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A delimitação de um conteúdo para o Direito.

Em busca de uma renovada teoria geral com base na proteção da dignidade da pessoa humana

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25/12/2003 às 00:00
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2. AS PERSPECTIVAS DE ANÁLISE DO DIREITO: NECESSIDADE DE RECONSTRUÇÃO.

Na análise acima destacada, percebe-se que o modelo do direito atualmente vigente na sociedade contemporânea está em crise. A seguir, procura-se demonstrar de forma sintética como o fenômeno jurídico foi pensado ao longo da história da humanidade, com base em alguns expoentes do pensamento jurídico.

As doutrinas, que vão merecer breve análise para os fins deste trabalho, são: as teorias formalistas; as teorias decisionistas; as teorias sociológicas; as teorias alternativistas; as teorias interpretativas. A seguir discorrer-se-á brevemente sobre cada uma.

Inicialmente, quando se está criticando o direito moderno deve-se levar em conta que a análise a ser empreendida começa a partir da Revolução Francesa, quando ocorreu a laicização do Estado, separando-se de modo cabal - pelo menos formalmente - o direito da religião e das demais ordens éticas.

Neste contexto, destacam-se primeiro as teorias formalistas do direito. Estas teorias formalistas tem em Hans Kelsen seu maior expoente. Este autor defende que o importante para o direito é ter uma Teoria Geral que permita saber como as normas jurídicas são produzidas, criadas e aplicadas, não importando pelo menos para a Teoria Pura do Direito a questão do conteúdo da norma posta.

Como se vê, a Teoria Pura consiste numa tentativa de dar cientificidade ao Direito, delimitando de forma sistematizada e com metodologia própria o modo como a normas e os ordenamentos jurídicos são constituídos e se desenvolvem. É uma teoria que foge ao aspecto do valor, tendo um conteúdo eminentemente formalista, apegado à tentativa de dotar o direito de uma clara autonomia enquanto Ciência Pura. Bem claro é Kelsen ao asseverar a pureza de sua teoria normativo-formalista: " A ‘pureza’ de uma teoria do Direito em que se propõe uma análise estrutural de ordens jurídicas positivas consiste em nada mais que eliminar de sua esfera problemas que exijam um método diferente do que é adequado ao seu problema específico. O postulado da pureza é a exigência indispensável de evitar o sincretismo de métodos, um postulado que a jurisprudência tradicional não respeita ou não respeita suficientemente." [8]

Assevere-se que Kelsen não defendia a ausência de conteúdo para as normas jurídicas, mas dizia que o problema do conteúdo refoge à Teoria Pura do Direito, sendo a Justiça e os valores imanentes às normas problema afeto a outras áreas do conhecimento. [9]

A crítica é que a Teoria Pura do Direito apresenta-se formalista e não delimita um conteúdo específico para o Direito, apenas se preocupando com a norma enquanto enunciado que precisa ser informado para ser produzida, criada, ter vigência, validade e eficácia.

De forma ainda mais radical, têm-se as chamadas teorias decisionistas, nas quais o expoente sem dúvida foi Carl Schmitt na análise que fez na órbita do direito constitucional.

Defende Carl Schmitt que o Direito e o Poder estão umbilicalmente ligados, sendo o conteúdo da Constituição uma decisão política que prevalece, fazendo-se norma.

Para o autor, não existem valores a se protegerem de forma utópica, mas sim a necessidade de asseverar que as normas jurídicas são decisões políticas e assim devem ser tratadas. Comentando o teor da Constituição destaca Schmitt: "La Constitución no es, pues, cosa absoluta, por cuanto que no surge de sí misma. Tampoco vale por virtud de su justicia normativa o por virtud de su cerrada sistemática. No se da a sí misma, sino que es dada por una unidad política concreta. Al hablar, es tal vez posible decir que una Constitución se establece por si misma sin que la rareza de esta expresión choque en seguida. Pero que una Constitución se dé a sí misma es un absurdo manifesto. La Constitución vale por virtud de la voluntad política existencial de aquel que la da. Toda especie de normación jurídica, y también la normación constitucional, presupone una tal voluntad como existente." [10]

Leva, nestes termos, ao extremo Schmitt a idéia de Direito vinculado ao Poder, tornando o próprio direito apenas uma forma de manifestação das forças dominantes sem maiores condicionamentos, nem tampouco autonomia própria.

