No julgamento do Habeas Corpus nº. 125836, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, ao indeferir o pedido formulado pela defesa de um Sargento do Exército, condenado por ameaça a sua mulher, também sargento, numa unidade residencial militar no bairro de Cambuci, em São Paulo, refutou a alegação de incompetência da Justiça Militar. Em razão de incidentes de violência do marido contra a esposa, esta passou a dormir na unidade militar, onde foi proibida a entrada do marido, dando início ao processo de separação judicial. Nesse período em que a mulher estava alojada na unidade militar, houve notícia de ameaças contra ela e o irmão. O marido foi denunciado pelos crimes de lesões corporais leves e ameaça. Segundo a denúncia, as ameaças ocorreram por celular, quando a mulher estava em serviço na Base de Administração e Apoio do Ibirapuera, e foi ouvida por outros militares que estavam em sua companhia. As ameaças repercutiram no ambiente da base, havendo necessidade de o marido ser proibido, pelo comando, de entrar no local ou de conversar com a esposa sem a presença de outros dois militares. O comando também autorizou que a sargento passasse a pernoitar no quartel.
O réu foi absolvido da primeira imputação, mas condenado a um mês de prisão pelo Conselho Permanente de Justiça da 1ª. Auditoria da 2ª. Circunscrição Judiciária Militar pelo crime de ameaça (art. 223, caput, do Código Penal Militar).
No Habeas Corpus impetrado no Supremo Tribunal Federal, a defesa insistiu na tese da incompetência, argumentando que não houve violação a bens jurídicos tipicamente associados à função militar. O relator, Ministro Dias Toffoli, porém, votou no sentido de denegar a ordem. Ele citou trecho do acórdão do Superior Tribunal Militar que mantivera a competência da Justiça Militar, segundo o qual, apesar das alegações da defesa, os acontecimentos também tiveram desdobramentos na caserna, uma vez que as ameaças ocorreram quando a mulher estava em serviço e na presença de outros militares: “Não foi dentro da intimidade do casal”, afirmou.
Para o relator, o delito “transcendia a violência doméstica contra a mulher, pois a conduta negou obediência a princípios inerentes às Forças Armadas, como a disciplina que deve ser observada no ambiente da caserna”. Concluiu, assim, pela incidência no caso do art. 9º, II, a, do Código Penal Militar. A decisão foi unânime.
Assim dispõe o referido artigo do Código Penal Militar:
"Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
"(...)
"II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:
"a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;"
Parece-nos equivocada a decisão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, pois se trata de uma infração penal que, nem remotamente, foi praticada em detrimento de bem, serviço ou qualquer interesse das Forças Armadas, com poder de atrair a competência da Justiça Militar, nos termos do art. 124 da Constituição Federal.
Muito ao contrário, a suposta conduta delituosa insere-se no tipo incriminador previsto no art. 147 do Código Penal, c/c a Lei nº. 11.340/06 (Lei Maria da Penha), a ser processada e julgada por uma Vara de Violência Doméstica e Familiar, já que foi afastada a incidência das disposições da Lei nº. 9.099/95 (vide a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº. 19 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4424 - decisões com as quais não concordamos).
Obviamente, o art. 9º. do Código Penal Militar (instituído por um Decreto-Lei de 21 de outubro de 1969), hoje só pode ser interpretado à luz da Constituição Federal. Assim, crime militar não é simplesmente aquele praticado por militar contra outro militar em serviço, mas aquele que, de maneira direta (e não meramente reflexa ou indiretamente) atinja um interesse (ou o patrimônio ou um serviço prestado) pelas Forças Armadas, pela Polícia Militar ou pelos Corpos de Bombeiros. Qualquer outra interpretação dada ao dispositivo da lei especial será contrária ao texto constitucional e, assim, deverá ser declarado pela Plenário da Corte Suprema.
A Justiça Militar, em uma Democracia, tem uma Jurisdição absolutamente excepcional, ainda mais quando estamos falando de um crime praticado em tempo de absoluta paz! Chega a ser, inclusive, inadmissível a existência de tal Justiça especial para julgar os chamados "crimes militares impróprios". Jurisdição Militar deve existir para julgamento de delitos militares próprios, tipificados em um Código Penal Militar, quando praticados em tempo de guerra (ou em tempo de paz, mas em razão de fatos ocorridos durante o período de guerra). Submeter um cidadão à Justiça Castrense em razão de uma desavença familiar chega a ser ridículo!
Aliás, se fizermos um rápido escorço histórico, vamos relembrar que, desde a vigência do atual (?) Código de Processo Penal, o art. 1º., III, prevê a existência da Justiça Militar. Ao comentar este inciso, em seus "Comentários ao Código de Processo Penal Brasileiro", em uma edição de 1942, Câmara Leal já afirmava tratar-se de uma Justiça especial instituída, "fora da Justiça comum", com competência para o "julgamento dos crimes atentatórios da segurança nacional", tratando-se de "um sistema, cuja regulamentação pode oscilar, segundo o momento histórico da vida nacional, dadas as transformações políticas." (Rio de Janeiro, Editora Freitas Bastos, p. 64).
Será que uma ameaça de um marido ciumento contra a mulher, por meio do celular, atenta contra a segurança nacional, ou se adequa a um sistema repressivo atinente a interesses superiores do Estado? Parece-nos que os Tribunais Militares têm algo mais para fazer...
Portanto, é chegada a hora de conformar o art. 9º. do Código Penal Militar à Constituição, mesmo porque, como afirma Lothar Kuhlen, "la interpretación conforme la Constitución pertenece hoy, como ´instrumento totalmente indiscutible`, a las ´reservas seguras del método de la ciencia jurídica`. (...) Uma norma há de ser interpretada conforme a la Constitución cuando existen varias posibilidades interpretativas de las cuales por lo menos una conduce a la conformidad de la norma a la Constitución, y por lo menos outra, a la inconstitucionalidad de la norma." (La interpretación conforme a la Constitución de las leyes penales, Madrid: Marcial Pons, 2012, págs. 23 e 24).