RESUMO
O Direito do Consumidor tem como fundamento principal a necessidade de proteção do consumidor em face dos fornecedores, em razão de sua fragilidade diante deles. Essa fragilidade é, também, o fundamento de dois dos mais importantes institutos desse ramo do direito: a vulnerabilidade e a hipossuficiência do consumidor. Neste trabalho, é analisado o papel do consumidor na economia atual, caracterizada especialmente por ser uma economia globalizada, onde as barreiras geográficas não são mais absolutas. São analisados, ainda, os institutos acima referidos, ou seja, a vulnerabilidade e a hipossuficiência, com a abordagem de suas características principais, suas semelhanças, e, principalmente, suas diferenças. Em relação a esse aspecto, observa-se por fim a distinção dos dois institutos, apesar de suas semelhanças, abordando ainda a influência da aplicação dessa diferenciação na efetivação da proteção ao consumidor, objetivo maior desse ramo do direito. Para tanto, são utilizadas ainda decisões judiciais das mais variadas cortes.
Palavras-chave: Direito do Consumidor; Código de Defesa do Consumidor; economia globalizada; vulnerabildiade; hipossuficiência.
1 INTRODUÇÃO
O Direito do Consumidor surgiu recentemente, fruto da evolução das inúmeras normas esparsas que há séculos norteavam as relações de consumo em todo o mundo. Entre essas normas, encontram-se algumas com registros bastante antigos, como por exemplo o Código de Hamurábi, que data de 1700 a.C.; encontram-se também normas mais recentes, como a legislação protetora do consumidor sueca, de 1910, e a Lei antitruste norte-americana.
Nesse sentido, surgiu no Brasil o Direito do Consumidor, resultado da evolução das normas existentes e também da evolução da economia mundial. Esta passou ao longo do tempo de uma economia localizada, manufaturada e extremamente pequena para uma economia caracterizada pelo fenômeno da globalização, onde as barreiras geográficas são cada vez mais desprezadas.
Essa evolução da economia mundial deixou o consumidor desprotegido, em razão da sua inferioridade em inúmeros aspectos quando comparado com os enormes grupos de fornecedores. Há que se ressaltar, ainda, que o próprio mecanismo das relações de consumo atuais fazem com que o consumidor fique extremamente impotente diante de determinadas práticas comerciais, necessitando, portanto, da proteção legal a ele conferida.
Assim, surge o Código de Defesa do Consumidor (CDC), em obediência a exigência constitucional, prevista nos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT’s). O referido diploma nasce com o objetivo claro de proteger o consumidor, evitando os abusos cometidos por fornecedores em razão da já citada fragilidade. Para tanto, o CDC determina quem são os sujeitos das relações de consumo, inclusive conceituando-os; estabelece regras claramente desiguais, em favor dos consumidores, a fim de igualá-los com os fornecedores nas relações consumeiristas etc.
O CDC, ainda, reconheceu em seu texto inúmeros institutos ou características do consumidor que deram origem ao próprio diploma. Dois dos mais importantes institutos reconhecidos pelo diploma consumeirista foram a vulnerabilidade e a hipossuficiência do consumidor.
Ambas dizem respeito à fragilidade do consumidor diante dos fornecedores, em seus mais variados aspectos, porém, vale ressaltar elas são diferentes, embora bastante semelhantes. Podemos citar como exemplo de diferença entre os dois institutos o fato de ser considerada a vulnerabilidade como atributo de todos os consumidores, e a hipossuficiência, por outro lado, como atributo apenas de alguns. Semelhanças também existem, sendo exemplo de tal situação um dos objetivos desses institutos, que é efetivar a isonomia constitucional nas relações de consumo.
Assim, tem este trabalho o objetivo de analisar o consumidor na economia atual, principalmente no que tange à sua hipossuficiência e à vulnerabilidade. Ainda, busca o presente trabalho analisar os institutos da vulnerabilidade e da hipossuficiência, destacando, ao longo de seu desenvolvimento, as semelhanças e diferenças entre eles, e também a aplicação prática dos dois institutos na proteção ao consumidor, verificando-se o entendimento jurisprudencial acerca do tema.
Este trabalho de conclusão de curso tem caráter teórico, com o objetivo de refletir sobre o tema abordado. Assim, a pesquisa será exclusivamente teórica, sendo consultada a mais ampla bibliografia encontrada sobre o tema.
Nesse contexto, serão adotados como fontes não apenas os livros, mas também sites da internet, jurisprudências dos tribunais e quaisquer outras fontes bibliográficas que sejam encontradas no decorrer do trabalho.
2 O DIREITO DO CONSUMIDOR
2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DO CONSUMIDOR
A proteção aos direitos do consumidor como um ramo autônomo do direito é um fenômeno recente, especialmente no Brasil, porém, não significa que a proteção ao consumidor, na prática e ainda que de forma esparsa, também o seja. Essa proteção tem registros muito antigos, que nos remetem até mesmo às civilizações mais distantes, como a mesopotâmica.
José Geraldo Brito Filomeno[1] destaca que essa proteção surgiu de forma tímida, por meio de normas isoladas, resultantes dos princípios e dos costumes de cada sociedade, que foram sendo ampliadas cada vez mais, seja em relação à amplitude dessas normas ou ao próprio número delas. No Código de Hamurábi, por exemplo, encontram-se normas reguladoras do comércio, cuja supervisão era responsabilidade do palácio. Portanto, se já existia preocupação com o comércio, com o lucro excessivo, é porque já havia uma preocupação com o consumidor. Segundo o referido autor, ainda, um exemplo claro dessa proteção é que nesse código havia um dispositivo estabelecendo que em caso de defeitos estruturais em embarcações, o construtor estaria obrigado a refazê-lo, no prazo de um ano. Uma noção muito semelhante à de vícios redibitórios existente em nosso ordenamento.
Encontram-se, ainda, registros isolados de proteção ao consumidor em outras civilizações antigas, como Egito e Índia, esta com o Código de Manu, que previa punições pecuniárias para aqueles que adulterassem produtos postos à venda, ou vendessem bens iguais a preços diferentes.
No Direito Romano, que possui influência inegável no direito pátrio, era o vendedor responsável pelos vícios da coisa vendida, a menos que os ignorasse. Tal ressalva, entretanto, inexistiu no período Justiniano, de forma que o vendedor seria responsável pelos vícios do produto vendido ainda que os ignorasse, sendo o conhecimento desse vício apenas um agravante à pena do vendedor, que deveria devolver o que recebeu em dobro, como bem destaca João Batista de Almeida[2].
Essa evolução da proteção ao consumidor foi ocorrendo de forma bastante lenta ao longo do tempo, e de forma bastante esparsa, passando a ser cada vez mais organizada e seguindo a evolução das relações comerciais. Nesse sentido, basta analisar as regras iniciais de proteção, passando pelas proteções em códigos penais ou civis, chegando às legislações específicas sobre o tema. Em Portugal, por exemplo, o Código Penal de 1852 tratava da proteção ao consumidor. Nos Estados Unidos, como afirma Miriam de Almeida Souza[3], a Revolução Americana pela independência foi uma revolta consumeirista, tendo em vista que o principal fator para a explosão da revolta foi a indignação dos americanos com o sistema de comércio britânico, onde eles eram obrigados a comprar os produtos manufaturados ingleses pelos preços estabelecidos por estes.
Como legislação específica sobre o tema, tem-se como um dos primeiros registros a legislação protetora do consumidor da Suécia, de 1910. Pouco tempo depois, os Estados Unidos criaram a Federal Trade Comission, que tinha os objetivos principais de aplicar a lei antitruste e defender os interesses do consumidor, como orienta o professor Rizzato Nunes[4]. No Brasil, surgiu o Direito do Consumidor entre as décadas de 40 e 60, época da criação de várias leis sobre saúde, proteção econômica etc. Segundo o ilustre doutrinador, deve-se destacar, também, o enorme atraso da legislação protetiva do consumidor no Brasil, tendo em vista que os Estados Unidos, cuja sociedade é caracterizada por ser capitalista de massa, já possuía tal legislação um século antes.
Essa proteção no ordenamento jurídico pátrio foi ganhando força aos poucos, mas de forma relativamente acelerada, tendo início com a Lei da Economia Popular, e seguindo com outras leis, até chegar ao status de princípio constitucional. A proteção ao consumidor foi consagrada na Carta Magna de 1988, no art. 170, princípio da ordem econômica. Foi consagrada também a proteção ao consumidor na Constituição Federal nos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), art. 48, sendo determinada a criação do Código de Defesa do Consumidor.