A crítica é que esta teoria também é formalista, afetando a própria autonomia que se almeja emprestar ao direito, que é reduzido ao fenômeno político como uma das formas de sua expressão; não tendo, assim, princípios próprios mais elevados, nem tampouco autonomia para realizar um plexo de valores diferenciado.

Também, tem-se a visão das teorias sociológicas do Direito, que tem como um importante representante no Brasil o Prof. Cláudio Souto, desenvolvendo uma teoria social do direito que almeja determinar um conteúdo científico-social ao fenômeno jurídico (direito).

As teorias sociológicas procuram mostrar o direito como uma forma de controle social que visa a proteger os valores sociais fundamentais humanos, destacando que o direito não é só a lei/norma, mas também é o conteúdo social subjacente que será regulado.

Cláudio Souto destaca que a análise juspositivista do direito com base em teorias normativas é reducionista, não dotando de cientificidade o direito. Segundo defende, o certo seria perceber o contexto social das relações humanas e delas inferir-se com base em dados empíricos de ciência o conteúdo do direito e das normas jurídicas que merecem proteção por terem sustentáculo social.

Estabelece o autor que o direito deverá preservar e plasmar um sentimento de agradabilidade entre os seres humanos, efetivando uma esfera de segurança e paz social, na qual os conflitos serão resolvidos de forma cabal pela análise do contexto social subjacente em toda sua plenitude fática com auxílio de dados concretos de ciência. Veja-se a lição do autor: "Como o direito é forma e conteúdo ao mesmo tempo, e inseparavelmente, se se lhe quer atribuir o máximo possível de segurança cognitiva, é preciso informá-lo de lógica em sua forma, e de ciência substantiva em seu conteúdo. E quanto mais rigorosa seja a ciência substantiva que informe o jurídico, maior, evidentemente, a segurança cognitiva deste." [11]

A crítica é que estas teorias procuram ver o fato social como o fundamento do direito, procurando reduzir o direito à interpretação do fatos sociais concretos, incorrendo no mesmo erro acima delineado de serem reducionistas e parciais. Isto porque estas teorias sociológicas não asseveram o conteúdo do direito que não seja a interpretação dos fatos sociais para a resolução de conflitos subjacentes, tornando o direito muito mais um capítulo da sociologia, do que propriamente a ciência autônoma com seus métodos e realidades próprias.

Ainda, tem-se as teorias alternativas do direito, ou como mais popularmente são conhecidas as teorias do direito alternativo.

As teorias do direito alternativo buscam mostrar que o Direito não se restringe ao direito oficial, ou seja, ao direito estatal, que há o direito das favelas, das minoras, que há um direito diferente do meramente estatal.

Tentam demonstrar que este direito de base mais empírica, e ligado supostamente a uma realidade social de periferia, é mais efetivo e realizável do que o direito oficial, tendo mais legitimidade para proteção da coletividade, devendo ser reconhecido e amparado pelo direito oficial.

Além desta visão do direito alternativo, há outros pensadores que tencionam demonstrar que o direito alternativo é aquele direito atual, estando mais ligado aos problemas humanos recentes, seria ainda o direito das lutas sociais, devendo prevalecer esta realidade contra as normas estatais cristalizadas em Códigos de dezenas ou até centenas de anos atrás que não tem mais sustentáculo axiológico, nem fático nas relações humanas subjacentes.

