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A proteção dos direitos humanos e sua interação diante do princípio da dignidade da pessoa humana

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10/12/2003 às 00:00
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3 A proteção dos direitos humanos e a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

A Carta Magna de 1988 demarca, no plano jurídico, o processo de democratização do Estado brasileiro, propondo avanços no tocante à institucionalização dos direitos e garantias fundamentais e na proteção de setores mais vulneráveis da sociedade, a partir da ruptura com o regime autoritário militar. É a partir dela que os direitos humanos ganham destaque no cenário jurídico, situando-se a Constituição Brasileira de 1988 como o documento mais abrangente e pormenorizado sobre os direitos humanos até então adotado no Brasil.

A consolidação das liberdades fundamentais e das instituições democráticas no país alterou, por sua vez, profundamente a política brasileira de direitos humanos, desencadeando um progresso significativo no reconhecimento de obrigações internacionais neste campo. As relevantes transformações internas do cenário brasileiro geraram repercussões na esfera internacional, o que significa dizer que o equacionamento dos direitos humanos no âmbito da ordem jurídica interna

figurou como estratégia de reforço para que a questão dos direitos humanos entrasse definitivamente na agenda internacional do país.

Tem-se que as repercussões decorrentes dessa nova agenda internacional causaram alterações no plano interno e no próprio ordenamento jurídico do país. Essas mudanças implicaram um novo constitucionalismo, bem como uma abertura à internacionalização da proteção dos direitos humanos.

3.1 A Institucionalização dos direitos e garantias fundamentais

A Constituição democrática ratificada em 1988 ampliou consideravelmente o campo dos direitos e garantias fundamentais, colocando-se dentre as Constituições mais avançadas da atualidade no que diz respeito à matéria. Desde o seu preâmbulo, a Carta de 1988 propugna pela consolidação do Estado Democrático de Direito, "destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias (...)" [81]. Em seus três primeiros artigos, o texto constitucional apresenta princípios que consagram os fundamentos e os objetivos do Estado Democrático de Direito.

Destacam-se, dentre os fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito brasileiro, a cidadania e dignidade da pessoa humana (artigo 1º, incisos II e III) [82]. Verifica-se aqui o encontro do princípio do Estado Democrático de Direito e dos direitos fundamentais, evidenciando que os direitos fundamentais constituem o elemento básico para a realização do princípio democrático, uma vez que exercem uma função democratizadora.

Por sua vez, construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, constituem os objetivos fundamentais do Estado, conforme consta do artigo 3º [83] da Constituição Brasileira. Tais objetivos visam à concretização da democracia econômica, social e cultural, implicando na efetivação da dignidade e do bem-estar da pessoa humana. É nesse contexto que o valor da dignidade da pessoa humana revela-se como núcleo básico e informador de todo o ordenamento, imprimindo-lhe uma feição particular.

Partindo-se da concepção de que o sistema jurídico apresenta, ao lado das normas legais, princípios que incorporam valores, este define-se como uma ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos que possuem função ordenadora, na medida em que salvaguardam valores fundamentais. Portanto, a interpretação das normas constitucionais ocorre tendo-se por base critérios valorativos que emergem do próprio sistema constitucional. À luz dessas premissas, constata-se que o valor da dignidade da pessoa humana, bem como o valor dos direitos e garantias fundamentais, constituem os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, refletindo o suporte axiológico de todo o sistema jurídico brasileiro.

De fato, a busca do texto constitucional em resguardar o valor da dignidade humana é redimensionada na medida em que privilegia a temática dos direitos fundamentais, elevando-os, inclusive, à cláusula pétrea. Inova, ainda, a Carta de 1988, ao ampliar a dimensão dos direitos e garantias, incluindo no rol de direitos fundamentais, além dos direitos civis e políticos, os direitos sociais. Nesta ótica, o texto constitucional acolhe o princípio da indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, pelo qual o valor da liberdade se conjuga ao valor da igualdade, não sendo possível dissociar o elenco desses direitos.

Importante referir que a Carta de 1988 prevê, ao lado dos direitos individuais, os direitos coletivos, pertinentes a determinada classe ou categoria, e os direitos difusos, pertinentes a todos e a cada um. Assim, a Constituição Brasileira, ao mesmo tempo em que consolida a extensão de titularidade de direitos a novos sujeitos de direitos, também consolida o aumento da quantidade de bens merecedores de tutela, com a ampliação de direitos sociais, econômicos e culturais.