Nesse sentido, pode-se observar que ao longo dos séculos as relações comerciais foram evoluindo, tornando-se mais complexas, e em conseqüência, era cada vez maior a necessidade de se proteger o consumidor, cada vez mais frágil diante das condições que se apresentavam. Assim, das simples relações de troca de mercadorias, passando pelo mercantilismo, chegou-se à economia atual, globalizada e com uma produção de massa, e também à proteção do consumidor como hoje conhecemos.
2.2 O CONSUMIDOR NA ECONOMIA ATUAL
A economia atual, como dito anteriormente, é globalizada e baseada em uma produção de massa. Tal globalização consiste em um mercado mundial, sem fronteiras, de forma que consumidores de um país relacionam-se com fornecedores de outros de forma extremamente facilitada. Já o fato de ser uma economia de massa caracteriza-se por envolver grandes volumes de produtos e de dinheiro, não sendo mais as relações comerciais pessoais e diretas como eram tempos atrás. Os exemplos marcantes dessa economia atual são os shopping centers, as multinacionais, os grandes hipermercados etc.
Essa economia globalizada, ou melhor, todo o processo de evolução das relações de consumo refletiu também nas relações sociais, econômicas e jurídicas. Nesse sentido, orienta o Professor João Batista de Almeida que
Era natural que a evolução das relações de consumo acabasse por refletir nas relações sociais [...] Pode-se mesmo afirmar que a proteção ao consumidor é conseqüência direta das modificações havidas nos últimos tempos nas relações de consumo, representando reação ao avanço rápido do fenômeno que deixou o consumidor desprotegido diante das novas situações decorrentes do desenvolvimento.[5]
Nesse contexto, verifica-se que o consumidor, diante de todo esse crescimento experimentado pelo comércio mundial, ficou desprotegido, tendo que submeter-se às práticas dos fornecedores para adquirir os bens que necessitava. Caracterizada está, então, a vulnerabilidade do consumidor, instituto que iremos tratar mais a frente. Importante ressaltar, também, que a vulnerabilidade do consumidor é um fenômeno reconhecido internacionalmente, sendo, inclusive, tratada pela ONU, na resolução da ONU 39/248, tamanha a necessidade de se proteger o consumidor dos abusos praticados no âmbito internacional. Em tal diploma, a Organização das Nações Unidas trata precisamente da vulnerabilidade do consumidor, como demonstra o trecho abaixo:
[...] A nível supra-estatal, a Organização das Nações Unidas, em sua resolução nº 39/248, aprovou, em sessão plenária de 9 de abril de 1988, uma política de proteção ao consumidor, destinada aos estados filiados, tendo em conta os interesses e necessidades dos consumidores de todos os países e particularmente dos em desenvolvimento, reconhecendo que os mesmos consumidores enfrentam amiúde desequilíbrio em face da capacidade econômica, nível de educação e poder de negociação. Reconhece ainda que todos os consumidores devem ter o direito de acesso a produtos que não sejam perigosos, assim como o de promover um desenvolvimento econômico e social justo, eqüitativo e seguro. [...][6]
Como anteriormente dito, como produto dessa evolução econômica rumo à globalização e também do crescimento do volume de produção, até se chegar à produção de massa atual, tem-se o desenvolvimento dos meios de proteção ao consumidor e da importância do tema nos meios jurídico, econômico e social.
Esse aperfeiçoamento da legislação culminou com a Carta Constitucional de 1988, que trouxe a proteção do consumidor expressamente em seu texto. Prevê a Constituição Federal, no seu artigo 5º, inciso XXXII, que “O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Trata ainda da proteção ao consumidor no artigo 24, VIII; no artigo 170, V, anteriormente citado; e no artigo 48 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias. Este último é de inestimável importância, pois tratava da edição do Código de Defesa do Consumidor.
De sua criação até os dias atuais, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) sofreu várias alterações, na busca de um aperfeiçoamento. É importante ressaltar, também, que o fundamento basilar do diploma em questão é a necessidade de proteção do consumidor em face da fragilidade deste diante do gigantesco mecanismo de funcionamento das relações de consumo atuais e das constantes alterações que ocorrem nos mercados mundiais, ou seja, a vulnerabilidade do consumidor.
Não se pode esquecer, contudo, que o objetivo principal dos meios de defesa do consumidor, é promover uma harmonização dos interesses de fornecedores e consumidores, a fim de evitar conflitos entre estes, objetivo este presente no próprio CDC, em seu art. 4º:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:
a) por iniciativa direta;
b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;
c) pela presença do Estado no mercado de consumo;
d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;
IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;
V - incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo;
VI - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores;
VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos;
VIII - estudo constante das modificações do mercado de consumo.[7]
O referido dispositivo trata da Política Nacional das Relações de Consumo, reconhecendo que o objetivo dessa política nacional é a proteção ao consumidor, o atendimento às suas necessidades, mas ressalta, em vários pontos, a intenção de promover a harmonia e o equilíbrio de interesses, a boa-fé nas relações consumeiristas. A esse respeito, José Geraldo Brito Filomeno ressalta que
A harmonização de que cuida o inciso III do art. 4º, a seu turno, refere-se à tranqüilidade, ou, antes até, ao estado de paz, sem conflitos, que devem existir entre a proteção dos interesses dos consumidores, de forma geral, de um lado, e a busca de novas conquistas e inovações tecnológicas de outro, viabilizando-se, em conseqüência, o desenvolvimento econômico, tal como previsto pelo art. 170 da Constituição Federal, que, como já vimos, estabelece as bases para a ordem econômica idealizada. Referida tranqüilidade deve ser sempre baseada na boa-fé e no equilíbrio nas relações fornecedores/consumidores.[8]
Como se percebe claramente, O CDC buscou possibilitar a coexistência da proteção ao consumidor com o desenvolvimento econômico, de forma a atender a todos os interesses e princípios constantes da Carta Magna. Buscou, ainda, garantir a boa-fé nos negócios entre consumidores e fornecedores, sendo esta uma forma, inclusive, de efetivar a proteção ao consumidor e, também, ao próprio fornecedor.
2.3 OS SUJEITOS DA RELAÇÃO DE CONSUMO
2.3.1 Consumidor
O Código de Defesa do Consumidor trouxe um conceito legal dos sujeitos da relação de consumo, que são o consumidor e o fornecedor. Segundo o artigo 2º do CDC, “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. O parágrafo único do referido artigo determina que equipara-se a consumidores a coletividade de pessoas que tiver intervindo na relação, ainda que sejam indetermináveis.
O conceito trazido pelo Código é bastante amplo, e foi elaborado com base no aspecto econômico do consumidor. Conforme ensinamento do professor José Geraldo Brito Filomeno[9], esse conceito poderia ser fundado ainda em aspectos psicológicos, sendo o consumidor o sujeito sobre o qual se estuda as reações para se individualizar a produção e descobrir a motivação para levá-lo ao consumo; sociológicos, considerando-se consumidor todo aquele que adquire ou utiliza bens e serviços, mas pertence a uma determinada categoria social, demonstrada nos bens ou serviços utilizados ou adquiridos; e muitos outros, como o aspecto filosófico, o literário etc.
Assim, o consumidor, para o direito pátrio, é todo aquele que adquire bem para uso próprio ou de sua família, ou que tem a prestação do serviço destinada a benefício unicamente seu ou de sua família. Deve-se destacar, porém, o parágrafo único do art. 2º do CDC, que diz: “equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.” Portanto, o legislador brasileiro protegeu, ainda, a coletividade de pessoas que possam estar sujeitas às ações dos fornecedores, direta ou indiretamente; protegeu a universalidade de consumidores que por algum motivo estejam ligados a um determinado produto ou serviço. Um exemplo claro disso é a proteção oferecida pelo Código de Defesa do Consumidor no que se refere às propagandas, pois em razão da própria natureza desse instrumento dos fornecedores, não se pode determinar quantas e quais pessoas serão atingidas por ela.
Outro aspecto do conceito legal de consumidor a ser destacado é a possibilidade ou não de serem as pessoas jurídicas consumidoras. Que ela pode ser consumidora, não há dúvida alguma. A questão em torno dessa possibilidade é se a pessoa jurídica pode ser considerada consumidora em qualquer situação ou não. Um dos motivos principais dessa controvérsia reside em duas características do CDC, que acabam por entrar em contradição quando levadas às pessoas jurídicas: o Código foi criado para proteger os consumidores, visando alcançar o maior número de situações possíveis; porém, o mesmo CDC tem como fundamento básico a fragilidade do consumidor, a sua vulnerabilidade, a subordinação econômica do consumidor, que não existiria quando se fala em pessoas jurídicas, ou pelo menos não em todas as situações.
