A teoria da perda de uma chance

27/01/2016 às 10:31
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Trata-se de uma nova modalidade de responsabilidade civil que se reveste de pouca literatura. Em verdade, os moldes da responsabilidade civil pela perda de uma chance é chancelada pelos tribunais brasileiros, bem como seus pressupostos de existência.

1 INTRÓITO À TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE

A teoria da perda de uma chance como nova categoria de dano tem origem na França (perte d´une chance), sendo adotada também em países como Estados e Unidos e Itália.

No Brasil, cresce o número de julgados versando sobre responsabilidade civil que aplicam a teoria em comento, assim como na doutrina, que cada vez mais tem se debruçado sobre o tema para definir seus limites e âmbito de aplicação.

A reponsabilidade civil sempre teve como pressupostos a existência de um dano ocasionado por uma conduta humana, cujo vínculo entre o primeiro (consequente) e o segundo (antecedente) não se podia dissociar.

Assim, a reponsabilidade civil nada mais é do que a reparação por um prejuízo causado a um terceiro, de forma que este prejudicado possa voltar ao status quo ante.

  A Constituição Federal, ao mesmo tempo que estabelece ser livre a manifestação do pensamento (art. 5º, IV), assegura, no inciso V, o direito de resposta, caso essa manifestação se mostre danosa a terceiro, assegurando-lhe a indenização por dano material, moral ou à imagem. O Código Civil de 2002, por sua vez, assegura a obrigação de reparar daquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem.

O instituto jurídico da responsabilidade civil, em seu processo evolutivo, avançou para abarcar cada vez mais um número maior de responsáveis, beneficiários e fatos ensejadores de reparação. Neste sentido, saímos de uma responsabilidade civil subjetiva, em que a demonstração de culpa lato sensu era necessária, para uma responsabilidade civil objetiva.

Nesse processo evolutivo de ampliação da responsabilidade, surge a chamada “teoria da perda de uma chance”. Como afirma Flávio Tartuce, colocando o instituto como espécie dos novos danos, juntamente com os danos estéticos, danos morais coletivos e danos sociais:

Diante desse contexto de aplicação, em que o dano assume papel fundamental na matéria da responsabilidade civil, pode-se elaborar o seguinte quadro, que aponta quais são os danos clássicos ou tradicionais e os danos novos ou contemporâneos, na realidade jurídica nacional:

Danos clássicos ou tradicionais: Danos materiais e danos morais.

Danos novos ou contemporâneos: Danos estéticos, danos morais coletivos, danos sociais e danos por perda de uma chance[1].

2 A PERDA DE UMA CHANCE

2.1 Conceito                      

Em razão da ausência de disciplinamento legal a respeito do instituto, coube à doutrina brasileira, destacando-se os trabalhos de Sérgio Savi (Responsabilidade civil por perda de uma chance) e Rafael Peteffi da Silva (Responsabilidade civil pela perda de uma chance), conceituar o instituto e estabelecer seus pressupostos.

Neste sentido, como trabalho da doutrina, na V Jornada de Direito Civil, realizada no ano de 2011, foi aprovado o Enunciado nº 444 nos seguintes termos:

444) Art. 927. A responsabilidade civil pela perda de chance não se limita à categoria de danos extrapatrimoniais, pois, conforme as circunstâncias do caso concreto, a chance perdida pode apresentar também a natureza jurídica de dano patrimonial. A chance deve ser séria e real, não ficando adstrita a percentuais apriorísticos.

Rafael Peteffi assim conceitua a chance perdida:

A chance representa uma expectativa necessariamente hipotética, materializada naquilo que se pode chamar de ganho final ou dano final, conforme o sucesso do processo aleatório. Entretanto, quando esse processo aleatório é paralisado por um ato imputável, a vítima experimentará a perda de uma probabilidade de um evento favorável. Esta probabilidade pode ser estatisticamente calculada, a ponto de lhe ser conferido um caráter de certeza. [2]

A perda de uma chance perfaz-se, portanto, quando alguém frustra uma expectativa ou oportunidade futura de outrem (seja para concretização de algo, seja para evitar-lhe prejuízo) que, dentro de um juízo lógico-hipotético razoável, teria por ocorrida, considerando-se o curso natural de acontecimentos. No entanto, é necessária que essa chance se repute séria e real, sendo muito mais do que uma simples esperança subjetiva.