A lição de Roberto Lyra Filho neste sentido é pujante ao analisar a perspectiva de uma Justiça Social: "Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípios condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade, em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem; e o Direito não é mais, nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vira-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas. À injustiça, que um sistema institua e procure garantir, opõe-se o desmentido da Justiça Social conscientizada; às normas, em que aquele sistema verta os interesses de classes e grupos dominadores, opõem-se outras normas e instituições jurídicas, oriundas de classes e grupos dominados, e também vigem, e se propagam, e tentam substituir os padrões dominantes de convivência, impostos pelo controle social ilegítimo; isto é, tentam generalizar-se, rompendo os diques da opressão estrutural. As duas elaborações entrecruzam-se, atritam-se, acomodam-se momentaneamente e afinal chegam a novos momentos de ruptura, integrando e movimentando a dialética do Direito. Uma ordenação se nega para que outra a substitua no itinerário libertador. O Direito, em resumo, se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda." [12]

A base do pensamento dos alternativas, enfim, reside exatamente no fato do direito oficial não conseguir se realizar, não resolvendo problemas humanos fundamentais, restando patente o seu caráter conservador de direito posto por uma minoria dominante em contraste com a realidade subjacente.

Estas críticas realmente tem procedência em sua generalidade. Só que se deve perguntar o que os alternativistas pretendem: O fim do direito estatal ? O fim da interpretação atrelada a normas aprovadas pelos parlamentares dentro de um regime democrático ? Qual o conteúdo do novo direito a ser criado ? Quais os limites a este novo direito alternativo ?

Realmente, não define o movimento do direito alternativo o conteúdo do novo direito que querem construir e efetivar, não delimitam um metódo para criação, modificação e até modernização do direito a ser implantado em lugar do direito oficial. A teoria do direito alternativo perde assim substância, sendo passível de causar maiores danos com a insegurança jurídica e a quebra do equílibrio das relações humano-sociais.

A crítica ao direito oficial e à dogmática jurídica deve ser feita, mas de forma temperada, até porque é neste modelo de direito que restam ao menos formalmente garantidos os princípios éticos e valores fundamentais do ser humano na atualidade. Bem ressalta João Maurício Adeodato: "(...) Aí a contribuição ética do positivismo, tal como definido aqui: como não há uma justiça evidente em si mesma, nós próprios é que temos de tomar em nossas costas o fardo de dizer, de por (daí positivismo) o direito. Foi o que mudou: o direito continua axiológico como inevitavelmente o é, mas seu valor não está pré-fixado por qualquer instância a ele anterior ou superior. Ele não é imposto pela infalibilidade do Papa ou da Santa Madre Igreja, nem é fixado a partir desta ou daquela concepção que alguém tenha de ‘justiça’ ou de ‘razão’. (...) A ética inerente a um positivismo moderno, parece-nos, não é aquela que, por admitir qualquer conteúdo, presta-se, por exemplo, a justificar a imposição compulsória de padrões homogêneos de comportamento a toda a comunidade. Por recusar parâmetros de conduta legítimos ‘em si mesmos’, o positivismo coaduna-se mais facilmente com uma ética genericamente cética, compreensiva, disposta a tolerar posturas diversas, desde que não se pretendam estender a todos a todo custo." [13]

Por fim, tem-se o que chamamos de teorias interpretativas. Estas teorias tem a base de discussão na linguagem, no valor da retórica, no direito enquanto palco de debates e discussões para resolução dos conflitos postos.

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A visão destas teorias é que a norma/lei seria apenas um dos referenciais para aferir o conteúdo do fenômeno jurídico, e também para resolução dos conflitos sociais subjacentes. Estes conflitos só seriam resolvidos através da interpretação, com base na aplicação da norma jurídica em integração ao fato social conflituoso a ser sanado.

Estas teorias interpretativas da linguagem procuram destacar que não existe a tradicional subsunção no qual se analisa o fato, aplica-se a norma, atingindo-se uma conclusão (FATO – NORMA – CONCLUSÃO). Isto é algo que não ocorre - defendem - na esfera complexificada das relações humanas.

Tal fato deve-se à enorme gama de variáveis existentes na solução de um conflito que conduz à necessidade de adotar métodos de interpretação e de visualização do direito diversos dos tradicionalmente conhecidos.