A Carta de 1988 concretiza, sobretudo, a concepção de que os direitos e garantias fundamentais são dotados de uma especial força expansiva, projetando-se no universo constitucional e servindo como parâmetro interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico.

Com o objetivo de reforçar a imperatividade das normas que traduzem direitos e garantias fundamentais, torna-se fundamental ressaltar que a Carta de 1988 instituiu o princípio da aplicabilidade imediata dessas normas, conforme disposição do parágrafo 1º do artigo 5º [84]. Este princípio realça a força normativa de todos os dispositivos constitucionais referentes a direitos, liberdades e garantias de cunho fundamental, cabendo ao Poder Público conferir-lhes eficácia máxima e imediata. Com efeito, este princípio tem a finalidade de assegurar a força dirigente e vinculante dos direitos e garantias fundamentais, tornando tais direitos prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

Logo, é neste contexto que se deve analisar os dispositivos constitucionais referentes à proteção internacional dos direitos humanos.

3.2 O Princípio Constitucional da Prevalência dos Direitos Humanos

A Constituição Brasileira de 1988, em seu art. 4º [85], enumera os princípios constitucionais que regem as Relações Exteriores do Brasil.

Destaca-se o princípio da prevalência dos direitos humanos como um dos mais importantes do artigo 4º, uma vez que simboliza a reinserção do Brasil no cenário internacional. A referência a Direitos Humanos é tomada no sentido lato, isto é, não abrange apenas o tempo de paz, abarcando as chamadas três vertentes da Proteção Internacional dos Direitos Humanos: Direitos Humanos strictu sensu, Direito Internacional Humanitário e Direito Internacional dos Refugiados, uma vez que a visão compartimentalizada destas vertentes leva a uma proteção ineficaz do ser humano.

A interpretação do sentido do termo Direitos Humanos deve se dar de modo amplo, pois vincula a ação diplomática brasileira, devendo ser respeitado em quaisquer acordos ou atos unilaterais, uma vez que implica a necessidade de o governo brasileiro colaborar com qualquer órgão estabelecido para monitorar a situação dos Direitos Humanos em sistemas de que o Brasil faça parte.

A interpretação dada pelo Direito Internacional a este dispositivo leva a crer que qualquer decisão emanada de tribunais internacionais de que o Brasil aceite a jurisdição obrigatória, e que envolvam matérias de Direitos Humanos, deve ser respeitada no direito interno. Isto se aplica especialmente às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja jurisdição o Brasil aceita desde 1998.

Obviamente todas estas obrigações decorrentes do princípio da prevalência dos Direitos Humanos já são estabelecidas no Direito Internacional; entretanto, o fato de se tratar de um princípio constitucional possibilita o controle destas obrigações pela via judicial no Brasil.

Em conjunto com o art. 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que dispõe: "O Brasil propugnará pela formação de um Tribunal Internacional dos Direitos Humanos"; este princípio favorece uma futura ratificação por parte do Brasil ao Estatuto de Roma, criando o Tribunal Penal Internacional, uma vez que uma ampla proteção dos Direitos Humanos não pode prescindir do princípio da responsabilização individual por crimes contra a humanidade.

A Carta de 1988, ao romper com a sistemática das Cartas anteriores, que se limitavam a assegurar os valores da independência e soberania do país, consagra, de forma inédita, o primado do respeito aos direitos humanos, como paradigma orientado para a ordem internacional. Este princípio inaugura a abertura da ordem jurídica interna ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos. A prevalência dos direitos humanos, como princípio a reger o país no cenário internacional, não implica apenas o engajamento da Nação no processo de elaboração de regras vinculadas ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, mas também implica a busca da plena integração dessas normas à ordem jurídica interna.

Ao fundamentar suas relações com base na prevalência dos direitos humanos, o Estado brasileiro reconhece a existência de limites e condicionamentos à idéia de soberania estatal. Ou seja, a soberania do Brasil fica submetida a normas jurídicas, tendo-se como parâmetro obrigatório a prevalência dos direitos humanos. Assim, rompe-se com a concepção tradicional de soberania estatal absoluta, relativizando-a em prol da proteção dos direitos humanos.

