Auto de resistência ou oposição decorrente de intervenção policial?

09/01/2016 às 15:07
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Sem a pretensão de exaurir o assunto, mas apenas provocar o debate e o esclarecimento sobre a Resolução Conjunta nº 2, de 13 de outubro de 2015, o presente artigo discute o seu objetivo de forma sucinta.

A publicação no Diário Oficial da União, da Resolução conjunta do Conselho Superior de Polícia e do Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil, dispondo sobre procedimentos internos que deverão ser postos em prática quando do registro de ocorrências em que haja resultado lesão corporal ou morte decorrentes de intervenção policial, causou um alvoroço, “burburinhos” e uma série de controvérsias no meio policial.

Essas controvérsias, em muito causadas pela desinformação e, também, pelas interpretações equivocadas da mídia, provocam polêmicas em torno do tema. Assim, sem a pretensão de exaurir o assunto mas provocar o debate e o esclarecimento sobre a Resolução (que, na prática, não traz tanta novidade), o presente artigo arrima seu objetivo, de forma sucinta.

Antes de abordar o tema, faz-se mister, para um melhor entendimento, uma apertada síntese da origem do “famigerado” auto de resistência.

O “auto de resistência” surgiu durante a ditadura militar, em 1969. A ordem de serviço nº 803, de 2 de outubro de 1969, da Superintendência de Polícia Judiciária do Estado da Guanabara, dispunha que, “em caso de resistência, poderão usar os meios necessários para defender-se e/ou vence-la”, e dispensa a lavratura do auto de prisão em flagrante ou a instauração de Inquérito Policial nesses casos. Em dezembro de 1974, foi alterado por uma Portaria da Secretaria de Segurança Pública, que estabelecia que o policial não poderia ser preso em flagrante nem indiciado por uma morte durante confronto. Como se observa, tanto a ordem de serviço, quanto a Portaria citada, estavam em acordo com a ordem política vigente à época.

Mas a ordem política mudou, e a prática do auto de resistência, já em uso por todas as polícias do território nacional, e reconhecido pelo judiciário, continuou. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, as leis brasileiras, lato sensu, tiveram que se adequar à Constituição garantista do novo Estado Democrático de Direito e aos tratados de Direitos Humanos, dos quais o Brasil é signatário.

O auto de resistência é uma peça meramente informativa, em que o agente de segurança, após uma ocorrência envolvendo resistentes, ou seja, uma resistência não passiva a uma prisão em flagrante ou por mandado judicial, relata minuciosamente os fatos ocorridos. Tal procedimento, atualmente, segue previsto no Decreto Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, nosso Código de Processo Penal, no artigo 292, in verbis:

Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinação por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas

O texto não traz especificamente a nomenclatura “auto de resistência” ou, muito menos, “resistência seguida de morte”, apenas determina que seja confeccionado um termo circunstanciado para que sejam apuradas a veracidade e a legalidade da ação, em qualquer ação em que haja resistência. Para BARROS FILHO (2010), o auto de resistência sempre figurou, acertadamente, como uma das formas de instauração de ofício do Inquérito Policial, servindo o próprio documento como peça inaugural do procedimento de persecução criminal, nos mesmos moldes do auto de prisão em flagrante.

Conhecida a origem, o que é o “auto de resistência” e para que serve, passamos a tratar da polêmica criada pela Resolução conjunta. Há muito que entidades de Direitos Humanos, encabeçadas pela Anistia Internacional, defendem o fim dos autos de resistência, alegando ser tal instrumento, uma forma de impedir a investigação, punição e até “encobrir” os homicídios cometidos por policiais contra a população. A nosso ver, a alegação não merece guarida, senão vejamos:

Conforme já citado, a ordem política mudou e a Ordem de serviço do Estado da Guanabara, bem como a Portaria da SSP-RJ de 1974, não foram recepcionadas pela Constituição garantista de 1988, portanto, prevalece hoje o Código de Processo Penal em relação ao artigo 292. A nomenclatura “auto de resistência” foi cunhada internamente pelas instituições policiais e utilizada para titular o termo circunstanciado, o relato dos fatos da ocorrência. E ainda, em 1996, foi editada a Lei 9.299 (lei Hélio Bicudo), cujo § 1º acresceu um parágrafo único ao artigo 9º do Código Penal Militar, estabelecendo que “os crimes dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum”. Assim, todas as ocorrências envolvendo confronto e óbito por parte de civis resistentes têm sua investigação, processo e julgamento efetuados pela Justiça comum e não mais pela Justiça Militar.

Desta forma, não possui o auto de resistência o condão de “imunizar”, “blindar” ou “encobrir” homicídios praticados por policiais, pelo contrário, ele é o “ponta pé” inicial para a investigação da veracidade dos fatos narrados.

De qualquer sorte, as Organizações de Direitos Humanos conseguiram seu intento. A Resolução Conjunta muda a nomenclatura utilizada internamente pelas instituições policiais. Em vez de auto de resistência, teremos “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” e “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”. Mudanças estas, já criticadas pela Anistia Internacional que não vê com bons olhos a palavra “oposição”. Para eles, deveria ser “homicídio decorrente de intervenção policial”.

Na prática, o que muda para a atividade policial? A nosso ver a resposta é uma só: não muda nada. Tudo que a Resolução Conjunta do Conselho Superior de Polícia e do Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil determina, com exceção da mudança de nomenclatura, já é previsto no Código de Processo Penal. A Lei 9. 299/96, Lei Hélio Bicudo, corrobora com tais procedimentos. Comprova nossa tese, pesquisa nos sites dos Tribunais de Justiça em todo o Brasil, onde inúmeros policiais respondem a processos criminais, nos Tribunais do Júri, por “autos de resistência” ou, agora, por “homicídio decorrente de oposição a intervenção policial”.

Como dispõe a própria resolução, são procedimentos internos a serem adotados pelas polícias judiciárias, apenas isso. Juridicamente vale o Código de Processo Penal, que, no seu artigo 292, mantém o auto do executor, subscrito por duas testemunhas. O nome que se dará a esse auto, agora, internamente, é definido conforme a Resolução Conjunta.

Em conclusão, o “auto de resistência” nunca teve como objetivo precípuo arquivar ou impedir a abertura de Inquérito Policial. Infelizmente, reconhecemos que houve uma banalização do uso do “auto de resistência” por maus profissionais, mas, a nosso ver, as mudanças ocorridas são meramente políticas, com o fito de agradar as organizações de Direitos Humanos e a ONU, cumprindo os tratados internacionais. As polícias do Estado de São Paulo já adotam tais procedimentos desde 2013, e os policiais continuam a exercer seu mister profissional. Aos bons policiais, que trabalham dentro da legalidade, agindo em legítima defesa, própria ou de terceiros, dentro do estrito cumprimento do dever legal, não há com o que se preocupar. Nossas intervenções serão sempre investigadas, como sempre foram.

Referências

BARROS FILHO, Mário Leite de. Inquérito policial sob a óptica do delegado de polícia. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2726, 18 dez. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/18062>. Acesso em: 08 jan. 2016.

LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal Militar. 5ª Ed. São Paulo: Atlas, 2010.

MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Auto de resistência: morte decorrente de intervenção policialRevista Jus Navigandi, Teresina,ano 18n. 357212 abr. 2013. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/24119>. Acesso em: 8 jan. 2016.

Segue anexo a Resolução Conjunta:

DEPARTAMENTO DE POLÍCIA FEDERAL

CONSELHO SUPERIOR DE POLÍCIA

RESOLUÇÃO CONJUNTA Nº 2, DE 13 DE OUTUBRO DE 2015

Dispõe sobre os procedimentos internos a serem adotados pelas polícias judiciárias em face de ocorrências em que haja resultado lesão corporal ou morte decorrentes de oposição à intervenção policial.