Nesse contexto é que se apresentam as tendências do consumeirismo brasileiro no que se refere à esse tema: a dos finalistas, a dos maximalistas, e a finalista mitigada, ainda segundo o ensinamento de José Geraldo Brito Filomeno[10].
Os finalistas afirmam que consumidor é apenas aquele que adquire o bem ou serviço em proveito próprio, ou seja, para satisfação de necessidades suas e de sua família, e não para comercialização ou para acrescentá-lo à sua cadeia produtiva. Segundo essa corrente, portanto, a figura do consumidor restringe-se apenas àqueles que adquirem os produtos como último destino, exclusivamente, por serem eles mais vulneráveis. Segundo os finalistas, portanto, as pessoas jurídicas poderiam ser consumidoras em situações bastante excepcionais.
Os maximalistas, por outro lado, acreditam que a legislação consumeirista visa proteger o consumidor de forma geral, não excluindo os profissionais. O CDC instituiu normas e princípios que devem ser aplicados ao maior número de relações de mercado possíveis, abrangendo todos os agentes, inclusive aqueles que ora são consumidores e ora fornecedores. Destinatário final, portanto, seria o destinatário fático do produto, aquele que o adquire e o consome.
Além dessas duas correntes, um pensamento mais recente fez surgir uma terceira: a finalista mitigada. Segundo esse pensamento, as pessoas jurídicas podem ser consumidoras, mas para que possam ser caracterizadas como tal deve ser analisada a finalidade da aquisição do produto ou da utilização do serviço. Nesse sentido, se uma pessoa jurídica do ramo de supermercados adquire produtos alimentícios para revender, ela não será considerada consumidora; entretanto, se essa mesma pessoa jurídica adquire computadores para serem utilizados no escritório, ela será considerada consumidora.
Essa teoria tem como fundamento exatamente a vulnerabilidade do consumidor. Ao comprar produtos que serão revendidos ou utilizados na sua cadeia produtiva, presume-se que a pessoa jurídica possui algum conhecimento sobre tais produtos, bem como capacidade intelectual e econômica para defender-se de eventuais vícios no negócio jurídico de forma equilibrada, não fazendo jus, portanto, à proteção do CDC. Ao comprar produtos como destinatária final, ou seja, ao adquirir um produto não para acrescentar à sua cadeia produtiva ou para revender, não há que se esperar de tal pessoa jurídica que tenha conhecimentos técnicos sobre o produto ou serviço em questão, ficando sujeita à determinadas práticas abusivas do fornecedor e, portanto, merecendo proteção do Código de Defesa do Consumidor.
2.3.2 Fornecedor
O Código de Defesa do Consumidor também trouxe um conceito legal de fornecedor, a exemplo do que fez com o consumidor. Essa conceituação pelo CDC de quem são os fornecedores foi um passo muito importante dado pelo legislador pátrio, pois permite a identificação de todos aqueles que estão sujeitos às normas da legislação consumeirista e que, portanto, devem cumprir o que é por ela estabelecido e arcar com as sanções em caso de descumprimento. Esse conceito encontra-se no art. 3º, que diz:
Art. 3°. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.[11]
O legislador buscou, ao elaborar o conceito de fornecedor, abranger o maior número de situações possíveis, de forma que não utilizou termos específicos como “industrial”, “banqueiro” etc., evitando citar classes, mas sim as atividades. Nesse sentido, afirma José Geraldo Brito Filomeno, no Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto que:
[...] são considerados todos quantos propiciem a oferta de produtos e serviços no mercado de consumo, de maneira a atender às necessidades dos consumidores, sendo despiciendo indagar-se a que título, sendo relevante, isto sim, a distinção que se deve fazer entre as várias espécies de fornecedor nos casos de responsabilização por danos causados aos consumidores, ou então para que os próprios fornecedores atuem na via regressiva e em cadeia da mesma responsabilização, visto que vital a solidariedade para a obtenção efetiva de proteção que se visa oferecer aos mesmos consumidores.[12]
Ainda observando essa amplitude do conceito legal de fornecedor, cabe ressaltar que pode ser fornecedor pessoa física ou jurídica nacional, estrangeira, pública, privada, entes despersonalizados etc. Como exemplo deste último, tem-se a situação da massa falida que é autorizada a continuar as atividades da empresa sob regime de quebra, para que se possa conseguir ativos mais rapidamente e fazer frente ao concurso de credores.
Porém, mesmo com essa enorme amplitude dada pelo CDC ao conceito de consumidor, os bancos passaram a defender a idéia de que o referido diploma não se aplicava a eles. Segundo as instituições financeiras, além de prejudicar o Sistema Financeiro Nacional, o CDC era inconstitucional, já que, segundo tal grupo, a competência para tratar dessa matéria era de lei complementar, e o CDC foi aprovado como lei ordinária.
A matéria foi intensamente discutida na doutrina e nos tribunais. Doutrinariamente, há que se ressaltar o pensamento do professor Nelson Nery Júnior, que destacava um dos aspectos do conceito de consumidor para justificar a aplicação do CDC aos bancos, qual seja, ser o consumidor destinatário final. Assim, dizia o ilustre doutrinador Nelson Nery Júnior:
Havendo outorga do dinheiro ou do crédito para que o devedor o utilize como destinatário final, há a relação de consumo que enseja a aplicação dos dispositivos do CDC. Caso o devedor tome dinheiro ou crédito emprestado do banco para repassá-lo, não será destinatário final, e, portanto, não há que se falar em relação de consumo. Como as regras normais de experiências nos dão conta de que a pessoa física que empresta dinheiro ou toma crédito de banco o faz para sua utilização pessoal, como destinatário final, existe aqui presunção hominis, júris tantum, de que se trata de relação de consumo. O ônus de provar o contrário, ou seja, que o dinheiro ou crédito tomado pela pessoa física não foi destinado ao uso final do devedor, é do banco, quer porque se trata de presunção a favor do mutuário ou creditado, quer porque poderá incidir o art. 6.º, VIII, do CDC, com a inversão do ônus da prova a favor do consumidor.[13]
Evidente a posição adotada, de que os bancos estariam sujeitos à aplicação do CDC. Entretanto, como anteriormente dito, a discussão não ficou restrita apenas à doutrina, mas chegou até os tribunais. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), inúmeras foram as decisões no sentido de aplicação do CDC aos bancos, resultando, inclusive, na edição da súmula 297.
Os bancos, inconformados com tal situação, contestaram então a constitucionalidade do CDC, por meio da ADI nº 2591, alegando dentre outros argumentos, o vício formal antes mencionado, por ser a competência para tal matéria reservada, supostamente, a lei complementar, e sendo o CDC uma lei ordinária.
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em tal ação de inconstitucionalidade, que o CDC aplica-se aos bancos e às instituições financeiras. Dentre os argumentos utilizados, vale destacar o do Ministro Cezar Peluso, que defendeu tal aplicação porque o objeto regulado pelo diploma consumeirista é a relação entre bancos e clientes estritamente sob o aspecto das relações de consumo, e não sob o aspecto financeiro, não interferindo, portanto, no Sistema Financeiro Nacional.
Além disso, foi refutada a alegação de vício formal, não havendo dúvidas acerca do cumprimento de todos os requisitos constitucionais para elaboração da norma, inclusive obediência às regras de competência e processo legislativo.
O CDC também seguiu uma linha de amplitude ao tratar das atividades dos fornecedores, criando uma lista que abrange a quase totalidade das atividades possíveis, embora essa lista seja meramente exemplificativa. Assim, a condição de fornecedor está ligada à atividade de cada um deles, desde que coloquem os produtos e serviços frutos de sua atividade efetivamente no mercado, nascendo daí a responsabilidade por danos causados aos destinatários, quais sejam, os consumidores.
3 A VULNERAILIDADE COMO ATRIBUTO DO CONSUMIDOR
3.1 NOÇÃO DE VULNERABILIDADE
O Código de proteção ao consumidor, como bem destaca o professor Rizzatto Nunes[14], é uma legislação declaradamente protecionista. É protecionista até mesmo por sua essência, que é a necessidade de proteção do consumidor quando da aquisição de certos produtos e serviços.
Segundo o referido doutrinador, ainda, tal proteção visa garantir ao consumidor a preservação da sua dignidade, garantindo ampla proteção moral e material, referindo-se à qualidade de vida, mas não só no aspecto material, mas também no aspecto moral e psicológico.
Essa proteção conferida dada pela lei ao consumidor é baseada em inúmeros princípios, e visa atingir, também, vários outros princípios. Dentre eles, estão a dignidade da pessoa humana, a proteção à saúde, à vida e à segurança, a transparência, a harmonia nas relações de consumo, e, principalmente, a vulnerabilidade do consumidor. Todos esses princípios estão reconhecidos ao longo de todo o CDC, mas o art. 4º trata, de forma geral, de muitos deles.