Ai, passa-se a defender a chamada tópica, que tem representante maior em Theodor Viehweg, na qual a análise do direito não reside no estudo da norma ou dos valores sociais a merecem proteção. Mas sim, o direito vai se concretizar e realizar, adquirindo conteúdo, quando se está diante de um problema sócio-econômico-político-jurídico concreto que merece solução a fim de evitar conflito maior dentro do seio da sociedade. Tércio Sampaio Ferraz ressalta: " Na mesma linha de pensamento, o jusfilósofo Theodr Viehweg (1974), ao versar o tema, entende a argumentação jurídica como uma forma típica de raciocínio. O raciocínio jurídico, para ele, tem um sentido argumentativo: raciocinar, juridicamente, é uma forma de argumentar. Argumentar significa, num sentido lato, fornecer motivos e razões dentro de uma forma específica. Captando o pensamento jurídico na usa operacionalidade, Viehweg (1974) assinala, pois, que a decisão jurídica aparece, neste sentido, como uma discussão racional, isto é, como um operar racional do discurso, cujo terreno imediato é um problema ou um conjunto deles. O pensamento jurídico de onde emerge a decisão deve ser, assim, entendido basicamente como ‘discussão de problemas’." [14]

Como se vê, estas renovadas teorias da interpretação do direito, vêem que a concretização do direito ocorrerá com a análise do problema posto, aplicando-se topois (lugares comuns): valores condensados e perspectivas previamente adotadas do que é legal e justo, para resolução de forma integrada do conflito existente (problema).

Não interessa tanto a norma que se vai aplicar, o que importa para esta linha de pensamento tão em voga atualmente é conseguir manejar os topois sobre o problema posto, visando a encontrar a solução jurídica mais razoável para pacificação do conflito social.

Nestes termos, não haveria padrões de solução uniformes e generalizadas dos conflitos, como gostariam os formalistas, nem tampouco valores sociais plenos e universais que merecessem guarida, como já destacaram os sociologistas, não sendo também o direito uma mera decisão de cunho político, nem tampouco necessário adotar direitos alternativos para atingir a solução justa para o caso concreto. Ao contrário, defendem que as soluções dos conflitos são diferenciadas para cada situação concreta a ser analisada, dentro das peculiaridades e dentro das características que merecem proteção. A solução a ser atingida para o conflito será fruto de uma reflexão acerca do problema através da aplicação de técnicas argumentativas, que tenderão a atingir a solução mais eqüânime, ponderável, proporcional e razoável diante do problema posto.

A crítica feita a estas teorias interpretativas, baseadas na tópica/retórica e na concretização, é que estas apenas renovaram o entendimento do fenômeno jurídico, mas não delimitaram o conteúdo do direito, não definindo uma Teoria Geral de cunho material para o mesmo. Apenas, aceitam estas teorias interpretativas a complexidade social e não reduzem o direito a meras regras subsuntivas na solução dos problemas concretos, mas mesmo assim mostram-se insuficientes para atender à necessidade da delimitação de um conteúdo e de uma Teoria Geral plausível para o fenômeno jurídico.

Enfim, dentro da breve visão acima delineada, pode-se perceber que não devemos adotar uma visão de reduzir o direito à norma jurídica, ou ao fato social, ou a uma mera decisão de cunho político, ou então excluir a aplicação do direito oficial em benefício de um suposto direito alternativo, nem tampouco pode-se aferir o direito apenas pela análise dos problemas concretos em face das técnicas da tópica/retórica utilizadas.

As visões do direito com base somente em norma, fato social, problema, poder, estatalidade, são todas formais, sem se conseguir aferir um conteúdo para o direito. Este conteúdo é algo necessário de ser determinado, aferindo-se a finalidade do direito na realidade humana atual, a fim de se tornar possível a construção de uma Teoria Geral do Direito com cunho efetivamente científico e embasado.

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Sobre o autor
Marcos André Couto Santos

procurador federal junto ao INSS em Recife (PE), mestre em Direito Público pela UFPE, professor universitário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Marcos André Couto. A delimitação de um conteúdo para o Direito.: Em busca de uma renovada teoria geral com base na proteção da dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 172, 25 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4605. Acesso em: 18 abr. 2024.

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