1. INTRODUÇÃO
Nenhum indivíduo existe de forma isolada, estando todos envolvidos em uma complexa rede de relações interpessoais que constituem a vida em sociedade. E é dentro deste cenário que é construída a identidade de cada um, com os respectivos papéis sociais desempenhados.
Por consequência, o Direito, em especial o Direito do Trabalho, possui função relevante nesta construção social, uma vez que as relações laborais são parte significativa de como o cidadão se apresenta e se afirma junto à coletividade. Todavia, as mudanças no sistema político-econômico, em especial com a globalização, vem apresentando novos desafios para a caracterização desta identidade social, sendo as garantias trabalhistas frequentemente apontadas como ultrapassadas e excessivamente onerosas aos empregadores.
Assim, os detentores dos meios de produção cada vez mais buscam formas de aumentar sua lucratividade, afirmando que o êxito junto aos mercados internacionais globalizados exigira uma mudança nas estruturas laborais, com menos garantias, e maior agilidade. O Estado passa a endossar tal tese, equiparando o interesse empresarial ao interesse nacional, atuando para paulatinamente minar os direitos trabalhistas. Em um nítido viés neoliberal, defende assim que uma relação de trabalho enfraquecida ainda seria preferível à situação de desemprego, e que estas seriam as únicas escolhas cabíveis aos trabalhadores.
Desta maneira, ao corroborar as ideias neoliberais dos empregadores, o Estado aliena o indivíduo de sua identidade, em especial no que tange ao trabalho. Este torna-se assim apenas uma engrenagem em um sistema de produção, descartável e sem garantias, existindo apenas para o interesse do empregador.
2. EVOLUÇÃO SOCIAL E A PERDA DA IDENTIDADE DO INDIVÍDUO
2.1. Identidade Social e a Fragilização das Relações Humanas
Inicialmente, vale destacar que identidade pode ser definida como um conjunto de características pelas quais alguém pode ser reconhecido, sendo construída pelos sujeitos sociais em uma perspectiva interacionista, na qual as expectativas que os membros do grupo têm sobre os papéis a serem desempenhados pelos sujeitos constituem os pilares de sustentação. Logo, a identidade possui simultaneamente uma dimensão individual, sendo as ideias e concepções que o indivíduo mantém de si mesmo e uma dimensão coletiva, caracterizada pelos papéis sociais desempenhados nos diversos grupos em que as pessoas estão inseridas[1].
Todavia, os avanços tecnológicos e econômicos teriam levado à sociedade ao que se chama de modernidade líquida[2], em que os indivíduos já não buscariam a formação de laços perenes, restringindo suas relações interpessoais a situações episódicas e passageiras. Assim, haveria uma mercantilização das relações humanas em suas diferentes esferas, sendo tudo facilmente descartável e substituível. Busca-se apenas a formação de contatos que poderiam ser facilmente desfeitos sem grandes perdas ou custos.
A sociedade atual, diversamente do que ocorrera durante o século XX, não consegue traduzir seus desejos em um projeto de longa duração e de trabalho contínuo e intenso para a humanidade. Os grandes projetos de novas sociedades se perderam e a força da sociedade não é mais voltada para o alcance de um objetivo. Reduz-se toda a sociedade ao imediatismo, em especial ao consumismo.
O sujeito líquido estaria inserido em um mundo de consumo e opções diversificadas, mas sem possuir qualquer referencial de ação. Toda a autoridade de referência seria colocada em si mesmo, cabendo unicamente a cada pessoa escolher e construir as normas sociais a serem seguidas, reduzindo a morfologia social a escolher o que oferece as melhores vantagens e menores desvantagens.
Desta maneira, haveria uma fragilização humana, decorrente em grande parte pela busca de afirmação social no cenário consumista. Nesta vertente da ideologia capitalista o indivíduo deve enfrentar estruturas de disputa e competição até então inexistentes. Logo, a solidariedade coletiva é substituída por mecanismos de competição e consumismo, fazendo com que os indivíduos busquem apenas sua realização pela aquisição, de um modo cada vez mais solitário e egoísta[3]. Desta forma, sujeitos de direito são reduzidos a simples consumidores.
