A inconstitucionalidade da aplicação do princípio da atipicidade frente às transgressões disciplinares militares

12/01/2016 às 16:30
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Este artigo aborda a Inconstitucionalidade da aplicação do Princípio da Atipicidade do Direito Administrativo Disciplinar para as transgressões militares eventualmente cometidas por militares cearenses, com fulcro no Código Disciplinar da PMCE.

1. O Princípio da Atipicidade.

Postulado no artigo 12, §1º, inciso II da Lei n°13.407/03-CE, que instituiu o Código Disciplinar da Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar do Ceará, que enuncia que são transgressões disciplinares todas as ações e omissões não especificadas no artigo seguinte, mas que também violem os valores e deveres militares. Assim, nasce o Princípio da Atipicidade no Direito Disciplinar Militar Cearense.

Tal princípio encartado em vários estatutos de servidores públicos e militares no Brasil, tem o condão de permitir que o servidor faltoso para com o seu mister possa ser alcançado pelo braço do poder disciplinar que rege a administração pública, não vinculando estritamente sua conduta a um tipo já previamente determinado na lei de regência do respectivo servidor.

Desta forma, busca a administração tutelar a supremacia do interesse público, que não pode se restringir à subordinação de condutas enumeradas em rol taxativo numerus clausus em face de infração disciplinar por parte de servidor que viole os preceitos e princípios regentes da administarção pública, notadamente os encartados no artigo 37, caput da Lei Maior (Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência).

Embora a aplicação do Principio da Atipicidade esteja pautado nos desdobramentos do artigo 37 da Carta Federal, não há de se dar guarida a este entendimento na melhor exegese, quando este colidir com a garantia fundamental postulada no inciso LXI, daquele Supremo Diploma Normativo, haja vista este ter por prerrogativa a sua IMUTABILIDADE PÉTREA, conforme disposto no artigo 60, §4º, inciso IV da Magna Carta.

“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

...

§4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

...

IV – Os direitos e garantias fundamentais”.

Logo, imperativo é assentar que se prescinde de hermenêutica pautada em harmonização para melhor se ajustar a aplicação dos postulados acima ventilados, pois a própria Constituição já apresenta clara previsão quanto à não aplicação do Princípio da Atipicidade ao Direito Disciplinar Castrense, na forma do citado inciso LXI do artigo 5º.  Vejamos:

“Art. 5º...

LXI – Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. Negritamos.

Portanto, para que haja cerceamento de liberdade do militar que cometa transgressão disciplinar, esta deverá estar contida em lei, e tipicamente definida.

Logo, faz-se mister assentar que a prisão, detenção, permanência disciplinar, custódia ou recolhimento transitório pautados exclusivamente em condutas não definidas no rol de transgressões disciplinares enseja em arbitrariedade por parte da autoridade militar, devendo tal ato constritor ser deliberado pelo Poder Judiciário, haja vista a inafastabilidade de sua apreciação, conforme encartado no artigo 5º, inciso XXXV, da Carta Política Brasileira.

Todavia, é necessário se destacar que o referenciado Princípio da Atipicidade não encontra vedação para a sua aplicação no que tange as transgressões disciplinares ou infrações administrativas cometidas por servidor civil, valendo apenas sua aplicação para infrações leves e médias, e afastada para as que possam ensejar a punição com perda da função pública, conforme nos ensina José Armando da Costa, em sua obra Direito Administrativo Disciplinar.

Não bastante, é necessário pontuar que o Brasil é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, intitulada Pacto São José da Costa Rica, que foi internalizado em nosso ordenamento jurídico com o Decreto nº 678, de 06/11/1982; e esta, por sua vez, assevera, em seu artigo 7º, que ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados-Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas, e que ninguém será submetido à detenção ou encarceramento arbitrário.   

Ainda na seara das garantias fundamentais, é imperioso à autoridade militar que assegure ao militar transgressor o devido processo legal, com a garantia de ampla defesa e contraditório; conforme amparado no artigo 5º, incisos LIV e LV. Vejamos a lição de MEDINA sobre o tema:

“Ampla defesa e Contraditório incidem também no processo administrativo: Assiste, ao interessado, mesmo em procedimentos de índole administrativa, como direta emanação da própria garantia constitucional do due processo of law (CF, art. 5º, LIV) – independentemente, portanto, de haver previsão normativa nos estatutos que regem a atuação dos órgãos do Estado, a prerrogativa indisponível do contraditório e a plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (CF, art. 5º, LV). Abrangência da clausula constitucional do due process of law, que compreende, dentre as diversas prerrogativas de ordem jurídica que a compõem, o direito a prova. (MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal Comentada, Revista dos Tribunais – 2013, pág. 169)”.       

Por fim, vale asseverar que o Direito Administrativo Disciplinar Militar não é autônomo, pois, à luz do artigo 73, do Código Disciplinar da PMCE, aplicam-se, subsidiariamente, e pela ordem, as normas do Código de Processo Penal Militar, do Código de Processo Penal e do Código de Processo Civil, do que pontuamos que se coaduna com o Princípio da Taxatividade a hermenêutica postulada no artigo 2º do CPPM, no qual não há espaço para o Princípio da Atipicidade, e busca-se a clara interpretação da lei processual.

