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Reflexos penais da utilização de simuladores de urnas eletrônicas

03/02/2004 às 00:00
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Com o advento da votação e apuração eletrônicas no ano de 1996, várias empresas, especialmente aquelas ligadas à área de publicidade, passaram a oferecer aos candidatos equipamentos visando a simular o funcionamento das urnas eletrônicas de uso exclusivo da Justiça Eleitoral.

Forte, todavia, no entendimento de que esses mecanismos confundiriam os eleitores em relação ao manuseio das verdadeiras urnas, diversos Tribunais Regionais Eleitorais do país passaram a proibir, seja por meio de Resoluções, seja por meio de Provimentos dos Corregedores Regionais Eleitorais, a utilização de tais equipamentos.

Chamado a decidir sobre a validade desses atos, entendeu o Tribunal Superior Eleitoral que realmente caberia a cada Tribunal Regional disciplinar a matéria como entender de direito [1], abstendo-se até o momento de regulamentar a utilização dos simuladores de urnas eletrônicas [2].

Também o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de se manifestar sobre o assunto, seja negando mandado de injunção que visava à regulamentação do uso dos simuladores [3], seja indeferindo liminares em diversas ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas com o fim de impugnar atos de Tribunais Regionais que proibiam a utilização daqueles equipamentos [4].

Deixando de lado aqui a duvidosa competência dos Tribunais Regionais Eleitorais para produzir atos abstratos e impessoais (lei em sentido formal) que restrinjam comportamentos de particulares sem ligação direta com a organização das eleições, além da eventual licitude dos atos de propaganda realizados com os tais simuladores, ante a ausência de vedação expressa na legislação eleitoral [5], cumpre anotar, no que interessa ao presente estudo, que estão sendo abertos inúmeros inquéritos policiais para apurar a responsabilidade penal dos indivíduos que, desobedecendo às instruções da Justiça Eleitoral, comercializam ou utilizam os simuladores de urnas eletrônicas.

Analisando-se tais condutas, poder-se-ia cogitar, em linha de princípio, da configuração de apenas dois tipos penais: aqueles previstos nos arts. 340 [6] e 347 [7] do Código Eleitoral.

Quanto ao primeiro desses crimes – fabricação de objeto de uso exclusivo da Justiça Eleitoral – impõe-se ressaltar que esses simuladores – como o próprio nome está a indicar – não visam a reproduzir exatamente a urna eletrônica, senão se limitam a servir, ora de mecanismo de treinamento dos eleitores, ora de modalidade de propaganda eleitoral, pelo que não resta caracterizado, sequer em tese, o crime em alusão.

Tratamento diverso ocorreria nos casos em que o agente desejasse efetivamente imitar com exatidão o equipamento da Justiça Eleitoral, incluindo aí suas dimensões, símbolos, modo de funcionamento, enfim todas suas características. Nessa hipótese, sim, poder-se-ia alvitrar da configuração do crime de fabricação de objeto de uso exclusivo da Justiça Eleitoral.

Ademais, como normalmente é bastante fácil perceber a diferença entre o simulador e a verdadeira urna, pode-se afirmar que a conduta não se reveste de qualquer potencialidade lesiva, na medida em que não possui aptidão para iludir o homem médio. [8]

Por esses motivos, deve-se afastar imediatamente a configuração do delito previsto no art. 340 do Código Eleitoral, em face da atipicidade da conduta.

No que diz respeito a uma possível caraterização do crime de desobediência, também isso não ocorre.

Com efeito, conforme doutrina e jurisprudência pacíficas, exige-se para a configuração da desobediência que a ordem seja emitida de forma direta e específica ao agente. No ponto, afirma Suzana de Camargo Gomes que "a ordem deve ser específica, determinada, dirigida a certa pessoa, para que, não sendo cumprida, resulte evidenciado o crime de desobediência." [9]

Nesse mesmo sentido, inclina-se a jurisprudência, verbis:

"Se o acusado simplesmente deixou de seguir instruções genéricas do Tribunal Superior Eleitoral, mas não resistiu a ato legal, concreto e específico, de funcionário público, perante ele, determinadamente praticado, nem em desobediência a ordem legal, a ele determinadamente dirigida, não incidiu, nem mesmo em tese, na conduta delituosamente prevista no art. 347 do Código Eleitoral." (STF, Ação Penal nº 310-3, Rel. Min. Sidney Sanches).

"Crime eleitoral. Desobediência. Necessário, para sua configuração, que tenha havido ordem judicial, direta e individualizada, expedida ao agente. Caso em que tal não ocorreu. Reforma do acórdão, para fim de deferimento de ‘habeas corpus’ que tranca a ação penal." (TSE, RHC nº 236-CE, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 16.jun. 1995. p. 18340).

"Crime eleitoral. Caracterização. Propaganda irregular. Código Eleitoral, art. 347.

I – O crime de desobediência (Código Eleitoral, art. 347) exige, para a sua caracterização, descumprimento a ordem judicial direta e individualizada. Tratando-se de norma genérica, abstrata, não há falar em crime de desobediência.

II – Precedentes: Acórdãos 8.446, 13.460 e 13.429.

III – Recurso especial conhecido e provido." (TSE, REsp nº 11650-SP, julg. 08.set.1994, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 21.out.1994).

"Habeas Corpus. Trancamento de ação penal. Crime de desobediência. Falta de justa causa.