Nesse sentido, ensina o professor Rizzatto Nunes que:
Tal reconhecimento é uma primeira medida de realização da isonomia garantida na Constituição Federal. Significa ele que o consumidor é a parte fraca na elação jurídica de consumo. Essa fraqueza, essa fragilidade, é real, concreta, e decorre de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de ordem econômica.[15]
Como se percebe, o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor tem como objetivo efetivar a isonomia nas relações de consumo. Ora, se claramente se verifica a desigualdade entre as partes, é da essência do princípio da isonomia (ou da igualdade) o tratamento diferenciado entre essas partes, a fim de atingir uma igualdade prática. Em outras palavras, sendo o princípio da igualdade aquele segundo o qual deve-se tratar os desiguais de forma diferente, para que no fim se atinja a igualdade entre eles, sem dúvida alguma deve-se proteger o consumidor, que é frágil em relação aos fornecedores, a fim de que haja equilíbrio nas relações de consumo.
Nesse contexto, a vulnerabilidade significa, para o direito do consumidor, característica daquele que está suscetível a sofrer ataques, ou seja, daquele que, por sua natureza, é mais fraco nas relações de consumo.
Destacam-se, ainda, os dois aspectos dos quais decorrem a vulnerabilidade: o de ordem técnica e o de ordem econômica. No entendimento do professor Fábio Konder Comparato, o consumidor certamente é aquele que não possui conhecimento nem controle sobre os meios de produção, e, ainda, não possuir recursos para fazer frente àqueles que os detêm, submetendo-se ao poder dos titulares de bens de produção.
Em relação a esses aspectos técnico e econômico, Luiz Antonio Rizzatto Nunes diz:
O primeiro está ligado aos meios de produção, cujo conhecimento é monopólio do fornecedor. E quando se fala em meios de produção não se está apenas referindo aos aspectos técnicos e administrativos para a fabricação e distribuição de produtos e prestação de serviços que o fornecedor detém, mas também ao elemento fundamental da decisão: é o fornecedor que escolhe o que, quando e de que maneira produzir, de sorte que o consumidor está à mercê daquilo que é produzido. [...] O segundo aspecto, o econômico, diz respeito à maior capacidade econômica que, por via de regra, o fornecedor tem em relação ao consumidor. É fato que haverá consumidores individuais com boa capacidade econômica e às vezes até superior à de pequenos fornecedores. Mas essa é a exceção da regra geral.[16]
Desse modo, observa-se que a vulnerabilidade não é um atributo restrito a alguns consumidores, apenas, mas é inerente a todos eles. É presumida de forma absoluta, independente da classe social ou econômica a que pertencem os consumidores.
3.2 AS ESPÉCIES DE VULNERABILIDADE
A doutrina divide a vulnerabilidade do consumidor de inúmeras formas diferentes, levando em consideração vários aspectos. Nesse contexto, vale considerar a classificação realizada por Paulo Valério Dal Pai Moraes[17]. Para o doutrinador, a vulnerabilidade pode ser considerada nos seguintes aspectos: técnico, jurídico, político, psíquico, ambiental, econômico e social.
A vulnerabilidade técnica, que é uma das mais acentuadas, e perceptíveis, decorre do não conhecimento técnico do consumidor dos meios de produção e dos produtos ou serviços em si, ficando ele sujeito ao poder dos fornecedores, tendo como única forma de “proteção” a confiança na boa-fé destes. Essa vulnerabilidade vem sendo cada vez mais acentuada, posto que a cada dia as relações no mundo moderno tornam-se mais complexas, de modo que é impossível que alguém detenha todos os conhecimentos sobre todos os produtos ou serviços. Assim, mais importante se faz a proteção legal ao consumidor.
A vulnerabilidade jurídica, por sua vez, caracteriza-se como a dificuldade encontrada pelo consumidor para defender seus direitos, seja na esfera administrativa ou judicial. Há, porém, alguns doutrinadores que apontam uma outra forma de entender essa vulnerabilidade jurídica, como Cláudia Lima Marques[18], que defende ser a vulnerabilidade jurídica a falta de conhecimentos jurídicos, contábeis ou econômicos. Esta caracterização sofre algumas críticas, por se relacionar mais ao aspecto técnico que ao jurídico propriamente dito.
A vulnerabilidade política, também chamada de vulnerabilidade legislativa, é aquela resultante da falta de organização do consumidor brasileiro, inexistindo organizações com poder para representar o consumidor perante os órgão legislativos, o que enfraquece a sua defesa legal. Como agravante dessa falta de organização, há a organização dos fornecedores, constituindo, nas palavras de Ada Pellegrini[19], um grande lobby, com enorme força no cenário político nacional.
A vulnerabilidade psíquica ou biológica diz respeito à “fragilidade” do consumidor diante do enorme número de estímulos que ele recebe para escolher qual produto adquirir ou serviço utilizar. Por isso o marketing, capaz de influenciar o consumidor criando desejos, necessidades etc. é hoje extremamente importante para os fornecedores, sendo bastante utilizado.
A vulnerabilidade ambiental é resultante, de forma direta, do consumo em massa da nossa sociedade, pois como o homem faz parte do meio ambiente, ele está sujeito a todas as alterações produzidas pelo uso irracional dos recursos naturais.
Por fim, temos a vulnerabilidade econômica e social, sendo esta a caracterizada pela diferença de poder econômico e social entre os fornecedores e os consumidores. É aquela em razão da qual os fornecedores impõem a sua vontade através de diversos mecanismos. Um dos exemplos mais claros dessa vulnerabilidade é a existência dos contratos de adesão, pois para o consumidor adquirir um bem ou serviço, tem que se submeter às condições previamente estabelecidas pelo fornecedor. Esta vulnerabilidade econômica e social, em conjunto com a vulnerabilidade técnica, são as que mais prejudicam o consumidor, e, conseqüentemente, as que mais exigem uma proteção legal aos consumidores.
3.3 O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA E A VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR
3.3.1 Evolução histórica do princípio da isonomia
Para se entender o princípio da isonomia, é necessário que se entenda a sua evolução histórica. De maneira sucinta, podemos dizer que o princípio em questão passou por três fases bem distintas e evidenciadas, segundo Cármen Lúcia Antunes Rocha[20].
Na primeira fase, tinha-se como regra a desigualdade, sendo esta aceita pela sociedade como algo normal. Tal desigualdade era fundamentada na própria lei, de modo que as pessoas detentoras de maior poder e riqueza possuíam inúmeros privilégios, que deviam ser aceitos por aqueles que não os tinham. Em relação a tal fase, ressalta Cármen Lúcia Antunes Rocha que:
[...] a sociedade cunhou-se ao influxo de desigualdades artificiais, fundadas, especialmente, nas distinções entre ricos e pobres, sendo patenteada e expressa a diferença e a discriminação. Prevaleceram, então, as timocracias, os regimes despóticos, asseguraram-se os privilégios e sedimentaram-se as diferenças, especificadas em leis. As relações de igualdade eram parcas e as leis não as relevavam, nem resolviam as desigualdades.[21]
A segunda fase já representou uma evolução, sendo ela caracterizada pela idéia de que todos eram iguais perante a lei, e que em razão dessa igualdade, a lei deveria ser aplicada a todos sem distinção. Nesse sentido, orienta com maestria a doutrinadora citada que:
[...], a sociedade estatal ressente-se das desigualdades como espinhosa matéria a ser regulamentada para circunscrever-se a limites que arrimassem as pretensões dos burgueses, novos autores das normas, e forjasse um espaço de segurança contra as investidas dos privilegiados em títulos de nobreza e correlatas regalias no Poder. Não se cogita, entretanto, de uma igualação genericamente assentada, mas da ruptura de uma situação em que prerrogativas pessoais decorrentes de artifícios sociais impõem formas despóticas e acintosamente injustas de desigualação. Estabelece-se, então, um Direito que se afirma fundado no reconhecimento da igualdade dos homens, igualdade em sua dignidade, em sua condição essencial de ser humano. Positiva-se o princípio da igualdade. A lei, diz-se então, será aplicada igualmente a quem sobre ela se encontre submetido. Preceitua-se o princípio da igualdade perante a lei.[22]
Essa forma de entendimento da igualdade, chamada de igualdade formal, era ineficaz no que diz respeito a efetivação da isonomia jurídica, pois na verdade, a igualdade perante a lei era entre os membros de uma mesma classe. Dessa forma, ainda existia a desigualdade entre as diversas classes sociais. Um exemplo dessa desigualdade ocorria nos Estados Unidos, onde durante muito tempo os negros eram mantidos em escolas para negros, tratados igualmente em tais ambientes. Assim, claramente se percebe a fragilidade e ineficácia dessa igualdade formal.