  “Art. 2º. A lei de processo penal militar deve ser interpretada no sentido literal de suas expressões. Os termos técnicos hão de ser entendidos em sua acepção especial, salvo se evidentemente empregados com outra significação”. Grifamos.

Garante, ainda, aquele diploma legal que não haverá interpretação restritiva ou extensiva quando for cerceada a defesa pessoal do acusado, e/ou quando se desfigurar de plano os fundamentos da acusação que deram origem ao processo; conforme §2º, a e c do artigo citado acima.


2. Da Tipicidade Necessária as Transgressões Disciplinares. 

Na atual Carta Política de 1988, o Poder Constituinte Originário purgou no rol das garantias fundamentais o direito de que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar definidos em lei. Ou seja, do enunciado contido no inciso LXI, do artigo 5º, tem-se que, nos casos de transgressão militar, definida em lei, a autoridade militar poderá exercer o jus puniendi com cerceamento de liberdade.

Malgrado o Direito Administrativo Disciplinar acolher o Princípio da Atipicidade, não há de se aceitar que tal princípio norteador de sanções disciplinares possa ser empregado no Direito Disciplinar Militar, haja vista esta categoria de servidores figurar como a única no universo administrativo que pode vir a ter como sanção disciplinar o cerceamento de sua liberdade de locomoção por eventual falta para com suas funções e/ou seu múnus público.

Ainda na esteira deste entendimento, observa-se com clareza solar que, por força do postulado no inciso LXI, do artigo 5º, é expressamente vedada a punição do militar por transgressões disciplinares não previstas em lei, ou seja, há de existir legislação específica e nela enumerar-se, em rol taxativo e com a correspondente tipicidade, cada conduta violadora que eventualmente venha a ser praticada pelo militar.

Do contrário, ao se punir o servidor com fundamento em tipos abertos, a administração militar estaria arrostando o Princípio Garantidor da Legalidade, pelo qual, conforme observa-se no texto constitucional, no artigo 5º, XXXIX, não há crime sem lei anterior que o defina e nem pena sem prévia cominação legal.

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Tal norma garantidora traz desdobramento, também, em outro princípio que se coaduna com a vedação da aplicação de prisão administrativa à militar por cometimento de transgressão disciplinar não prevista taxativamente em lei; ou seja, temos no Princípio da Reserva Legal que a transgressão disciplinar, assim como a infração penal somente pode ser criada por lei em sentido estrito.

Na esteira deste entendimento é prudente citar o magistério do Professor Rogério Sanches Cunha, que afirma que não há crime (ou contravenção penal), nem pena (ou medida de segurança) sem lei certa. Neste sentido temos:

“O princípio da taxatividade ou determinação é dirigido mais diretamente à pessoa do legislador, exigindo dos tipos penais clareza, não devendo deixar margens a dúvidas, de modo a permitir a população em geral o pleno entendimento do tipo criado”. (CUNHA, Rogério Sanches., Manual de Direito Penal, 2013, Ed. Juspodivum, pág. 34).    

Em outras palavras, o direito disciplinar castrense só poderá impingir aos militares as sanções administrativas com cerceamento de liberdade (prisão para militares federais; ou permanência, custódia e recolhimento transitório para os estaduais - Ceará), em situações taxativamente enumeradas em lei específica para fins disciplinares, haja vista termos que esta é a forma postulada na Constituição Federal para edição das normas de Direito Punitivo, no qual se alberga o Direito Disciplinar Militar.

O Direito Punitivo (Penal, Penal Militar e Disciplinar) só admite interpretação restritiva e veda a aplicação de analogia, pois, conforme desdobramento das garantias individuais, a regra é a liberdade, ou seja, rege, na aplicação do Direito Punitivo, o Princípio do Favor Rei ou Favor Libertatis, consubstanciado v.g. no in dubio pro reo.

Fato este que confere ao servidor militar tratamento diferenciado em matéria de direito disciplinar face aos demais servidores civis, pois, para estes (civis), a doutrina dominante e boa parte de seus estatutos (v.g. Lei nº 8.112/90) asseguram a aplicação do Princípio da Atipicidade para suas infrações administrativas de natureza leves e médias, e, para os primeiros (militares), tal aplicação, prima facie, culminaria em verdadeira afronta à garantia fundamental aventada no artigo 5º, inciso LXI da nossa Lei Maior.


Referências.

BRASIL. Legislação. Constituição da República Federativa do Brasil. Sítio do Planalto. Disponível em : <http://www.planalto.gov.br/>.

Acesso em: 12/01/2016.

CEARÁ. Legislação. Lei nº 13.407, de 21/11/2003. Sítio da Assembleia Legislativa do Ceará. Disponível em: < http://www.al.ce.gov.br/index.php/lei-ordinaria>.

Acesso em: 12/01/2016.

BRASIL. Legislação. Decreto-lei nº1.002, de 21 de outubro de 1969. Código de Processo Penal Militar. Sítio do Planalto. Disponível em : <http://www.planalto.gov.br/>.

Acesso em: 12/01/2016.

CUNHA, Rogério Sanches Cunha. Manual de Direito Penal. Editora Juspodivm. 2013.

MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal Comentada, Revista dos Tribunais – 2013. 

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Sobre o autor
Walber Medeiros

Bacharel em Segurança Pública, Bacharel em Direito, Pós-graduado Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública, Pós-graduado em Ciências Jurídicas, Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal e Pós-graduando em Processo Civil.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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