Nas palavras de Sérgio Cavalieri Filho, a perda de uma chance caracteriza-se quando:

[...] em virtude da conduta de outrem, desaparece a probabilidade de um evento que possibilitaria um benefício futuro para a vítima, como progredir na carreira artística ou militar, arrumar um melhor emprego, deixar de recorrer de uma sentença desfavorável pela falha do advogado, e assim por diante. Deve-se, pois, entender por chance a probabilidade de se obter um lucro ou de se evitar uma perda. [3]  

 Essa chance não deve, contudo, ser considerada como um resultado certo, haja vista que é da essência dela a incerteza. Ao contrário, a chance deve ser encarada como a perda da possibilidade de ganhar algo ou evitar que determinado resultado ocorra. É a perda da probabilidade de ocorrência de um resultado – obter um lucro (aumento do patrimônio) ou se evitar uma perda (não ocorrência do dano), e não a perda da própria oportunidade. É preciso distinguir, pois, o resultado perdido e a possibilidade de consegui-lo.

Ato contínuo, a indenização ocorrerá mediante uma projeção em cima dessas perdas. Logo, a delimitação do valor a ser indenizado não é equivalente à vantagem perdida, uma vez que não se objetiva reparar a vantagem propriamente esperada, mas tão somente a perda da oportunidade de obtê-la.

Segundo Sérgio Savi[4], adotando-se critérios objetivos de aplicação, a perda da chance reputar-se-á verificada quando a probabilidade de oportunidade for superior a 50% (cinquenta por cento). No mesmo sentido, Cavalieri Filho: “A perda de uma chance, de acordo com a melhor doutrina, só será indenizável se houver a probabilidade de sucesso superior a cinqüenta por cento, de onde se conclui que nem todos os casos de perda de uma chance serão indenizáveis.” [5]    

2.2 Natureza jurídica                   

Se incontroversa, na doutrina e na jurisprudência, é a possibilidade de caracterização da responsabilidade civil pela perda de uma chance, o mesmo não se pode dizer quanto à sua natureza jurídica.

A doutrina não é uníssona quanto à classificação da natureza jurídica do dano ocasionado pela perda de uma chance. Grande parte da doutrina se divide em três categorizações, a saber, lucros cessantes; danos emergentes; e uma categoria autônoma. Minoria doutrinária enquadra-a, ainda, em danos morais.

É preciso diferenciar, pois, as categorias.

Lucros cessantes é tudo aquilo que a vítima deixou de auferir, de lucrar. É algo futuro que deixou de fazer parte do patrimônio da vítima, carecendo de comprovação em juízo da existência de um prejuízo futuro que seria quase. Considerar a perda de uma chance como lucros cessantes é tornar por demais onerosa a comprovação, uma vez que deverá ser provado, de forma inequívoca, que o resultado esperado seria alcançado não fosse a conduta frustrante do agente causador. Seria praticamente impossível no plano da perda de uma chance, haja vista que esta se funda num juízo de probabilidade. No lucro cessante, há uma probabilidade objetiva que o resultado aconteceria se não fosse o fato antijurídico. Na perda de uma chance, há uma probabilidade aleatória, uma vez que não há como se afirmar que o resultado ocorreria se não tivesse acontecido o fato frustrante, mas há, indiscutivelmente, a perda de uma oportunidade.     

 O dano emergente, por sua vez, consagra um efetivo e imediato “arrefecimento patrimonial” da vítima, naquilo que ela efetivamente perdeu, não podendo se confundir com a perda de uma oportunidade de um resultado futuro. Noutro giro, o dano moral é aquele que afeta o estado psíquico, moral ou intelectual da vítima, ou seja, aquele que viola um bem ligado à personalidade. Na perda de uma chance, a frustração se dá de um interesse do sujeito, podendo ser de cunho patrimonial ou não.

Neste sentido, pode-se inferir, em suma, que a teoria lastreia-se no direito à reparação em razão de um dano, perdendo-se uma oportunidade, não obrigatoriamente de alcançar determinado resultado, mas de tentar alcançar. O dano ocasionado pela perda de uma chance não se enquadra nem como um dano emergente nem como um lucro cessante, haja vista que havia uma probabilidade e não uma certeza exata de que o resultado final aconteceria se a chance não tivesse sido furtada da vítima.