Com efeito, é necessário se interpretar os antigos conceitos de soberania estatal e não-intervenção conjuntamente aos princípios inovadores da ordem constitucional, como o princípio da prevalência dos direitos humanos. Estes são os novos valores incorporados pela Constituição de 1988 e que compõem a essência do constitucionalismo contemporâneo.

Outra questão relevante para o estudo das relações entre a Constituição Brasileira de 1988 e o Direito Internacional dos Direitos Humanos é o alcance do parágrafo 2º do artigo 5º da Carta Magna [86], ao determinar que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais de que o Brasil seja signatário. Comprova-se, assim, a interação entre a ordem jurídica interna e a ordem jurídica internacional dos direitos humanos.

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3.3 A Constituição Federal e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos

É notória e louvável a inovação trazida pela Carta de 1988 ao incluir, dentre os direitos constitucionalmente amparados, os direitos enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Tal processo de inclusão acarreta a incorporação desses direitos pelo ordenamento constitucional. Assim, ao efetuar essa incorporação, a Constituição Brasileira delega aos direitos internacionais uma hierarquia de norma constitucional, por sua vez, diferenciada.

Tem-se, então, que os direitos que compõem os tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, fazem parte do rol de direitos constitucionalmente consagrados. Esta conclusão é possível graças à interpretação sistemática e teleológica das normas, principalmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, tidos como critérios axiológicos e orientadores do fenômeno constitucional.

Nesse sentido, especial é a contribuição de Antonio Augusto Cançado Trindade:

Observe-se que os direitos se fazem acompanhar necessariamente das garantias. É alentador que as conquistas do direito internacional em favor da proteção do ser humano venham a projetar-se no direito constitucional, enriquecendo-o, e demonstrando que a busca de proteção cada vez mais eficaz da pessoa humana encontra guarida nas raízes do pensamento tanto internacionalista quanto constitucionalista. O disposto no artigo 5(2) da Constituição Brasileira de 1988 vem dar testemunho disso, além de inserir-se na nova tendência de recentes Constituições latino-americanas de conceder um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos e garantias individuais internacionalmente consagrados [87].

Em reforço à natureza constitucional dos direitos enunciados em tratados internacionais, acrescenta-se a natureza materialmente constitucional dos direitos fundamentais, prevista de modo explícito no parágrafo 2º do artigo 5º da Carta de 1988. De fato, a Constituição assume expressamente o conteúdo constitucional dos direitos previstos nos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte. Mesmo que tais direitos não estejam dispostos sob a forma de normas constitucionais, mas sob a forma de tratados internacionais, a Constituição delega-lhes o valor jurídico de norma constitucional, uma vez que complementam o rol de direitos fundamentais do ordenamento constitucional.

Sob essa ótica, pode-se afirmar que os direitos internacionais integram o chamado bloco de constitucionalidade, densificando a norma constitucional do parágrafo 2º do artigo 5º, tida como cláusula constitucional de caráter aberto. Ressalta-se que, ao estipular diretrizes e linhas básicas, revela-se a incompletude da Constituição, que, por sua vez, aponta à sua abertura, possibilitando a flexibilidade necessária ao contínuo aperfeiçoamento político.

Flávia Piovesan (2000) apresenta uma classificação dos direitos previstos pela Constituição, organizando-os em três grupos:

a) o dos direitos expressos na Constituição (por exemplo, os direitos elencados pelo texto nos incisos I a LXXVII do art. 5º); b) o dos direitos expressos em tratados internacionais de que o Brasil seja parte; e finalmente, c) o dos direitos implícitos (direitos que estão subentendidos nas regras de garantias, bem como os direitos decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição) [88].

Assim, se, por um lado, os direitos implícitos caracterizam-se pela imprecisão, vagueza e subjetividade, por outro lado, os direitos expressos na Constituição Brasileira e nos tratados internacionais de que o Brasil seja parte compõem um universo preciso de direitos.

Com efeito, todas as normas constitucionais são verdadeiras normas jurídicas e desempenham uma função útil no ordenamento; sendo assim, nenhuma norma constitucional é passível de interpretação que lhe diminua ou retire a razão de ser. Levando-se em conta os princípios da força normativa da Constituição e da ótima concretização da norma, à norma constitucional deve ser dado o sentido que maior eficácia lhe imprima, principalmente ao se tratar de norma instituidora de direitos e garantias fundamentais. Logo, prima-se pela máxima efetividade aos princípios constitucionais.

