Questionamentos da minirreforma eleitoral (§3º e §4º, do art. 224, da Lei nº 4.737/65) – Parte 1

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Trata-se da análise da possibilidade de se atribuir o efeito ativo ao §3º, do art. 224, da Lei nº 4.737/65, bem como da possibilidade de o Município dispor de maneira diversa, em sua lei orgânica, àquela disposta no § 4ª, do art. 224, do Código Eleitoral.

1)“A decisão da Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições, independentemente do número de votos anulados” - §3º do art. 224 da Lei nº 4.737/65 alterado pelo art. 4º da Lei nº 13.165/2015 (minirreforma eleitoral).

Do novo enunciado decorrente da minirreforma eleitoral, destacam-se dois pontos controvertidos.

O primeiro se refere ao paradoxo de ausência do efeito ativo recursal em face à efetividade da norma no tempo. Isto representa considerar que a realização de novas eleições, pelo dispositivo citado, deverá, inexoravelmente, aguardar o trânsito em julgado da decisão que importou o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato.   

Ocorre, entretanto, que, para um cenário perfeito, imagina-se que o processo eleitoral de julgamento, desde a sua distribuição até o seu trânsito em julgado, não deva ultrapassar o prazo razoável de duração, isto é, 1 (um) ano, à luz do art. 5º, inc. LXXVIII, da Constituição Federal regulado pelo art. 97-A, da Lei 9.504/97[1]

Não obstante tal consideração, haverá casos em que a extrapolação do prazo razoável será inevitável o que, por sua vez, levará o Presidente da Casa legislativa a conduzir o Poder Executivo de forma indeterminada. Explico.

Julgado procedente o pedido de perda do mandato, por exemplo, para que ocorram novas eleições, haverá necessidade de aguardar o trânsito em julgado de tal decisão e, enquanto isso, pela ordem de sucessão, haverá assunção do presidente do legislativo à chefia do executivo.

Como o mandato é a termo, ou seja, há prazo certo para o seu término, é possível que o chefe do Legislativo acabe por exercer a função do chefe do Executivo até o término do próprio mandato, ou seja, os quatro anos, sem que sequer houvesse ainda o trânsito em julgado e, por sua vez, novas eleições.

Diante deste cenário, para garantir à efetividade do §3º, do art. 224, deve-se considerar à possibilidade do Tribunal Superior Eleitoral conceder o efeito ativo[2] ou tutela de urgência[3] recursal a fim de determinar imediatamente à realização de novas eleições independentemente do trânsito em julgado da decisão.

Adota-se tal comportamento haja vista que o dispositivo em apreço, em que pese o efeito imediato dos acórdãos dos Tribunais Eleitorais, outorgou uma espécie de suspensividade excepcional quanto à realização imediata de novas eleições condicionando-a ao trânsito em julgado da decisão.

Agiu assim o legislador a fim de prestigiar os princípios capitais como higidez do pleito, representatividade e legitimidade do eleito para o exercício do poder político-estatal. Valorizou, ainda, um princípio crucial para a eficácia de qualquer sistema organizado, que é a eficaz responsabilização de agentes e beneficiários de atos ilícitos; esse, a propósito, constitui preceito de alta densidade ética.  

O segundo consiste em saber se a novel regra se aplica às eleições anteriores.

A propósito do tema o art. 16 da Constituição Federal dispõe que “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.   

Pela regra disposta, pretendeu estabelecer um período compreendido de um ano imediatamente antes das eleições, durante o qual as legislações que alterem o processo eleitoral deveriam permanecer sem aplicação, tendo por consequência a ineficácia dessas leis para as eleições que ocorreriam há menos de um ano de sua entrada em vigor.

A rigor, o Supremo Tribunal Federal reverberou sobre o princípio da anterioridade a natureza da cláusula pétrea: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 2º DA EC 52, DE 08.03.06. APLICAÇÃO IMEDIATA DA NOVA REGRA SOBRE COLIGAÇÕES PARTIDÁRIAS ELEITORAIS, INTRODUZIDA NO TEXTO DO ART. 17, § 1º, DA CF. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE DA LEI ELEITORAL (CF, ART. 16) E ÀS GARANTIAS INDIVIDUAIS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (CF, ART. 5º, CAPUT, E LIV). LIMITES MATERIAIS À ATIVIDADE DO LEGISLADOR CONSTITUINTE REFORMADOR. ARTS. 60, § 4º, IV, E 5º, § 2º, DA CF. (STF - ADI: 3685 DF, Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 22/03/2006, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 10-08-2006 PP-00019 EMENT VOL-02241-02 PP-00193).