Esta ambientação globalizada não excluiria a esfera das relações trabalho, que cada vez mais se tornariam um campo aberto pra flexibilizações, precarizações e desregulamentações. Se cada indivíduo é facilmente substituível em suas relações interpessoais, no ambiente de produção a situação se torna ainda mais emblemática, vez que todos são reduzidos a meros números e peças, descartáveis conforme a volatilidade das chamadas leis de mercado. Ademais, um trabalhador definido unicamente por seu poder de aquisição é menos propenso a questionamentos sobre sua condição e a sociedade, sendo assim menos combativo a mudanças nas relações trabalhistas, visando apenas a manutenção de seu posto e a perpetuação de seu poder de compra.
2.2. Globalismo Jurídico: Globalização e a Busca da Construção de um Direito Supranacional
Dentro deste contexto fragmentado, frente à uma suposta incompatibilidade entre as liberdades individuais, os direitos trabalhistas e o progresso político-econômico, desumaniza-se o indivíduo em favor da garantia da estabilidade e competitividade, capazes de permitir a realização individual pelo consumismo.
Assim, a sociedade atual substituiria e sublimaria as formas de dependência do indivíduo, passando da dominação pessoal vigente até a primeira metade do século XX para uma "ordem objetiva das coisas", não identificável fisicamente, mas personificada por conceitos evanescentes e diáfanos, tais como leis do mercado, os princípios econômicos, o interesse público e a economia internacional[4]. Desta maneira, não haveria mais espaço para pessoas individualizadas, mas apenas para trabalhadores facilmente substituíveis e consumidores.
Esta massificação do indivíduo e do trabalhador visa aplacar um capital cada vez mais sem fronteiras físicas, que objetiva a construção de uma sociedade de consumo universal e homogênea, de modo que as particularidades restantes de cada sociedade não se tornem um empecilho à expansão do capital. Neste sentido, todos deveriam consumir o exatamente o mesmo produto ou serviço, minimizando-se os custos e maximizando-se os lucros.
Portanto, o Direito deveria ser redesenhado para adequar-se ao mundo globalizado, de forma que não bastaria fazer parte da globalização, sendo necessário instrumentalizá-la[5]. Instaurar-se-ia, desta maneira, um conflito entra a ordem interna de cada país e as ditas necessidades em âmbito global, em uma suposta dicotomia entre direitos individuais e a economia internacionalizada. Abre-se assim espaço para a ideologia do globalismo jurídico.
Ainda que defendida por diversos autores como Kelsen e Habermas, a premissa filosófica deste pensamento é a ideia kantiana da unidade moral da humanidade[6]. Este conceito teria como pilares as noções de unidade e objetividade do Direito; o primado do Direito Internacional sobre os ordenamentos locais, que seriam parciais, e a necessidade de se reformular a ideia de soberania. Logo, o Direito deveria abarcar toda a humanidade e absorver toda e qualquer legislação individual, assumindo a forma de uma lei mundial com abrangência e validade irrestritas, baseada na incorporação gradual de costumes e diferenças regionais.
A posição kantiana defende ainda que este Direito Global deveria ficar a cargo de um órgão internacional, que exerceria uma jurisdição universal e obrigatória. Neste sentido, a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 seria elevada à categoria de norma fundamental[7].
Por consequência, os organismos internacionais deveriam sofrer uma reforma para se tornarem verdadeiros poderes supranacionais, capazes de se sobrepor à soberania dos Estados e limitar drasticamente sua jurisdição interna. Tais reformas incluiriam ainda forças militares internacionais capazes de garantir a coercitividade necessária.
Porém, o globalismo jurídico falha em um ponto de extrema relevância, qual seja, a análise das individualidades inerentes a cada um e aos Estados. Ao manter uma visão idealizada da justiça internacional e ignorar suas relações com a política e economia globalizadas, tal posicionamento subestima os processos culturais e econômicos. Assim, baseia-se em um cenário que não corresponde à realidade fática.
Ademais, deve-se ter em mente que um ordenamento jurídico supostamente internacional fatalmente sucumbiria ao eurocentrismo, de modo que culturas divergentes seriam sub-representadas ou mesmo desconsideradas.