Importante enfatizar que os direitos enunciados em tratados internacionais de proteção dos direitos humanos têm hierarquia de norma constitucional, enquanto que os demais tratados internacionais possuem força hierárquica infra-constitucional. Essa hierarquia infra-constitucional é extraída do art. 102, III, "b" [89], da Constituição Federal, que atribui ao Supremo Tribunal Federal a competência para julgar, mediante recurso extraordinário, "as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal". Nessa diretriz, uma tendência da doutrina brasileira passou a acolher a tese de que os tratados internacionais e as leis federais apresentavam mesma hierarquia jurídica, inclinando-se pelo princípio "lei posterior revoga lei anterior que seja com ela incompatível".

No entanto, a orientação seguida no presente estudo prima pela atribuição de grau hierárquico constitucional aos tratados de direitos humanos, norteada pela aplicação do princípio da prevalência da norma mais favorável, em consonância com a ordem constitucional de 1988. Destarte, tem-se uma interpretação afinada com os valores prestigiados pelo atual sistema jurídico, em particular com o valor da dignidade humana, que é valor fundante do sistema constitucional.

Reitera-se que a teoria da paridade entre o tratado internacional e a legislação federal não é condizente com os tratados internacionais de direitos humanos, uma vez que a Carta de 1988 garante a estes um privilégio hierárquico, delegando-lhes natureza de norma constitucional. Enquanto os tratados internacionais comuns buscam o equilíbrio e a reciprocidade de relações entre Estados pactuantes, os tratados internacionais de direitos humanos transcendem os meros compromissos recíprocos entre os Estados-partes, pois visam à salvaguarda dos direitos do ser humano, assumindo obrigações em relação aos indivíduos, e não das prerrogativas do Estados.

Acrescenta-se ainda ao caráter especial dos tratados de proteção dos direitos humanos o argumento de que os tratados de direitos humanos apresentam superioridade hierárquica em relação aos demais ato internacionais, formando uma gama de princípios que possuem especial força obrigatória, chamada jus cogens. Tendo em vista que os direitos humanos mais essenciais fazem parte do jus cogens, pode-se admitir a hierarquia especial e privilegiada dos tratados internacionais de direitos humanos em relação aos demais [90].

Assim, a hierarquia constitucional dos tratados de proteção dos direitos humanos é conseqüência da previsão constitucional do parágrafo 2º do artigo 5º da Carta de 1988, graças a uma interpretação sistemática e teleológica da Constituição, especialmente da prioridade que atribui aos direitos fundamentais e ao princípio da dignidade da pessoa humana.

É importante levar-se em consideração que os direitos constantes nos tratados internacionais, bem como os demais direitos e garantias individuais consagrados pela Constituição, constituem cláusula pétrea, não podendo ser abolidos por meio de emenda, conforme disposto no artigo 60, parágrafo 4º [91], da Carta de 1988. Tem-se que as cláusulas pétreas protegem o núcleo material da Constituição, que compõem os valores fundamentais da ordem constitucional. Dessa forma, os direitos enunciados em tratados internacionais em que o Brasil seja parte incluem-se na cláusula pétrea "os direitos e garantias individuais", nos termos do art. 60, parágrafo 4º, inciso IV da Constituição Federal.

Contudo, ainda que os direitos internacionais constituam-se como cláusula pétrea, não sendo passíveis de exclusão por emenda constitucional, os tratados internacionais de direitos humanos estão sujeitos a denúncia por parte do Estado signatário. Os direitos internacionais poderão ser eliminados pelo mesmo Estado que os incorporou, em razão das peculiaridades do regime de direito internacional público, o que significa que cabe ao Estado-parte realizar o ato de ratificação do tratado, bem como o ato de denúncia, isto é, o ato de retirada do mesmo tratado. Enfatiza-se que a denúncia, no Direito brasileiro, é ato privativo do Poder Executivo, que não requer a participação do Legislativo.

3.4 O Conflito entre norma interna e norma internacional

O problema da incorporação dos tratados à ordem interna demonstra-se polêmico, possibilitando a identificação de duas correntes a saber: monista, para a qual não existem limites entre a ordem jurídica internacional e a ordem jurídica interna e, assim, uma vez celebrado o tratado, este obriga no plano interno; dualista, para a qual existe uma dualidade de ordens jurídicas, uma interna e outra externa, sendo então necessário e indispensável um ato de recepção para introduzir as regras constantes do tratado no âmbito do direito interno positivo.