No tocante à aplicação retroativa para atingir as eleições realizadas antes da entrada em vigor da nova disposição do §3º, do art. 224, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso extraordinário eleitoral nº 633.703, julgado em 2011, decidiu, também, por voto da maioria, que a Lei Complementar nº 135/2010 (Lei da Ficha Limpa) não deveria ser aplicada às eleições de 2010 por desrespeito ao princípio da anualidade. Somente teve eficácia pela primeira vez nas eleições de 2012 (eleições municipais).

Dessa forma, por simetria jurídica à questão análoga decidida pela Egrégia Suprema Corte, considerando se tratar de uma norma que altera o processo eleitoral e em respeito aos atos jurídicos perfeitos[4], conclui-se que a hipótese em debate não pode ter eficácia retroativa de modo a atingir outro período eleitoral anterior à sua vigência.

2)  “§ 4o  A eleição a que se refere o § 3o correrá a expensas da Justiça Eleitoral e   será: I - indireta, se a vacância do cargo ocorrer a menos de seis meses do final do mandato; II - direta, nos demais casos” -  §4º do art. 224 da Lei nº 4.737/65 alterado pelo art. 4º da Lei nº 13.165/2015 (minirreforma eleitoral).

Ao primeiro ponto poder-se-ia imaginar que a citada disposição violaria o artigo 81 da Constituição Federal, posto que estabelece a regra a ser observada na hipótese de vacância dos cargos de titular e vice de Chefe do Executivo Federal sem cogitar de causa. A solução que prescreve é a realização de novas eleições, que serão diretas ou indiretas conforme a última vaga ocorrida nos dois primeiros ou nos dois últimos anos do período correspondente ao mandato.

Diferentemente dispõe o art. 224 e seus parágrafos do Código Eleitoral.

Neste quadro, argui-se, se o artigo 81 da Constituição não estabelece restrições para a realização de novas eleições, não poderia fazê-lo o legislador infraconstitucional, menos ainda a jurisprudência. Afinal, não se interpreta a Constituição pela lei, mas é esta que deve se amoldar aos princípios daquela emanados.

Assim, será sempre necessária a realização de novas eleições, independentemente do número de votos inválidos, sendo inconstitucional qualquer disposição ao contrário.

Enquanto pareça atentadora tal posição, assim não procede.

Com efeito, não há inconstitucionalidade do art. 224 e seus parágrafos em face do artigo 81 da Constituição Federal, simplesmente porque tais dispositivos regem matérias diversas e operam em momentos lógica e temporalmente distintos. Enquanto o artigo 224 trata da validade da eleição, que é requisito indeclinável da proclamação dos resultados e diplomação dos eleitos, o artigo 81 estabelece critérios para o preenchimento dos cargos que alude em caso de vacância ocorrida durante o exercício do mandato, pressupondo, portanto, que os cargos já estejam regulamente preenchidos e seus titulares devidamente investidos.

Na verdade o artigo 81 objetiva evitar que haja vácuo no poder estatal em razão de vicissitudes ocorridas durante o exercício do mandato que levam à vacância deste.

Superada, digamos, esta questão de ordem, o ponto controvertido deste enunciado recai sobre a possibilidade da lei orgânica municipal dispor de maneira diversa à alteração legislativa, ou seja, havendo conflito de leis no espaço qual delas deve ser aplicada.

Instado pela ação direta de inconstitucionalidade nº 687/PA, o Supremo Tribunal Federal, por meio do relator Ministro Celso de Melo, firmou o posicionamento no sentido de que “a matéria pertinente à sucessão e a substituição do prefeito e vice-prefeito inclui-se, por efeito de sua natureza mesma, no domínio normativo da Lei Orgânica promulgada pelo Município”.