Por fim, chegou-se à terceira fase da evolução da igualdade nas relações sociais, onde o aspecto formal da igualdade é complementado por um aspecto material. Em outras palavras, além de declarar que todos são iguais, a lei passa a determinar meios para que essa igualdade seja efetivamente alcançada.
Nesse sentido, segundo José Afonso da Silva[23], a Constituição Federal buscou consagrar a isonomia como um todo, tanto em seu aspecto formal como em seu aspecto material. Consagrou o aspecto formal ao declarar, no caput do artigo 5º, que todos são iguais perante a lei.
O aspecto material da isonomia, por sua vez, foi consagrado na Carta Magna em diversos outros dispositivos. Como exemplo, podemos citar o artigo 3º, onde são estabelecidos os objetivos da República Federativa do Brasil; dentre esses objetivos, a Constituição trouxe a redução das desigualdades sociais e regionais, a promoção do bem sem preconceitos de qualquer natureza etc. Além disso, destaca José Afonso da Silva outros dispositivos em que foi consagrada a isonomia, tais como: o artigo 5º, incisos I, XXXII, e LXXIV; o artigo 7º, incisos XXX e XXXI; o artigo 170, inciso VII; o artigo 193; o artigo 196; e o artigo 205.
Atualmente, essa idéia de coexistência da igualdade material com a igualdade formal é a que prevalece. É, sem dúvida alguma, a definição de isonomia que a Constituição Federal buscou efetivar em nosso ordenamento. Assim, deve-se entender a igualdade ou isonomia como o tratamento igual aos iguais, e o tratamento desigual aos desiguais, em busca de um equilíbrio nas relações sociais.
3.3.2 A isonomia constitucional e o direito do consumidor
As relações de comércio evoluíram de forma bastante acelerada nos últimos séculos, de modo que o avanço da produção em larga escala, bem como dos meios de escoamento dos produtos, acabaram por criar um mercado excessivamente competitivo, “violento”, onde cada vez mais eram praticados atos abusivos e desleais, como bem destaca João Batista de Almeida[24].
Segundo o referido autor, tal concorrência, além da busca pelo maior lucro, fez com que chegasse a ser abandonada até mesmo a qualidade dos produtos e dos serviços, ficando o consumidor vulnerável em face daqueles produtos que eram disponibilizados no mercado, colocando em risco até mesmo a sua saúde, por diversas vezes.
Além dessas práticas abusivas, desleais, e prejudiciais ao consumidor, há que se destacar a propaganda e o marketing, que são meios utilizados para escoar a produção. Esses meios de escoamento utilizam técnicas de persuasão que são capazes de induzir os consumidores a adquirir vários produtos, muitas vezes até mesmo sem necessidade ou condição para tanto, apenas por modismos ou outras razões irrelevantes.
Nesse sentido, há que se ressaltar que o homem vive hoje em uma sociedade quase que totalmente consumista, de tal forma que quase todos os atos de nossas vidas baseiam-se em contratos consumeiristas. O pão que comemos no café da manhã, o carro com que nos deslocamos, a televisão que assistimos, tudo isso é fruto de uma relação de consumo. E, na maioria dessas relações de consumo, não é dada ao consumidor grande amplitude para discutir as condições dos fornecedores.
Com efeito, pode-se afirmar que o consumidor, diante desse quadro, ficou à mercê dos fornecedores. Porém, o princípio constitucional da isonomia criou a necessidade de se proteger o consumidor, reduzindo as desigualdades entre ele e os enormes grupos de fornecedores.
Diante dessa fragilidade do consumidor, a Constituição Federal, buscando efetivar o princípio nela previsto da isonomia, determinou a defesa do consumidor pelo Estado, no artigo 5º, inciso XXXII. Tal defesa, tamanha a sua importância, foi prevista no artigo que cuida dos direitos e garantias fundamentais, que constituem, segundo o artigo 60, § 4º, inciso IV da Carta Magna, cláusulas pétreas, ou seja, um núcleo inalterável da Lei Maior, como destaca Ada Pellegrini[25].
Ainda, há que se destacar que a Constituição, em razão da igualdade material por ela adotada, não apenas declarou tal proteção, mas, ao utilizar o termo promover, deixou clara a necessidade de se criar meios de efetivação dessa proteção. Essa efetivação ainda foi buscada pela Carta Magna em outros dispositivos, sendo o principal deles o artigo 48 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), em que foi determinada a elaboração do Código de Defesa do Consumidor.
O CDC, embora não tenha sido criado no prazo estabelecido nos ADCT’s, surgiu trazendo uma revolução de idéias e quebrando paradigmas. Nesse sentido, Carlos Alberto Bittar destacou claramente o espírito do referido diploma:
Surge a lei com um regime estruturado em consonância com os avanços obtidos no exterior, em especial nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, o qual se baseia, fundamentalmente, na técnica do direito social de proteção ao economicamente mais fraco, mediante normas de reforço à sua posição jurídica, na busca do justo equilíbrio de forças.Com isso, são explicitados os direitos do consumidor; os bens jurídicos protegidos; o sistema institucional de controle e de fiscalização; o sistema privado de defesa; os mecanismos individuais e coletivos de reações possíveis e meios processuais mais adequados para a obtenção de um pronunciamento judicial mais célere e eficaz e a satisfação imediata dos interesses dos consumidores.[26]
Assim, segundo o doutrinador, o Código de Defesa do consumidor surgiu seguindo uma tendência de proteção ao sujeito mais fraco nas relações, que era o consumidor. Portanto, vê-se que o diploma nasceu em consonância com o principio da igualdade, e não em contradição, caso em que seria inconstitucional. Nesse sentido, Nelson Nery Junior destaca que:
O art. 4.º, n. I, do CDC reconhece o consumidor como a parte mais fraca na relação de consumo. Portanto, para que se tenha a isonomia real entre o consumidor e o fornecedor, é preciso que sejam adotados mecanismos como o da inversão do ônus da prova, estatuído no art. 6.º, n. VIII, do CDC, como direito básico do consumidor. Este artigo não é inconstitucional, na medida em que trata desigualmente os desiguais, desigualdades essa reconhecida pela própria lei.[27]
Nesse contexto, pode-se afirmar que o Código de Defesa do Consumidor surgiu para efetivar o princípio constitucional da isonomia, garantindo que em uma relação naturalmente desigual, as partes se relacionem de forma equilibrada, evitando prejuízos para ambas as partes.
3.4 A VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR E O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO
O direito do consumidor, como dito anteriormente, tem como objetivo principal proteger o consumidor, em razão da sua fragilidade diante dos fornecedores. Tratamento semelhante é dado aos empregados no direito do trabalho, por serem eles considerados mais fracos que os empregadores.
O direito do trabalho surgiu como resultado de conquistas dos trabalhadores ao longo do tempo, em busca de melhores condições de trabalho e de vida, diante do tratamento desigual e exploratório dispensado a eles pelos empregadores, como bem destaca Maurício Godinho Delgado[28].
Esse ramo do direito tem como fundamento vários princípios, sendo o mais importante deles o da proteção ao empregado. Tal princípio busca atender à necessidade de equilibrar a relação entre empregados e empregadores, já que o trabalhador se encontra em uma situação de subordinação e hipossuficiência; e como não basta para atingir esse equilíbrio a aplicação do direito comum, já que ele pressupõe a igualdade entre as partes, fez-se necessário a criação de um novo ramo jurídico. Nesse sentido, ressalta José Augusto Rodrigues Pinto:
[...] dos embates gerados pela Revolução Industrial nasceu a certeza de que, nas relações de trabalho subordinado, a igualdade jurídica preconizada pelo Direito Comum para os sujeitos das relações jurídicas se tornaria utópica em virtude da deformação que o poder econômico de um provocaria na manifestação da vontade do outro.[29]
Como se percebe, o princípio da proteção ao trabalhador em face de sua fragilidade é o que fundamenta e o que dá razão de existir ao direito do trabalho. Visa garantir ao empregado, que é hipossuficiente, um mínimo de direitos, de forma a preservar a sua existência digna. Assim, nos ensina o professor Maurício Godinho que:
[...] informa este princípio que o Direito do Trabalho estrutura em seu interior, com suas regras, institutos, princípios e presunções próprias, uma teia de proteção à parte hipossuficiente na relação empregatícia – o obreiro – visando retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho.[30]
Ainda sobre o princípio da proteção no direito do trabalho, deve-se destacar que ele é explicita e implicitamente adotado na legislação brasileira. A respeito da influência de tal princípio na legislação pátria, ensina Alice Monteiro de Barros:
Os diplomas legais no Brasil continuam sendo inspirados no princípio da proteção ou tutela, como se infere do próprio caput do art. 7º da Constituição da República de 1988, o qual, ao arrolar os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, prevê ‘outros que visem à melhoria de sua condição social’. Isso demonstra uma técnica legislativa direcionada ao principio da tutela. Outra manifestação do princípio da proteção encontra-se nos art. 444 e 620 da CLT. O primeiro faculta às partes estipular as condições contratuais, desde que não contravenham às disposições de proteção ao trabalho, às convenções coletivas que lhe sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes. Já o art. 620 preceitua que as condições estabelecidas em convenções coletivas, quando mais favoráveis, prevalecerão sobre as estipuladas em acordo, desde que não contrariem o interesse geral da coletividade.[31]
Destaca ainda a referida doutrinadora que o princípio da proteção no direito do trabalho se manifesta por meio de duas regras principais, que são a aplicação da norma mais favorável e a regra da condição mais benéfica.