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Melhor, portanto, é caracterizar o instituto como uma categoria autônoma, com pressupostos próprios e específicos, aferíveis diante do caso concreto. A doutrina e a jurisprudência estabeleceram os seguintes pressupostos: (i) chances reais e sérias, superando as meras expectativas e esperanças subjetivas; (ii) probabilidade de conseguir a vantagem esperada superior a 50%, aferidas estatisticamente; e (iii) Quantificação das chances perdidas, de tal forma que a reparação desta chance perdida seja sempre inferior ao valor da vantagem esperada e perdida pela vítima.

2.3 Aplicações da teoria

A primeira tentativa de aplicação da teoria da perda de uma chance no Brasil deu-se na seara médica. O caso referia-se a um pedido de indenização em virtude de um erro médico, no qual uma paciente, submetida a uma cirurgia para correção de miopia de 4º grau, teve como resultado uma hipermetropia de grau 2, além de cicatrizes e outras complicações na córnea. No entanto, o acórdão proferido em 1990 pelo Desembargador do TJRS, Ruy Rosado Aguiar Júnior, entendeu pela não aplicação da teoria.

Entre as hipóteses de aplicação da teoria no Brasil mais comuns podem ser citadas os julgados que responsabilizam advogados por perderem prazos de seus clientes (desídia do advogado), fazendo com que estes percam a chance de vitória judicial ou, ao menos, de recorrerem de eventual sucumbência (a título ilustrativo: STJ, Ag. Rg. no Ag. 932.446/RS, Processo 2007/0167882-9, 3ª Turma, Rel.ª Min. Fátima Nancy Andrighi, j. 06.12.2007, DJU 18.12.2007). Outro exemplo é o do médico que não diagnostica corretamente o paciente com doença grave ou emprega uma técnica malsucedida, gerando uma perda de chance de cura (o TJRS já responsabilizou  hospital por morte de recém-nascido, caso em que houve perda da chance de viver – TJRS, Processo 70013036678, Data: 22.12.2005, 10ª Câmara Cível, Juiz Rel. Luiz Ary Vessini de Lima). Também o TJRS já responsabilizou cursinho preparatório para concursos públicos que tinha se comprometido a realizar o transporte do aluno até o local da prova e não o fez corretamente, gerando a perda da chance de disputa em concurso público do concursando (TJRS, Processo 71000889238, Data: 07.06.2006, 2ª Turma Recursal Cível, Juiz Rel. Clovis Moacyr Mattana Ramos).

No entanto, o caso mais emblemático na jurisprudência pátria foi pronunciado pelo STJ, num julgado envolvendo o programa Show do Milhão, de Sílvio Santos, no SBT. Neste caso, uma participante chegou à última pergunta, valendo um milhão de reais, mas teve frustrada a chance de ganhar em razão da formulação imprecisa da pergunta. Na espécie, perguntou-se qual o percentual de terras indígenas estabelecida na Constituição. No entanto, a Constituição não indica nenhum percentual de reserva às terras indígenas, o que confundiu a participante e   ocasionou a desistência, fazendo com ela levasse para casa R$ 500 mil. Ao pleitear os outros R$ 500 mil (obtendo êxito na primeira e segunda instâncias quanto a este valor) a autora teve concedida pelo STJ a indenização pelo que razoavelmente deixou de lucrar em razão da perda da oportunidade, resultando num montante equivalente a R$ 125 mil (equivalente aos R$ 500 mil divididos pelas quatro alternativas).   

REFERÊNCIAS

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008..

SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil por perda de uma chance. São Paulo: Atlas, 2006.

SILVA, Rafael Peteffi da. Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2 ed., São Paulo: Atlas, 2009.

TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 2. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2012.


[1] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 2. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2012. p. 450.

[2] SILVA, Rafael Peteffi da. Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2 ed., São Paulo: Atlas, 2009. p. 13.

[3] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008. pág. 75.

[4] SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil por perda de uma chance. São Paulo: Atlas, 2006. pág. 33.

[5] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008. pág. 75.

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Sobre o autor
Ítalo Medeiros Cisneiros

Pós-graduação em Direito Constitucional pela UNIDERP. Graduação em Direito na UNICAP-PE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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