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A propósito, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no voto da Ministra Carmen Lúcia, assim também decidiu: “AÇAO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - ART. 75, § 2°, DA CONSTITUIÇÃO DE GOIÁS - DUPLA VACÂNCIA DOS CARGOS DE PRFFFITO E VICE-PREFEITO – COMPETÊNCIA LEGISLATIVA MUNICIPAL – DOMÍNIO NORMATIVO DA LEI ORGÂNICA – AFRONTA AOS ARTS. 1j2 E 29 DA CONSTITUICÃO DA 1. O poder constituinte dos Estados-membros está limitado pelos princípios da Constituição da República, que lhes assegura autonomia com condicionantes, entre as quais se tem o respeito à organização autônoma dos Municípios, também assegurada constitucionalmente. 2. O art. 30, inc. 1, da Constituição da Re pública outorga aos Municípios a atribuição de legislar sobre assuntos de interesse local . A vocação sucessória dos cargos de prefeito e vice-prefeito põem-se no âmbito da autonomia política local, em caso de dupla vacância 3. Ao disciplinar matéria, cuja competência é exclusiva dos Municípios, o art. 75, § 22, da Constituição de Goiás fere a autonomia desses entes, mitigando-lhes a capacidade de autoorganização e de autogoverno e limitando a sua autonomia política assegurada pela Constituição brasileira. 4. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente (STF ADI n. 3549, DJ 31.10.2007)”.

Nesse diapasão, o art. 81, § 1º, da Constituição Federal não é de reprodução obrigatória pelos entes municipais[5] de modo que compete à Lei Orgânica Municipal dispor acerca da modalidade de eleição no caso de dupla vacância no Poder Executivo Municipal.

Na espécie em foco, ao exercer competência legislativa que lhe é assegurada, o ente federativo municipal poderá, com fundamento no art. 30, inc. I, da Constituição da República, legislar sobre assuntos de interesse local. Nesse sentido, a vocação sucessória dos cargos de prefeito e vice-prefeito põem-se no âmbito da autonomia política local, em caso de dupla vacância, motivo pelo qual a legislação federal que dispuser diversamente não lhe tem força impeditiva a ponto de invalidar à regulamentação local.

Diante disso, em que pese ser da competência legislativa privativa da União dispor sobre direito eleitoral, por se tratar de assunto estritamente local, poderá o Município dispor de maneira diversa, em sua lei orgânica, àquela disposta no § 4ª, do art. 224, do Código Eleitoral, cabendo a este regulamentação integral no caso de omissão orgânica municipal.

[1] Nos termos do inciso LXXVIII do art. 5o da Constituição Federal, considera-se duração razoável do processo que possa resultar em perda de mandato eletivo o período máximo de 1 (um) ano, contado da sua apresentação à Justiça Eleitoral.     (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009),

[2]Art. 461. § 3o Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada. CPC atual.

[3] Art. 300.  A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. NCPC.

[4] Art. 5º, inc. XXXVI, da Constituição Federal “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

[5] MANDADO DE SEGURANÇA. CHEFIA DO PODER EXECUTIVO. DUPLA VACÂNCIA. ELEIÇÕES SUPLEMENTARES. ART. 81, § 1°, CF88. OBSERVÂNCIA NÃO OBRIGATÓRIA. LEI ORGÂNICA MUNICIPAL. PARÂMETRO. VACÂNCIA. PRIMEIRO BIÊNIO. ELEIÇÕES DIRETAS. SEGURANÇA DENEGADA. (MS n. 771861PR, Redatora para o acórdão a Ministra NancyAndrighi, DJe 10.8.2011).

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Sobre o autor
Eduardo Calmon de Almeida Cézar

Atualmente é Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, professor de direito administrativo da Academia de Polícia Militar Costa Verde (APMCV) e professor de direito administrativo da Universidade de Cuiabá (UNIC). É professor de direito administrativo em cursos preparatórios para concursos públicos. É professor da pós-graduação em Direito Administrativo da ATAME e da UNIC. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Administrativo e Processo Administrativo. Já foi Juiz Substituto no Estado de São Paulo (2004), Promotor de Justiça no Estado de Sergipe (2003/2004) e Defensor Público no Distrito Federal (2003). Foi aprovado e nomeado no concurso de Juiz Federal Substituto da 3ª Região (2011). Mestre e Doutor em Direito do Estado pela Universidade do Estado de São Paulo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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