Para os monistas, o Direito é concebido como uma unidade, em que as normas internacionais e internas são partes do mesmo ordenamento. Em caso de conflito entre a norma internacional e a norma nacional, a maioria dos monistas inclina-se pela prevalência do Direito Internacional. Já para os dualistas, o Direito interno e Direito Internacional são completamente independentes entre si, cada qual regulando matéria diversa. O Direito Internacional, nessa ótica, disciplinaria as relações entre Estados soberanos; o Direito interno, por sua vez, regularia os assuntos internos dos Estados, constituindo-se em sistemas mutuamente diferenciados e excludentes.

De fato, salvo na hipótese de tratados de direitos humanos, no texto constitucional não existe qualquer menção expressa acerca da questão da relação entre o Direito Internacional e o Direito interno e, conseqüentemente, não há referência sobre as correntes monista e dualista. A doutrina majoritária inclina-se pela corrente dualista, evidenciando duas ordens jurídicas diversas, em face do silêncio constitucional.

Dessa forma, para que o tratado ratificado surta efeitos no plano jurídico interno, é necessária a edição de ato normativo nacional com o objetivo de conferir execução e cumprimento ao tratado. Reitera-se que, para os tratados de direitos humanos há a previsão de aplicação imediata por força do artigo 5º, parágrafo 1º.

Para exemplificar uma situação de conflito entre direito internacionalmente garantido e dispositivo constitucional, destaca-se a questão relativa à prisão civil. Há previsão no artigo 11 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos no sentido de que "ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual" [92]. Semelhante disposição encontra-se no artigo 7º da Convenção Americana [93], que estabelece que ninguém deve ser detido por dívidas, acrescentando que este princípio não limita os mandados judiciais expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.

Houve ratificação, sem reservas, pelo Brasil nos referidos instrumentos internacionais em 1992. Contudo, a Constituição Federal determina, no artigo 5º, inciso LXVII, que "não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel". Tem-se, então, que a Carta de 1988 consagra o princípio da proibição da prisão civil por dívidas; entretanto, alude a duas exceções: a hipótese do inadimplemento de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.

É nesse cenário que se questiona a possibilidade jurídica da prisão civil do depositário infiel, uma vez que o Brasil ratificou os instrumentos sem qualquer reserva. Portanto, ao se levar em consideração o critério da prevalência da norma mais favorável à vítima no plano da proteção dos direitos humanos, deduz-se que não caberia a possibilidade de prisão do depositário infiel, dada à primazia da norma do tratado [94].

Enfatiza-se que se a situação fosse inversa, no caso da norma constitucional ser mais benéfica do que a norma internacional, dar-se-ia lugar à norma constitucional, inobstante os aludidos tratados apresentarem hierarquia constitucional e terem sido ratificados após o advento da Constituição. De fato, os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos possuem regras

interpretativas que levam a essa conclusão, ao disporem que os tratados internacionais só se aplicam se ampliarem o alcance da proteção nacional dos direitos humanos.

Atualmente existe uma tendência de abertura da ordem constitucional contemporânea à normação internacional, com a observância de princípios materiais de política e direito internacional informador do direito interno, uma vez que considera-se que as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de exprimirem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado.

3.4.1 Incorporação Automática e Incorporação Legislativa

Conforme abordado anteriormente, o artigo 5º da Constituição Federal, em seu parágrafo 1º, consagra o princípio da aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais. Portanto, tendo-se que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais são de aplicação imediata, e que os tratados internacionais de direitos humanos possuem como objeto a definição de direitos e garantias, é possível concluir que estas normas demandam aplicação imediata.

Desse modo, os direitos fundamentais garantidos pelos tratados de proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é parte, conforme os parágrafos 1º e 2º do artigo 5º, passam a fazer parte do rol dos direitos constitucionalmente consagrados direta e imediatamente exigíveis no âmbito do direito interno. Isso significa que é possível a invocação imediata de tratados e convenções de direitos humanos, tendo-se o Brasil como signatário, sem a necessidade de edição de ato com força de lei para dar vigência interna aos acordos internacionais.