O descumprimento de determinação genérica do juízo eleitoral não aperfeiçoa o crime do art. 347 do Código Eleitoral, que pressupõe ordem específica, direcionada ao agente, repontando, assim, a nota de excepcionalidade que rende ensejo ao trancamento da ação penal, por falta de justa causa. Precedentes. Ordem deferida." (HC nº 245-PB, julg. 16.nov.1995, Rel. Min. Costa Leite, DJ 15.dez.1995, p. 44128).

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Aliás, não fosse assim, seria forçoso extrair a conclusão absurda de que todos os atos contrários às resoluções produzidas pelos órgãos da Justiça Eleitoral, a exemplo das instruções das eleições, seriam também fato típico apto a desencadear a persecução penal, o que evidentemente soa despropositado. [10]

Nessas condições, por um ângulo ou por outro, a conduta ora tratada deve ser tida por atípica, impondo-se o trancamento dos inquéritos policiais ora em curso ou das ações penais porventura propostas [11].


Notas

01. "Utilização de Simuladores de Voto Eletrônico. Aos Tribunais Regionais Eleitorais cabe tomar as providências que se fizerem necessárias a evitar que o uso de tais simuladores possa contribuir para confundir o eleitor com relação ao manejo da Urna Eletrônica." (TSE, Resolução nº 20.343-DF, julg. 1º.set. 1998, Rel. Min. Eduardo Alckmin, DJ 21.set.1998, p. 65).

02. "Petição. Regulamentação. Simuladores eletrônicos. Urnas eleitorais. Impossibilidade. Precedente. O cuidado de não se permitir o uso de simuladores é exatamente no sentido de evitar que o eleitor fique confuso com relação ao manejo da urna eletrônica. Pedido indeferido." (TSE, Resolução nº 21.161-DF, julg. 1º. ago.2002, Rel. Min. Luiz Carlos Madeira, DJ 13.ago.2002, p. 159).

03. "Mandado de Injunção. 2. Tribunal Superior Eleitoral. 3. Norma reguladora para o direito de uso de simuladores de urnas eletrônicas. 4. Ausência de lacuna técnica. 5. Precedente. 6. Inadmissibilidade da ação. 7. Mandado de injunção não conhecido." (STF, Mand. Inj. nº 589-CE, Rel. Gilmar Mendes).

04. "Simulador eletrônico de votação. Insuficiência de relevo jurídico da sustentação da incompetência da Justiça Eleitoral para estabelecer, mediante Resolução, a vedação de seu uso como veículo de propaganda. Medida cautelar indeferida." (STF, ADI nº 2287-GO, julg. 13.set.2000, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 02.ago.2002, p. 368). No mesmo sentido: "Constitucional. Eleitoral. Resolução administrativa de TRE. Proibição do uso de simulador de urna eletrônica. O simulador é mecanismo de propaganda e não de instrução ao eleitor. Seu uso indiscriminado, por vincular-se à capacidade econômica dos candidatos imporia um desnivelamento entre os mesmos. Liminar indeferida." (STF, ADI nº 2278-PE, julg. 13.set.2000, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 27.set.2002, p. 81).

05. Cf. art. 243 do Código Eleitoral.

06. "Art. 340. Fabricar, mandar fabricar, adquirir, fornecer, ainda que gratuitamente, subtrair ou guardar urnas, objetos, mapas, cédulas ou papéis de uso exclusivo da Justiça Eleitoral: Pena – reclusão até 3 (três) anos e pagamento de 3 (três) a 15 (quinze) dias-multa."

07. "Art. 347. Recusar alguém cumprimento ou obediência a diligência, ordens ou instruções da Justiça Eleitoral ou pôr embaraços à sua execução: Pena – detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e pagamento de 10 (dez) a 20 (vinte) dias-multa."

08. A situação é idêntica a que ocorre com o crime de moeda falsa, em que se exige a aptidão ilusória. Nesse sentido, Damásio de Jesus, in Código Penal Anotado, 12ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 887.

09. Crime Eleitorais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 282. Comentando o crime de desobediência previsto no art. 330 do Código Penal, assevera Celso Delmanto: "A ordem deve ser dirigida direta e expressamente ao agente, exigindo-se que este tenha conhecimento inequívoco dela." (in Código Penal Comentado, 5ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 583).

10. A exigência de que a ordem seja direta e específica tem sido objeto de manifestação do Min. Sepúlveda Pertence nos julgamentos das ações diretas de inconstitucionalidade propostas contra os atos de proibição do uso de simuladores de urnas eletrônicas. Entende o citado Ministro que a menção a responsabilidade penal naquelas resoluções não pode subsistir. Nesse sentido: "Eleições: urnas eletrônicas: vedação da utilização de simuladores na propaganda eleitoral, com aceno à responsabilidade penal por infração ao art. 374, C. Eleitoral: proibição que, à primeira vista, não ofende à Constituição, donde, na linha de decisões anteriores, o indeferimento da suspensão cautelar do ato normativo, vencido parcialmente o relator que a deferia na parte em que acena com sanção penal inaplicável à hipótese." [sem grifos no original] (STF, ADI nº 2285-SE, julg. 14.set.2000, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14.dez.2001, p. 23).

11. O raciocínio ora exposto foi acolhido pelo Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, por meio do voto condutor do Juiz Antônio Abelardo Benevides Moraes, quando do julgamento do Recurso Criminal nº 11049, julg. 2.6.2003, DJ 20.6.2003, p. 163.

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Sobre o autor
Marcílio Nunes Medeiros

procurador federal, especialista em Direito Público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Marcílio Nunes. Reflexos penais da utilização de simuladores de urnas eletrônicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 212, 3 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4631. Acesso em: 25 abr. 2024.

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