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Comentários ao projeto de lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito:

Título XII

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12/12/2003 às 00:00
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8. Descodificação

Ainda em afinidade com o fenômeno da inflação legislativa, outro problema que afeta os cidadãos, é o fato de que as novas normas que entram no ordenamento jurídico, elas fazem parte, frise-se, de uma legislação extravagante, como se obedecessem a um princípio implícito de descodificação. São poucas as que obedecem ao princípio da reserva do Código. O grau de racionalidade e confiabilidade na ordem jurídica, portanto, termina por seguir em sentido oposto aos princípios garantistas, ou ainda, à segurança jurídica. As leis novas ficam sendo instrumentos de governo, ao invés de tutela de bens. Relega-se o CP à categoria de mero apêndice da legislação extrapenal. Antes, trancassem-se os tipos penais numa caixa de Pandora!

Os crimes contra o Estado, como já é possível intuir, entrarão em vigor obedientes à confiabilidade jurídica, fazendo parte do "em parte" ultrapassado Código Penal Brasileiro. O professor italiano Ferrando Mantovani, expondo as linhas mestras do Schema di delega legislativa per um nuovo Códice Penal, assenta o entendimento de que a recuperação à centralização do Código Penal é uma expressão da racionalidade garantista. E continua explicando o desejado modelo italiano, como corpo de normas ordenado a tutelar os valores fundamentais de uma vida civilizada em sociedade, com a complementariedade marginal da legislação especial, que só se justifica se circunscrita a setores marginais, como as matérias de caráter eminentemente técnico, ou como as normas penais meramente sancionadoras de preceitos jurídico-administrativos, ou como a regulamentação excepcional de caráter temporal, a exemplo da legislação de emergência.

É óbvio que o legislador penal brasileiro ainda vai suar muito até alcançar um modelo efetivamente garantista, porém, o Projeto de Lei, objeto deste trabalho, com sua aprovação determinada pelo Congresso Nacional, pode ser um indício de que bons ventos estarão por vir.


9. O princípio da legalidade

Outra realidade da qual o jurista não pode se esquivar é a de que, tanto nos tipos previstos no Código Penal, quanto nos que residem na legislação extrapenal, é perceptível falta de clareza e objetividade. Isto atenta ferozmente contra o princípio da legalidade e contra o garantismo penal. Aliás, não é de forma alguma despiciendo explicar que sistema garantista, cognitivo ou de legalidade estrita querem exprimir a mesma idéia.

Dá ampla margem à discricionariedade, o uso dos conceitos indeterminados, elásticos nos textos legais, onde o mais célebre deles, no ordenamento brasileiro, é o de "mulher honesta", presente na redação do artigo 215 CP – posse sexual mediante fraude. Este conceito faz parte de uma "norma constitutiva", pois cria uma categoria distinta de indivíduos, porquanto se refere a diferenças pessoais e sociais. Poder-se-ia argumentar que este conceito de mulher honesta facilmente encontra limites na utilização do costume como método de interpretação. O tipo penal do art. 215, inserido que está no capítulo de crimes contra os costumes, contudo, não é o único a carregar este teor indefinido; ele é cercado de alguns outros da mesma espécie, além de o costume não ser um parâmetro objetivo suficiente para qualificar um desvio penal.

A racionalização do Direito Penal, hodiernamente, tem como pressuposto técnico o retorno à codificação, à recuperação da centralização do Código Penal. Parece o legislador caminhar em sentido contrário, ou seja, para a irracionalidade do Direito Penal, no momento em que o preenche com leis de formulação indeterminada, leis vazias, simbólicas, mágicas, que tão-somente se destinam a colocar em cena a diligência na luta contra certas formas de criminalidade.

Para se ter uma idéia da importância da Legalidade, antes de adentrar propriamente no modus operandi da violação ao princípio, é lícito tecer comentários sobre ele, já que é o alicerce de todo o sistema constitucional. Ele teve sua semente na Inglaterra do século XIII, no art.39 da Magna Carta, quando os súditos do rei João Sem Terra visando à contenção da discricionariedade do monarca, conseguiram inscrever o princípio da legalidade – ainda que diferente dos moldes em que se concebe atualmente – na Carta supra citada. Só em 1789, no artigo 5° da famosa Declaração de Direitos é que o princípio foi elaborado nos contornos de hoje, exaltando o nexo existente entre liberdade e legalidade. E, desde a Constituição Brasileira de 1824, o princípio encontra abrigo.