Tem-se, assim, a incorporação automática do Direito Internacional dos Direitos Humanos pelo ordenamento jurídico interno, sendo desnecessário qualquer ato jurídico complementar para a sua exigibilidade e implementação. No entanto, há que se analisar as conseqüências advindas dessa incorporação automática. De um lado, permite ao indivíduo, de modo particular, a invocação direta dos direitos e liberdades assegurados no plano internacional e, por outro, proíbe condutas e atos violadores a tais direitos, sob pena de invalidação.

Nesse contexto, a partir da entrada em vigor do tratado internacional, toda norma preexistente que seja com ele incompatível perde imediatamente a vigência. Destarte, as decisões judiciais que violem as disposições do tratado passam a ser recorríveis; configurando-se aqui uma das sanções aplicáveis no caso de inobservância dos tratados. Inobstante, a Constituição Brasileira delega ao Poder Judiciário, consoante o artigo 105, III, "a" [95], competência para declarar inválida e antijurídica a conduta violadora a tratado internacional, podendo, se for o caso, impor sanções pecuniárias em favor da vítima que sofreu violação a seu direito fundamental.

Em relação à incorporação legislativa do Direito Internacional, importa referir que os enunciados dos tratados ratificados pelo Brasil não são incorporados de plano pelo direito interno, dependendo necessariamente de legislação para sua implementação, ao contrário do que se dá com a incorporação automática. Enfatiza-se que o ato legislativo que edita a lei como norma interna é um ato distinto do ato de ratificação do tratado internacional.

Fundamental é a contribuição de Flávia Piovesan acerca das questões que envolvem a incorporação automática e a incorporação legislativa do Direito Internacional:

Em suma, em face da sistemática da incorporação automática, o Estado reconhece a plena vigência do Direito Internacional na ordem interna, mediante uma cláusula geral de recepção automática plena. Com o ato da ratificação, a regra internacional passa a vigorar de imediato tanto na ordem jurídica internacional, como na ordem jurídica interna, sem a necessidade de uma norma de direito nacional que a integre ao sistema jurídico. Esta sistemática da incorporação automática reflete a concepção monista, pela qual o Direito Internacional e o Direito Interno compõem uma mesma unidade, uma única ordem jurídica, inexistindo qualquer limite entre a ordem jurídica internacional e a ordem interna. Por sua vez, na sistemática de incorporação legislativa, o Estado recusa a vigência imediata do Direito Internacional na ordem interna. Por isso, para que o conteúdo de uma norma internacional vigore na ordem interna, faz-se necessária a sua reprodução ou transformação por uma fonte interna. Neste sistema, o Direito Internacional e o Direito Interno são duas ordens jurídicas distintas, pelo que aquele só vigorará na ordem interna se e na medida em cada norma internacional for transformada em Direito Interno. Esta sistemática de incorporação não automática reflete a concepção dualista, pela qual há duas ordens jurídicas diversas, independentes e autônomas – a ordem nacional e a ordem internacional – que não apresentam qualquer contato e nem mesmo qualquer interferência [96].

Pode se concluir, assim, que o Direito brasileiro optou por um sistema misto, combinando regimes jurídicos diversos, que aplica aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos a sistemática de incorporação automática, e aos tratados tradicionais, a sistemática de incorporação legislativa, uma vez que exige um ato com força de lei, um decreto expedido pelo Executivo, para tornar obrigatório o tratado internacional no ordenamento interno. Portanto, infere-se que os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos possuem hierarquia constitucional e aplicação imediata, consoante o artigo 5º, parágrafos 1º e 2º, da Constituição Brasileira, enquanto que os tratados tradicionais apresentam hierarquia infra-constitucional e aplicação não-imediata, nos termos do artigo 102, III, "b" [97] do referido diploma e da inexistência de norma legal que garanta a aplicação imediata.

A adoção da sistemática de incorporação automática em relação aos tratados internacionais de direitos humanos demonstra uma tendência das Constituições contemporâneas, tais como: a Constituição Portuguesa, a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, a Constituição espanhola, a Constituição holandesa e, ainda, o direito francês e o direito suíço.