De forma breve, consiste a regra da aplicação da norma mais favorável em, havendo duas ou mais normas que tratem sobre o mesmo assunto, aplicar-se aquela que melhor atende aos interesses do empregado, independente de sua hierarquia. Um exemplo dessa regra é o caso em que é estipulada em convenção coletiva uma redução da jornada de trabalho para “x”, porém, no contrato de trabalho individual, empregado e empregador já haviam fixado jornada inferior a “x”. Neste caso, prevalecerá a regra do contrato de trabalho, mesmo sendo a convenção posterior e hierarquicamente superior ao contrato de trabalho.
A regra da condição mais benéfica, por sua vez, direciona-se a proteger as situações pessoais mais vantajosas adquiridas pelo empregado, que se incorporaram ao seu patrimônio, por força do próprio contrato de trabalho, não importando se tal vantagem se deu de forma expressa ou tácita, sendo esta última caracterizada pela concessão habitual de vantagens.
Dessa forma, pode se observar inúmeras semelhanças entre o direito do trabalho e o direito do consumidor, especialmente no que tange à proteção de uma parte mais frágil na relação jurídica. Essa similaridade entre os ramos do direito fica ainda mais evidente quando comparados alguns institutos desses ramos do direito.
Nesse sentido, podemos utilizar como exemplo a regra tratada anteriormente a respeito da norma mais favorável ao trabalhador, que determina que será aplicada a norma mais favorável a ele, independente de hierarquia; o direito do consumidor possui dispositivo semelhante, a saber, o art. 47 do Código de Defesa do Consumidor, que diz que “as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.”
Entretanto, embora possuam inúmeras semelhanças, é necessário destacar uma diferença existente entre os dois ramos do direito em questão: o direito do trabalho considera vulnerabilidade e hipossuficiência como sinônimos, ambos significando que o trabalhador é mais frágil que o empregador, merecendo por isso proteção legal; no direito do consumidor, porém, os dois institutos referidos não são sinônimos, embora muito parecidos, devendo ser entendidos como efeitos distintos da fragilidade do consumidor diante dos fornecedores. Sobre essa distinção, falaremos mais a frente.
4 A HIPOSSUFICIÊNCIA NO DIREITO DO CONSUMIDOR
O direito do consumidor tem como fundamento a necessidade de proteção do consumidor nas relações de consumo, tendo em vista a sua fragilidade diante dos fornecedores, que figuram no outro lado dessa relação. Essa fragilidade, ainda, tem como efeito a existência de dois institutos, que são a vulnerabilidade e a hipossuficiência.
A vulnerabilidade já foi tratada em capítulo anterior deste trabalho, sendo tratada neste capítulo a hipossuficiência.
A hipossuficiência é, assim como a vulnerabilidade, uma forma de se manifestação da fragilidade do consumidor diante do enorme poder dos fornecedores. Entretanto, a hipossuficiência caracteriza-se, principalmente, sendo este o ponto de maior relevância para a sua distinção da vulnerabilidade, por ser uma fragilidade extremamente acentuada, especialmente por fatores culturais e econômicos.
Nesse sentido, José Geraldo Brito Filomeno[32] entende que a noção de hipossuficiência é dada pelo parágrafo único do art. 2º da Lei 1.060/50, que diz:
Art. 2º. Gozarão dos benefícios desta Lei os nacionais ou estrangeiros residentes no país, que necessitarem recorrer à Justiça penal, civil, militar ou do trabalho.
Parágrafo único. Considera-se necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.[33]
O dispositivo acima citado, entretanto, destaca apenas o aspecto financeiro, a necessidade de determinada pessoa em razão da falta de recursos materiais para pleitear direito seu. Não há como negar, porém, que o texto do parágrafo único do art. 2º da Lei 1.060/50 representa claramente um dos aspectos da hipossuficiência. Nesse contexto, vale destacar ainda que essa noção de hipossuficiência decorre, inclusive, de mandamento constitucional expresso, posto que determina o art. 5º, inciso LXXIV da Carta Magna que o Estado prestará assistência judicial integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
Entretanto, essa necessidade financeira, para efeitos de caracterização da hipossuficiência, não se restringe apenas, no direito do consumidor, à falta de recursos para pagamento de custas e honorários advocatícios.
Com efeito, pode-se afirmar que essa hipossuficiência econômica traduz-se na falta de recursos pelo consumidor, de forma que ele não tem condições mínimas, sequer, para requerer seus direitos ou até mesmo para se comportar corretamente no mercado. Tal situação fundamenta a inversão do ônus da prova, instituto do qual falaremos logo à frente.
Há ainda a hipossuficiência cultural, que é caracterizada pela ausência de instrução, experiência ou até mesmo desenvolvimento ou condição intelectual para que a relação de consumo, com toda a sua complexidade, se desenvolva de forma equilibrada. Dessa forma, encontra-se o consumidor extremamente inferiorizado, extremamente impotente diante dos fornecedores.
Nesse contexto, podemos entender como hipossuficiência uma deficiência econômica, intelectual etc., de tal forma acentuada que impossibilite o consumidor a ter o discernimento mínimo para um correto desenvolvimento das relações de consumo ou mesmo para que possa o consumidor pleitear seus direitos.
Vale destacar, ainda, que a hipossuficiência pode ser de um único consumidor, isoladamente considerado, ou de uma coletividade de consumidores, posto que o próprio CDC, ao estabelecer o conceito de consumidor, no art. 2º, estabeleceu no parágrafo único do referido artigo que equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas que tiver intervindo na relação, ainda que sejam indetermináveis.
4.1 A HIPOSSUFICIÊNCIA E A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA
O Código de defesa do consumidor é uma legislação notadamente protecionista, que visa garantir ao consumidor a não violação de seus direitos. Em consonância a este caráter protecionista, o CDC previu no art. 6º, inciso VIII, a inversão do ônus da prova. Assim diz o referido dispositivo:
Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:
VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências.[34]
Tal dispositivo consiste em meio de facilitação da defesa do consumidor, de forma que o ônus da prova passa a ser, quando aplicado o referido dispositivo, do fornecedor. Dessa forma, evita-se que o consumidor seja prejudicado por não poder provar o que alega, tendo em vista que, muitas vezes, o consumidor não tem conhecimento técnico dos produtos que adquire ou os recursos necessários para realizar determinados procedimentos necessários, como por exemplo, um exame pericial (sendo isso inclusive um dos fundamentos da proteção ao consumidor).
Nesse contexto, importa destacar alguns aspectos do instituto em questão. Primeiro, deve-se observar, como orienta José Geraldo Brito Filomeno[35], que a inversão do ônus da prova é uma faculdade do juiz, caso verifique a hipossuficiência do consumidor ou a verossimilhança da alegação. Entretanto, há exceção a essa regra, de forma que é obrigatória a inversão do ônus da prova quando se tratar de publicidade enganosa ou abusiva.
Em relação aos requisitos estabelecidos pelo legislador para que o juiz possa determinar a inversão do ônus da prova, quais sejam, a verossimilhança da alegação ou a hipossuficiência do consumidor, deve-se observar o que ensina José Geraldo Brito Filomeno:
A lei, como sabido, não contém palavras inúteis. E o legislador quis, certamente, não apenas deixar claro que a inversão do ônus da prova é faculdade do juiz – salvo quando se cuidar de publicidade enganosa ou abusiva (cf. art.38 do Código de Defesa do Consumidor), quando é obrigatória -, balizada, por um lado, pela verossimilhança da alegação do autor, porque é vulnerável, ou, então, alternativamente, porque é hipossuficiente, não podendo arcar com as custas do processo e, sobretudo, com o pagamento de honorários de um perito, com já assinalado.[36]
A verossimilhança pode ser entendida como a plausibilidade da alegação do autor e a semelhança desta com a realidade, diante do caso concreto, não havendo maiores dificuldades quanto à sua análise teórica.