Um princípio como este, de dignidade constitucional, inserto numa cláusula pétrea (art. 5° inc.II CF/88), e repetido no artigo primeiro do Código penal, na conhecida expressão latina "nullum crimen, nulla poena sine praevia lege", não pode ceder espaços para que o legislador infraconstitucional ou qualquer outro operador do direito pratique atos contra ele. O princípio da legalidade fundamenta o Estado democrático de Direito, onde vige a regra da liberdade. Ele tem que se fazer prevalecer, diante de qualquer ação que ouse ferí-lo, para garantir a segurança jurídica. É do princípio da legalidade que todos os outros princípios vão haurir sua razão de ser; ao ferir o princípio da legalidade, portanto, estar-se-á negando todo o Estado de Direito.

Na célebre obra Direito e Razão, Ferrajoli leciona que há diferença entre o que se chama de ‘mera legalidade’ ou reserva legal e ‘legalidade estrita’. O primeiro é fruto do pensamento dos romanos e é dirigida aos juízes, enquanto que o segundo é expressão criada pelos iluministas e dirigida ao legislador. O juiz, para obedecer ao princípio, deve se ater à análise da subsunção do caso à hipótese legal. O legislador, por sua vez, para respeitar a estrita legalidade, precisa utilizar uma linguagem o mais cristalina possível para a definição das condutas contrárias ao dever ser.

Conforme palestra proferida no II Congresso de Direito Penal e Democracia, o professor Miguel Reale Júnior questionou se se estribar na lei seria suficiente para a certeza do direito. Ao responder negativamente, conclui que o direito trabalha com um instrumental incerto que são as palavras, e será o caso concreto que induzirá o juiz a uma determinada interpretação.

Infelizmente, parcela dos juízes brasileiros ainda não possui a consciência de que o princípio da legalidade deve ser aplicado sempre pró-libertatis, e não pró-punitionis, como se faz na realidade, a exemplo do beijo que condenou um cidadão a uma pena de seis anos por prática de ato libidinoso. Note-se que não só se fere a legalidade, como também a proporcionalidade, razoabilidade, e, é claro, a dignidade humana.

Daí se conclui que a violação ao princípio da legalidade, em suas duas acepções, representa um forte instrumento de governo, para se utilizar um eufemismo para a arbitrariedade. Os tipos genéricos, conforme já explicitado, são os que comprometem o entendimento do delito, permitindo várias interpretações, e, por conseguinte, tornando difícil a determinação do conteúdo exato da conduta delituosa. O tipo se ajustará, portanto, sempre de forma perfeita àquela ação praticada que se deseja punir, quando da análise da subsunção do fato à norma de teor indeterminado. Os indivíduos ficam expostos, dessa forma, à pessoa que detém o poder, pois será ela quem dará a interpretação que melhor lhe aprouver. E mais, se ela entender que a conduta praticada por Fulano ou Beltrano enquadra-se na hipótese normativa em análise...

Onde estará o princípio da reserva legal quando Fulano ou Beltrano forem condenados? Qual a lei específica que definiu o ato praticado como delituoso? Provavelmente, as respostas para estas indagações serão bastante lógicas: a primeira, na letra da lei, e a segunda, naquele que tinha legitimidade para dizer o direito. Esta segunda resposta é o âmago do problema suscitado desde antes, tendo em vista que é nela que se assenta a infeliz insegurança jurídica. Mas não se cometa o erro de dizer que a raiz do problema reside somente aí, tendo em vista a existência, também, da violação à legalidade estrita.


10. A legalidade e os crimes políticos

É mais freqüente a incidência dos tipos genéricos nos crimes políticos, – e aqui se entendem estes como os que atentam contra o Estado, contra a democracia, crimes de guerra, etc. – conforme a lição do saudoso professor Heleno Cláudio Fragoso.

Em breve análise comparada, vê-se no artigo 78 do Código Penal Francês, de 1810, o seguinte crime político de conteúdo vago: "quiconque aura pratique des machinations ou entretenu des intelligences avec les puissances étrangères ou leurs agents, pour les engager à commetre des hostilités ou à entreprendre la guerre contre la France ou pour leur en procurer les moyens, etc." As expressões maquinações, entendimentos, hostilidade têm, nessa norma, alcance indefinido. Quais os limites destes conceitos?