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O CONSELHO SUPERIOR DE POLÍCIA, no uso da competência que lhe é conferida pelo art. 10 do Regimento Interno do Departamento de Polícia Federal, aprovado pela Portaria no 2.877, de 30 de dezembro de 2011, do Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado da Justiça, publicada na Seção 1 do DOU no 01, de 02 de janeiro de 2012, e O CONSELHO NACIONAL DOS CHEFES DE POLÍCIA CIVIL, no uso das competências estabelecias no art. 1º do Estatuto do Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil,

Considerando a Resolução no 08, de 21 de dezembro de 2012, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que dispõe sobre a abolição de designações genéricas, como “autos de resistência” e “resistência seguida de morte”, em registros policiais, boletins de ocorrência, inquéritos policiais e notícias de crime; e

Considerando a necessidade de regulamentação e uniformização dos procedimentos internos das polícias judiciárias, objetivando conferir transparência na elucidação de ocorrências em que haja resultado lesão corporal ou morte decorrentes de oposição à intervenção policial, resolvem:

Art. 1º Ficam definidos os procedimentos internos a serem adotados pelas polícias judiciárias em face de ocorrências em que haja resultado lesão corporal ou morte decorrentes de oposição à intervenção policial.

Art. 2º Os dirigentes dos órgãos de polícia judiciária providenciarão para que as ocorrências de que trata o art. 1o sejam registradas com a classificação “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”, conforme o caso.

Art. 3º Havendo resistência à legítima ação policial de natureza preventiva ou repressiva, ainda que por terceiros, o delegado de polícia verificará se o executor e as pessoas que o auxiliaram se valeram, moderadamente, dos meios necessários e disponíveis para defender-se ou para vencer a resistência.

§ 1º Se do emprego da força resultar ofensa à integridade corporal ou à vida do resistente, deverá ser imediatamente instaurado inquérito policial para apuração dos fatos, com tramitação prioritária.

§ 2º A instauração do inquérito policial será comunicada ao Ministério Público e à Defensoria Pública, sem prejuízo do posterior envio de cópia do feito ao órgão correcional correspondente.

§ 3º Os objetos relacionados a evento danoso decorrente de resistência à intervenção policial, como armas, material balístico e veículos, deverão ser apreendidos pelo delegado de polícia.

§ 4º O delegado de polícia responsável pela investigação do evento danoso com resultado morte deverá requisitar o exame pericial do local, independentemente da remoção de pessoas e coisas.

§ 5º O delegado de polícia poderá requisitar registros de comunicação e de movimentação das viaturas envolvidas na ocorrência, dentre outras providências.

§ 6º O delegado responsável pela investigação representará pelas medidas cautelares necessárias à identificação de todos os policiais envolvidos na ação, ainda que não figurem entre aqueles qualificados na comunicação do fato.

§ 7º Sem prejuízo do disposto no parágrafo anterior, o delegado poderá requisitar a apresentação dos policiais envolvidos na ocorrência, bem como de todos os objetos que possam interessar à investigação, sob pena de responsabilidade administrativa e criminal em caso de descumprimento da requisição.

§ 8º No caso de morte do resistente, é obrigatória a juntada do respectivo laudo necroscópico ou cadavérico aos autos do inquérito policial.

Art. 4º Nas hipóteses do art. 3o, os fatos serão noticiados preferencialmente ao delegado da Delegacia de Crimes contra a Pessoa ou da repartição de polícia judiciária, federal ou civil, com atribuição assemelhada.

Art. 5º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, seguindo assinada pelos membros do Conselho Superior de Polícia, Superintendentes Regionais da Polícia Federal e membros do Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil.

Sobre o autor
Paulo Cunha

Oficial da PMBA. Bacharel em Direito. Pós graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal. Pós graduado em Direito Penal Militar e Processo Penal Militar.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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