A hipossuficiência, por sua vez, também constitui requisito para a aplicação do instituto da inversão do ônus da prova. Como bem destaca o doutrinador acima citado, não pode ser confundida com a vulnerabilidade, posto que esta é atributo inerente a todos os consumidores, e aquela é atributo de apenas alguns, e a intenção do legislador, claramente, era beneficiar com a inversão da prova, apenas, grupo restrito de consumidores que se encontrem em situação ainda mais desvantajosa que os consumidores “comuns”..
Com efeito, pode-se afirmar que a vulnerabilidade, no que tange à inversão do ônus da prova, estaria bem mais relacionada à verossimilhança, sendo possibilitada a inversão do ônus da prova simplesmente se a alegação parecer verdadeira, em face da inferioridade técnica, financeira etc. inerente a todo e qualquer consumidor em face dos fornecedores.
A hipossuficiência, por outro lado, como atributo de facilitação da defesa do consumidor, pressupõe a existência de uma condição intelectual ou financeira de subdesenvolvimento. Assim, não é apenas a falta de conhecimento técnico que caracterizaria a hipossuficiência e possibilitaria a inversão do ônus da prova, mas ainda um não conhecimento intelectual mínimo, no entendimento do homem médio. Seria hipossuficiente, portanto, aquele que não tem desenvolvimento mental completo, ou aquele que em razão de viver em extrema pobreza, não possui desenvolvimento intelectual algum, fazendo jus, em tal situação, à inversão do ônus da prova.
É na aplicação prática do instituto da hipossuficiência, ou seja, quando da aplicação da inversão do ônus da prova, que se verifica a sua principal finalidade: garantir ao consumidor e à sociedade a efetivação do princípio constitucional da isonomia.
Nesse contexto, há que se destacar a semelhança da hipossuficiência com a vulnerabilidade no que tange ao princípio da isonomia, pois ambos buscam, em razão da desigualdade fática existente entre consumidores e fornecedores, por meio de um tratamento desigual à partes notadamente desiguais da relação de consumo, garantir a igualdade material, que é a buscada pela Constituição Federal de 1988.
Assim, percebe-se que a inversão do ônus da prova consiste na aplicação de um instituto da legislação consumeirista, a saber, a hipossuficiência, com o objetivo de promover a igualdade material, determinada pelo princípio constitucional da isonomia, o que significa, no Direito do Consumidor, promover um equilíbrio entre as partes da relação de consumo, que são o consumidor e o fornecedor.
5 ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL
As discussões envolvendo vulnerabilidade e hipossuficiência não se limitaram apenas à doutrina, mas estenderam-se aos tribunais, especialmente no que tange à inversão do ônus da prova. Nesse contexto, vale ressaltar que os tribunais possuem a mais variada jurisprudência acerca do tema, sendo trazidos a este trabalho alguns exemplos de tais jurisprudências.
5.1 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARANÁ
A jurisprudência abaixo trata de um agravo de instrumento interposto em uma ação de cobrança, sendo pedido em tal agravo, além de outras coisas, o deferimento da inversão do ônus da prova. Esse pedido, entretanto, foi rejeitado por não ser constatada a hipossuficiência do agravante, como se verifica a partir da citação abaixo:
AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 430934-8, DE FOZ DO IGUAÇU – 2ª VARA CÍVEL
AGRAVANTE: ADOLFO JOSÉ PERUZZO
AGRAVADO: PEDRO AUGUSTO VOLPATO
RELATOR: DES. JOSÉ CICHOCKI NETO
EMENTA
AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE COBRANÇA - DESPACHO QUE REJEITOU A ARGÜIÇÃO DE CONEXÃO, LISTISPENDÊNCIA E LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO E INDEFERIU O PEDIDO DE INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - CONEXÃO CONFIGURADA - APENSAMENTO DOS AUTOS DETERMINADA - VULNERABILIDADE TÉCNICA (HIPOSSUFICIÊNCIA)
PARA A PRODUÇÃO DA PROVA NÃO DEMONSTRADA - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
I - Trata-se de agravo de instrumento, com pleito liminar, manifestado por ADOLFO JOSÉ PERUZZO contra a decisão proferida à fl. 103 dos autos de ação de cobrança nº 452/2004, devidamente aclarado às fls. 122/123, pelo qual, o Doutor Juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Foz do Iguaçu, entre outras coisas, rejeitou as preliminares de conexão, litispendência e de litisconsórcio passivo necessário suscitadas, determinou o desapensamento dos autos de ação cobrança nº 453/04, ajuizada pelo agravado em desfavor de Miriam Batistella Peruzzo e indeferiu o pedido de inversão do ônus da prova, por entender que o ora agravante não é hipossuficiente, e que, embora as preliminares argüidas tenham o mesmo fundamento (tratamento dentário realizado pelo agravado no agravante e na sua esposa), as partes e os fatos são diversos [...]
De outra parte, tem-se que o pedido de inversão do ônus da prova somente poderia ser deferido, caso o agravante tivesse comprovado a sua vulnerabilidade técnica para a produção da prova (hipossuficiência), o que não ocorreu.
Assinale-se, porquanto relevante, que referido benefício processual, previsto no art. 6º do CDC, não é automático, mas, exige a demonstração da hipossuficiência do consumidor, ônus do qual não se desincumbiu o agravante [....]
(TJPR - 12ª Câmara Cível - AI nº 430934-8 - Rel. Desembargador JOSÉ CICHOCKI NETO, j. 12/11/2008).[37]
Observando a decisão supracitada, do ano de 2008, verifica-se que foi solicitada a inversão do ônus da prova, e tal benefício não foi concedido em nenhuma das duas instancias.
Segundo o voto do relator, parcialmente citado, a inversão do ônus da prova é benefício processual possível de ser utilizado pelo consumidor na lide judicial, transferindo ao fornecedor o ônus de provar que as alegações feitas não são verdadeiras. Entretanto, ressalta o desembargador relator que esse benefício processual não é automaticamente concedido, devendo o consumidor que a requerer provar a sua condição de hipossuficiente.
Assim, como de tal ônus não pode desincumbir-se o consumidor, e considerando, em face do voto acima citado, que não foi cumprido pelo agravante a exigência de comprovação da hipossuficiência, não poderia ter sido determinada a inversão do ônus da prova, como não o foi.
5.2 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO MATO GROSSO DO SUL
A jurisprudência a seguir citada consiste em um agravo de instrumento, ao final improvido. Destaca-se na presente decisão, porém, a concessão do benefício da inversão do ônus da prova ao agravado em razão da hipossuficiência deste. Assim, vejamos o trecho a seguir da referida jurisprudência:
AGRAVO: AGV 221 MS 2009.000221-4
RELATOR: DES. FERNANDO MAURO MOREIRA MARINHO
AGRAVANTE: REAL SEGUROS S.A.
ADVOGADO: EDYEN VALENTE CALEPIS
AGRAVADO: ANTÔNIO LUIZ DE ALMEIDA
ADVOGADO: JOÃO CATARINO TENÓRIO NOVAES E OUTRO(S)
EMENTA
AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE COBRANÇA DE SEGURO OBRIGATÓRIO DPVAT - INDENIZAÇÃO -NECESSIDADE DE PERÍCIA MÉDICA - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - CDC -HIPOSSUFICIÊNCIA DO AGRAVADO -RECURSO IMPROVIDO.
[...] A inversão do ônus da prova é direito básico do consumidor, nos termos do art. 6º, VIII, do CDC, in verbis:
‘A facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência.’
Demonstram-se presentes os pressupostos autorizadores da inversão do ônus da prova preconizados pelo artigo 6º, inciso VIII, do CPC, quais sejam: a hipossuficiência do agravado e a verossimilhança das alegações aduzidas na inicial de ação de cobrança [...]
[...] A inversão do ônus da prova, prevista no Código de Defesa do Consumidor, atende ao princípio constitucional da isonomia, assegurando efetivamente o equilíbrio entre os partícipes da relação de consumo, em face da desigualdade do consumidor, cuja proteção é determinada expressamente no artigo 170, inciso V, em perfeita sintonia com o art. 5º, caput , todos da Constituição Federal.{C}[38]
No voto do relator Desembargador Fernando Mauro Moreira Marinho, ele reconheceu, de forma bastante clara, a inversão do ônus da prova como direito básico do consumidor, como determinado pelo próprio CDC, no art. 6º, inciso VIII, e também como meio de facilitação da defesa do consumidor.