3.4.2 O Impacto Jurídico do Direito Internacional dos Direitos Humanos no ordenamento brasileiro

Em relação ao impacto jurídico dos tratados internacionais de direitos humanos no Direito interno brasileiro, levando-se em conta a hierarquia constitucional desses tratados, pode-se visualizar três situações em que o direito enunciado no tratado: a) coincide com o direito assegurado na Constituição, reproduzindo-o; b) integra e complementa a gama de direitos previstos na Constituição; ou c) contraria disposição do ordenamento interno.

Está comprovado que a Constituição Brasileira contém inúmeros dispositivos que reproduzem fielmente as normas constantes dos tratados internacionais de direitos humanos, conforme se depreende do princípio de que "todos são iguais perante a lei", consagrado no artigo 5º da Carta de 1988, que também está previsto no art. VII da Declaração Universal [98], no art. 26 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos [99] e no art. 24 da Convenção Americana [100]. Outro exemplo é o princípio da inocência presumida constante do artigo 5º, LVII [101], da Constituição Federal, que teve inspiração no Direito Internacional dos Direitos Humanos, nos termos do art. XI da Declaração Universal [102], art. 14 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos [103] e artigo 8º da Convenção Americana [104].

A reprodução de normas de tratados internacionais de direitos humanos na ordem jurídica brasileira reflete, além do fato do legislador nacional buscar orientação e inspiração neste instrumental, a preocupação do legislador em ajustar o Direito interno, com consonância, às obrigações internacionalmente contraídas pelo Brasil. Neste contexto, os tratados internacionais de direitos humanos reforçam o valor jurídico de direitos constitucionalmente previstos, de modo que uma possível violação do direito acarretará responsabilização nacional e internacional.

Outro importante impacto jurídico decorrente da incorporação do Direito Internacional dos Direitos Humanos pelo ordenamento interno constitui-se na ampliação da gama de direitos nacionalmente assegurados. De fato, os tratados internacionais de direitos humanos reforçam a Carta de direitos prevista constitucionalmente, inovando-a e completando-a com a inserção de novos direitos.

Há inúmeros direitos elencados nos instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil que, embora não previstos expressamente no Direito interno, passam a se incorporar à ordem jurídica interna brasileira, tais como: o direito das minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas de ter sua própria vida cultural, professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua, conforme disposição do artigo 27 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos [105] e do artigo 30 da Convenção sobre os Direitos da Criança [106]; o direito de não ser submetido a experiências médicas ou científicas sem consentimento do próprio indivíduo, nos termos do artigo 7º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos [107]; vedação da utilização de meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões, segundo o artigo 13 da Convenção Americana [108]; possibilidade de adoção pelos Estados de medidas temporárias e especiais que visem acelerar a igualdade de fato entre homens e mulheres, nos termos do artigo 4º da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres [109], dentre tantos outros.

Constata-se, assim, a influência inovadora e expansiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos sobre o universo dos direitos constitucionalmente assegurados, uma vez que os instrumentos internacionais de direitos humanos podem integrar e complementar dispositivos normativos do ordenamento interno, permitindo o reforço de direitos nacionalmente previstos.

A terceira situação resultante do impacto jurídico dos tratados internacionais de direitos humanos no Direito interno brasileiro diz com a hipótese de um eventual conflito entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito nacional. A solução para a situação em tela orienta-se para a escolha da norma mais favorável à vítima, ou seja, prevalecerá a norma mais benéfica ao indivíduo, titular do direito. Contudo, não há porque se reportar à questão da primazia do direito internacional ou do direito interno; importa, aqui, a primazia da norma que melhor proteja os direitos consagrados da pessoa, seja esta norma de direito internacional ou de direito interno. A primazia é, sobretudo, da pessoa humana.

Nesse cenário, os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e fortalecer, jamais restringir ou enfraquecer, o grau de proteção dos direitos consagrados pela ordem normativa constitucional. Portanto, em caso de conflito entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito interno, propugna-se pela prevalência da norma mais favorável à vítima. Reitera-se que a escolha da norma mais benéfica ao indivíduo cabe fundamentalmente às cortes nacionais e a outros órgãos aplicadores do direito, no sentido de assegurar a melhor proteção possível ao ser humano.

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Sobre a autora
Mabel Cristiane Moraes

Servidora Pública do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Mabel Cristiane. A proteção dos direitos humanos e sua interação diante do princípio da dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 157, 10 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4607. Acesso em: 22 nov. 2024.

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