As leis nazistas, por sua vez, infladas pelo espírito da guerra, falavam em "rompimento da força defensiva do Estado, ou ainda, "o comportamento danoso ao povo", para estar consoantes ao regime totalitário. Aliás, foi como uma luva nas mãos do governo nazista as leis de conteúdo indeterminado, uma vez que ele podia dar legitimidade à sua arbitrariedade. A Constituição da República Federativa da Alemanha, em seu artigo 103, expressamente estatuiu a proibição do legislador penal do estabelecimento de "leis penais imprecisas, cuja descrição típica seja de tal forma indeterminada, que possa dar lugar a dúvidas intoleráveis sobre o que seja ou não permitido ou proibido". Note-se que esta Constituição poderia contemplar os legisladores de todos os ramos do direito; não o fez, todavia. Depreende-se, conseqüentemente, que somente ao legislador penal foi instituída esta proibição, por ser este ramo, o que trata dos bens jurídicos mais relevantes e valiosos, e, em assim sendo, o que, diante de uma violação ao artigo supra citado, mais prejuízos pode acarretar aos indivíduos tutelados por este ordenamento jurídico.

Do Brasil, também há de se mencionar normas desta espécie. É justamente na Lei de Segurança Nacional – Lei 7170 de 14 de dezembro de 1983 – que se encontrará o exemplo. A Lei 7170/83 é precisamente aquela que será revogada, assim que se aprove o Projeto de Lei que cuida do Título XII no CP, objeto do presente trabalho. Enfim, o art. 20 da Lei 7170/83 estabelece penas para quem "praticar atos de terrorismo...". É evidente que, no mínimo, os atos de terrorismo de 1983 não são os mesmos de 2003, e, paira no ar a pergunta que não quer calar: e qual o conteúdo do termo em exame? Ou, mais especificamente, quais os atos de terrorismo?


11. A legalidade no Projeto de Lei

É esta, exatamente, uma das grandes vitórias do Projeto de Lei de que se trata, qual seja, a circunscrição, especificação, a taxatividade precisa dos conceitos em branco dos crimes políticos, – na definição do professor Fragoso – em franca atenção ao garantismo penal e ao princípio da estrita legalidade. O novo artigo 371, que dispõe acerca do terrorismo, por exemplo, enumera de forma nítida quais as condutas que constituem este delito. A conseqüência disto é a aproximação da legislação penal pátria do modelo garantista, já que este visa a diminuir, o máximo possível, a margem de arbitrariedade nos textos legais.

Quando expõe os motivos dos crimes contra o funcionamento das instituições democráticas e dos serviços essenciais, na EM n° 00109, o também advogado Doutor Miguel Reale Júnior assevera que "institui-se, também, em substituição à previsão genérica da legislação em vigor, relativa à tentativa de impedir o livre exercício dos Poderes da União ou dos Estados, o crime de coação contra autoridade legítima, consistente em constranger, mediante violência ou grave ameaça, por motivo de facciosismo político, autoridade política a não fazer o que a lei permite ou a fazer o que ela não manda, no exercício de suas atribuições".

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Os crimes contra a Soberania Nacional, os crimes contra as Instituições Democráticas, previstos nos capítulos I e II do Projeto de Lei, além de terem a legalidade sempre em vista, vão tutelar os denominados bens-meios. Estes são instrumentos dos quais se utiliza o Estado Democrático de Direito para garantir as liberdades e os direitos fundamentais. Note-se, pelo que foi visto supra n. 4, o quão lento, custoso, árduo, etc. foi o processo de luta, consecução e consolidação destas garantias, direitos e liberdades. Um Estado forte e protegido nas suas decisões políticas fundamentais é essencial para o exercício da democracia pelos cidadãos.

Não são novidades os delitos que atentam contra o Estado Democrático de Direito, em relação às legislações de outros ordenamentos jurídicos.


12. Panorama mundial

Faz-se presente em quase toda a legislação penal alienígena, título que trata dos crimes contra o Estado. Melhor elucidando, em quase todos os Códigos Penais estrangeiros, estão inscritas condutas que atentam contra o Estado. O bem jurídico tutelado aí não é só o Estado, mas também a forma de governo, a independência, a segurança, etc.