Destacou que para a aplicação de tal benefício processual, faz-se necessária a existência dos requisitos previstos em lei, quais sejam a hipossuficiência do consumidor ou a verossimilhança das alegações, segundo as regras ordinárias de experiência.
Com efeito, o Desembargador relator observou, ainda, que o instituto da inversão do ônus da prova atende ao princípio constitucional da isonomia, em face da desigualdade fática existente entre consumidores e fornecedores, de forma que o tratamento desigual dispensado aos consumidores pela lei consumeirista busca equilibrar a relação entre tais sujeitos, atendendo até mesmo à Carta Magna, que determina a proteção ao consumidor.
5.3 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Como dito anteriormente, as lides acerca da inversão do ônus da prova não se limitaram à doutrina, e chegaram até os tribunais. Em alguns casos, as questões envolvendo o tema chegaram ao Superior Tribunal de Justiça, dando ensejo a inúmeras decisões.
É importante destacar que o Superior Tribunal de Justiça, em regra, sempre teve o posicionamento de admissão da inversão do ônus da prova quando hipossuficiente o consumidor, devendo ser demonstrada essa hipossuficiência. Nesse sentido, demonstra a decisão em recurso especial abaixo citada a adoção desse entendimento, senão vejamos:
RECURSO ESPECIAL Nº 1080719 – MG (2008/0179393-5)
RELATORA: MINISTRA NACY ANDRIGHI
RECORRENTE: RAFAEL COSTA DE TONI
ADVOGADO: FELIPE FAGUNDES CÂNDIDO E OUTRO (S)
RECORRIDO: VOLKSWAGEN DO BRASIL INDÚSTRIA DE VEÍCULOS AUTOMOTORES LTDA.
ADVOGADO: SÉRGIO INTROCASO CAPANEMA BARBOSA E OUTRO (S)
EMENTA
- Processo civil e Consumidor. Rescisão contratual cumulada com
indenização. Fabricante. Adquirente. Freteiro. Hipossuficiência. Relação de consumo. Vulnerabilidade. Inversão do ônus probatório.
- Consumidor é a pessoa física ou jurídica que adquire produto como
destinatário final econômico, usufruindo do produto ou do serviço em
beneficio próprio.
- Excepcionalmente, o profissional freteiro, adquirente de caminhão zero quilômetro, que assevera conter defeito, também poderá ser considerado consumidor, quando a vulnerabilidade estiver caracterizada por alguma hipossuficiência quer fática, técnica ou econômica.
- Nesta hipótese esta justificada a aplicação das regras de proteção ao
consumidor, notadamente a concessão do benefício processual da inversão do ônus da prova.
- Recurso especial provido.{C}[39]
No voto da relatora do referido processo, a Ministra Nancy Andrighi, foi destaca do que a lide baseava-se principalmente em dois aspectos: a possibilidade de aplicação ou não do CDC à pessoas físicas ou jurídicas que adquirissem o bem para utilizar na sua atividade profissional; e possibilidade de inversão da prova no processo.
Quanto ao primeiro, a Ministra explicou que o STJ, anteriormente, adotava a posição suportada pela teoria maximalista ou objetiva, de que só poderia ser aplicado o CDC ao consumidor, sendo este aquele que adquirisse o bem ou serviço como destinatário final, ou seja, em benefício exclusivamente próprio, sem influência na atividade profissional.
Entretanto, a posição da Corte sofreu uma flexibilização, de forma que passou a ser considerado destinatário final e, portanto, consumidor, aquele que adquirir bem ou utilizar serviço em benefício próprio, independente de servir ou não diretamente a uma atividade profissional. Assim, diante desse novo posicionamento, explica a Ministra Nancy Andrighi que ainda que o adquirente não seja o seu destinatário final econômico poderá ser considerado consumidor, desde que constatada a sua hipossuficiência diante do fornecedor.
Por fim, determinou a aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao caso em tela, em razão da vulnerabilidade reconhecida em tal situação e, ainda, por ser constatada, além da vulnerabilidade do recorrente, a hipossuficiência deste, no entendimento da ministra, determinou também a inversão do ônus da prova.
6 CONCLUSÃO
O Direito do Consumidor surgiu com o objetivo claro de proteger o consumidor das práticas e dos abusos dos fornecedores nas relações de consumo. É fruto da evolução das relações humanas e comerciais, ao longo do tempo, que geraram uma desigualdade muito grande entre esses dois sujeitos das relações de consumo.
Assim, em razão da própria essência de sua criação, o Direito do Consumidor e, conseqüentemente, o Código de defesa do Consumidor, reconheceram e passaram a cuidar da vulnerabilidade e da hipossuficiência do consumidor, a fim de evitar que a desigualdade fática entre ele e os fornecedores se tornasse também uma desigualdade jurídica.
Nesse sentido, é importante destacar que os dois institutos abordados neste trabalho, a saber, a vulnerabilidade e a hipossuficiência, referem-se à fragilidade do consumidor diante dos fornecedores, nos mais variados aspectos. Mas, embora possuam semelhanças, possuem também algumas diferenças, que deixam claro que vulnerabilidade e hipossuficiência não dizem respeito a um mesmo instituto.
Os dois institutos têm como principal semelhança o fato de serem formas de expressão da fragilidade dos consumidores em relação aos fornecedores. Têm, ainda, a semelhança quanto ao seu principal fundamento e objetivo: a isonomia garantida pela Constituição Federal de 1988. Tal isonomia deve ser entendida no seu aspecto material, pois a Carata Magna busca essa igualdade, e não apenas a igualdade formal.
Assim, a vulnerabilidade e a hipossuficiência, cuja existência tem fundamento no princípio da igualdade, visam efetivar a igualdade nas relações de consumo, garantindo um equilíbrio entre consumidores e fornecedores nessas relações, e promovendo a efetivação de um princípio previsto na Carta Magna: o da isonomia.
No que diz respeito às diferenças entre os referidos institutos, a vulnerabilidade caracteriza-se por ser a suscetibilidade de todo e qualquer consumidor a “ataques” dos fornecedores, a práticas abusivas destes etc. Reconhecida no art. 4º do CDC, assim como outros princípios e valores do Direito do Consumidor, a vulnerabilidade pode ser entendida em vários aspectos, podendo ser eles: técnico, jurídico, político, psíquico ou biológico, ambiental, e econômico ou social.
Esses aspectos da vulnerabilidade, se considerados como um todo, abrangem as possíveis fragilidades de um consumidor diante dos enormes grupos de fornecedores. Verifica-se, portanto, que a vulnerabilidade, além de ser atributo de todos os consumidores, refere-se à qualquer forma de inferioridade ou fragilidade deles em relação aos fornecedores. Com efeito, pode se afirmar que é vulnerável o consumidor que não conhece os meios de produção, ou o que ainda que conhecendo os meios de produção, não possui recursos para buscar a efetivação de seus direitos etc.
A hipossuficiência, por outro lado, caracteriza-se por ser uma fragilidade acentuada de determinados consumidores, por razões sociais, econômicas ou até mesmo biológicas. Assim, é claro e evidente que a hipossuficiência, ao contrário da vulnerabilidade, não é atributo inerente a todos os consumidores, mas apenas a alguns deles. Tal aspecto do instituto em questão fica bastante evidente quando determina o art. 6º, inciso VIII do CDC:
Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências [...][40]
Ainda, é característica essencial da hipossuficiência a situação de desigualdade acentuada entre o consumidor e o fornecedor. Essa acentuação na desigualdade da relação é fruto da existência de uma condição financeira ou intelectual de subdesenvolvimento, ou seja, é o consumidor que estaria em desigualdade até mesmo com outros consumidores.
Dessa forma, é hipossuficiente o consumidor que além de não conhecer os meios de produção de determinado produto, não tem o discernimento intelectual mínimo para o desenvolvimento equilibrado de qualquer relação, sob o entendimento do homem médio. Ou então, é hipossuficiente aquele consumidor que não possui os recursos financeiros que possibilitariam uma existência digna, ou seja, aquele que não tem condições, ainda que conheça determinado produto ou seus direitos, de escolher um produto ou de buscar tais direitos, por falta de condições financeiras mínimas até mesmo para sua subsistência de forma digna.
Portanto, pode-se afirmar que a vulnerabilidade e a hipossuficiência não são o mesmo instituto, e que essa diferença entre eles reflete na aplicação prática da legislação consumeirista, posto que apenas a hipossuficiência autoriza a inversão do ônus da prova, e não a vulnerabilidade. Além disso, deve-se ressaltar que a diferenciação de tais institutos serve para completar e tornar mais efetiva a legislação protetiva do consumidor, pois garante uma maior proteção àqueles que dela necessitarem.
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