito Constitucional, Saraiva; Do Processo Legislativo, Saraiva.

13. BALEEIRO, Aliomar.Direito Tributário Brasileiro, Forense:Rio de Janeiro, 11ª.edição, 2000.


BIBLIOGRAFIA

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis. Trad. De Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

NASCIMENTO, Walter Vieira do. Lições de história do direito, 8ª.edição, Rio de Janeiro:Ed.Forense, 1996.

ROSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social – Princípios de Direito Político, trad. Antônio de P.Machado, Ediouro.

CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário, Editora Malheiros, 16ª. edição pp. 104-139.

HESSE, Konrad. Elementos de Direito constitucional da República federal da Alemanha.ed. Sergio Fabris, pp. 180-183, 1998.

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FILHO, Ferreira. Curso de Direito Constitucional, Saraiva; Do Processo Legislativo, 2000.

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Sobre o autor
Fernando Maida

advogado no Rio de Janeiro, planejamento tributário da Petrobras Distribuidora

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIDA, Fernando. O impacto da reforma tributária no federalismo brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 156, 9 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4575. Acesso em: 26 abr. 2024.

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