Analisando-se a legislação dos outros países, vêem-se Estados que ainda guardam resquícios totalitários, a exemplo da Alemanha, do Chile, e da Venezuela. Esta afirmação é baseada no fato de que ambas as legislações alemã e chilena começam sua Parte Especial do Código Penal, não a proteger o valor fonte de todos os outros, mas sim, inauguram os delitos em espécie com os crimes atentatórios contra o Estado.

A Seção I do Código Penal Alemão vai se ater aos crimes de traição à paz, alta traição e exposição a perigo do Estado Democrático de Direito – numa tentativa de tradução fiel – de onde a preparação de uma guerra é delito com pena perpétua de privação de liberdade ou privação de liberdade não inferior a 10 anos (§ 80). Já o Código Penal Chileno, na mesma linha autoritária, faz o lançamento da sua Parte Especial no "Libro II, Título I: crimenes y simples delitos contra la seguridad exterior y soberania del Estado". E, haja vista este título tratar de "simples delitos", do artigo 106 a 110, é prevista a prisão perpétua do indivíduo. O Código Penal da Venezuela também protege a independência e a segurança da nação ao iniciar o rol dos delitos previstos no "Libro Segundo", ainda que as penas estabelecidas sejam mais suaves que as dos dois outros países.

Alguns dos países da América Latina adotaram, como o Brasil, a proteção à vida humana como preceito inicial da Parte Especial do Código, demonstrando a preocupação com o indivíduo, antes mesmo do Estado. Entre eles podem-se citar os Diplomas Penais da Argentina, o da Costa Rica, e o de El Salvador.

Na Europa, tem-se a França, fazendo jus à sua fama humanitária, discorrendo no "chapitre premier" da parte especial do Código, sobre o genocídio, crime que atenta contra a humanidade, e que pode acarretar a perpetuidade da reclusão penal. Portugal e Espanha colocam no centro da proteção, a vida, seguindo o Brasil; ou melhor, o Brasil, mais uma vez, inspirou-se nas legislações ibéricas, para variar um pouco.

O "Schema de delega legislativa por um nuovo Códice Penal", anteriormente citado, é um sistema a que almejam implantar Itália, França e Espanha, e conforme exposto, atende aos ensinamentos garantistas. Portanto, propugna-se o repúdio a todo e qualquer Código Penal da Opressão e Código Penal do Privilégio, demonstrando favorecimento incondicional a um Código Penal Personalíssimo.

O Schema terá como alicerce, um Código Penal Humanista, estabelecedor de hierarquias entre bens jurídicos, segundo a tríplice diretriz personalíssima que o fundamenta: 1) o caráter central do ser humano, que constitui o bem primário; 2) a conseqüente distinção entre bens-fins, direitos fundamentais da pessoa humana, e bens-meios, quais sejam, bens patrimoniais e bens supraindividuais (a família, a comunidade, o estado-administração, o estado unidade e suas instituições democráticas), que são instrumentos para a conservação, dignidade e pleno desenvolvimento da pessoa humana, em sua dimensão individual e social; 3) a conseguinte centralização dos direitos da pessoa humana, que por sua prioridade, devem ser incluídos topograficamente no início da Parte Especial do Código, seguidos depois pelos delitos-meios – em franca contraposição com os Códigos totalitários e autoritários, pela elevação dos bens público-coletivos a bens primários, relegando os bens do ser humano a bens-meios, intrumentais aos primeiros e protegidos no limite de sua própria instrumentalização.

O Projeto de Lei de crimes contra o Estado Democrático de Direito, no momento em que ocupar seu lugar no Código Penal representará uma maturidade na tentativa de alcançar os ideais garantistas expressos acima. Apesar de não organizado, o Código Penal passará a contemplar um modelo semelhante ao Schema italiano, o que, por derradeiro, ensejará as últimas exposições sobre o assunto.

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Sobre a autora
Suian Alencar Sobrinho

advogada, sócia fundadora do Veras Advocacia e Consultoria, e pós-graduanda em direito tributário pelo IBET.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALENCAR SOBRINHO, Suian. Comentários ao projeto de lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito:: Título XII. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 159, 12 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4585. Acesso em: 26 abr. 2024.

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