Haveria assim uma nítida diferença de valoração entre os sistemas legais anglo-americano, romano-germânico e os demais existentes. Ocorreria então uma valorização predatória de um sistema social sobre outro. Portanto, os ditames de tal hipotético ordenamento não atingiriam a todos os Estados da mesma forma, criando cidadãos com diferentes benefícios e representações sociais, ao invés da pretensa igualdade supranacional.
Ante o exposto, falar-se em um sistema legal internacional nos moldes do globalismo jurídico implicaria em não avaliar as diferenças inatas entre Estados e os indivíduos entre si, suplantando as peculiaridades em nome de um sistema que privilegiaria o eixo sociocultural dos países desenvolvidos em detrimento o pertencente aos Estados periféricos e em desenvolvimento. Logo, ainda que a globalização cultural e político-econômica venha continuamente eliminando as barreiras físicas entre os países, não se pode esquecer que a mesma globalização vem contribuindo para que os indivíduos se tornem cada vez mais plurais. Neste diapasão, surgem assim diferentes espectros socioculturais, com incontáveis avaliações e juízos de valor sobre os fatos e a moral.
3. DIREITO DO TRABALHO E IDENTIDADE: O INDIVÍDUO ENTRE A ENGRENAGEM E O PAPEL DE SUJEITO DA RELAÇÃO DE TRABALHO
Para que se possa compreender como a evolução social e tecnológica afetou não apenas o ambiente de trabalho, mas também a própria construção da identidade do indivíduo, deve-se analisar a formação da ideologia taylorista e fordista. Tais elementos foram essenciais em transformar o trabalhador em apenas mais um mecanismo de produção, tão substituível quanto qualquer peça mecânica.
Ocorreria assim uma corrosão de todo o processo histórico de formação das leis trabalhistas, bem como de todas as lutas envolvidas no reconhecimento dos direitos do trabalhador. A partir da implantação destes modos de produção, testemunhar-se-ia o surgimento de uma nova ideologia nas relações de trabalho, quando apenas um interesse deveria ser protegido, o do empregador.
3.1. Taylorismo
Frederick Winslow Taylor, um ex-operário e engenheiro americano, desenvolveu durante o século XIX um sistema de produção inovador, que seria embasado no uso de métodos científicos e na racionalização da produção industrial.
Para atingir maior efetividade na atividade empresarial, Taylor acreditava que deveria haver uma separação clara entre o trabalho intelectual de gestão da empresa e dos métodos de produção e o trabalho manual, que deveria ser mecânico e simples. Afirmava-se que o domínio sobre o conhecimento técnico não poderia ficar a cargo dos funcionários, vez que estes seriam refratários a novos modos mais produtivos e racionais de trabalho, permanecendo sempre com o que já lhes seria familiar e significaria menor esforço.
Necessário destacar que até este momento histórico o ritmo do processo de produção era ditado pelos próprios empregados, sendo que os trabalhadores mais experientes seriam responsáveis por instruir os mais novos, de modo que detinham todo o saber técnico envolvido. Acreditava-se haver assim uma incompatibilidade de interesses, já que os trabalhadores buscariam trabalhar o mínimo possível, não tendo os mesmos objetivos dos patrões.
Logo, sem um método objetivo de ação, o processo produtivo ficaria à deriva, desperdiçando-se tempo e recursos, com a obtenção de uma baixa produtividade[8].
Para romper e reestruturar o sistema então vigente, Taylor isolou os gestos e procedimentos dos empregados na produção das mercadorias, de forma a ser capaz de sistematiza-los individualmente, além de identificar tudo aquilo que seria desnecessário ou prejudicial ao bom andamento da produção. De posse deste conhecimento, poderia organizar como os novos operários poderiam ser instruídos, além de impedir a perpetuação de vícios dos trabalhadores que seriam nocivos ao bom andamento do processo de produção.
A sistematização do saber técnico permitiu a implementação de uma rotina de trabalho em que era exigido de cada indivíduo um conjunto delimitado de ações, que deveriam ser realizadas dentro de um lapso temporal estritamente determinado.
Segundo o próprio Taylor, o importante era o sistema e não o homem, rejeitando toda e qualquer proposta, contribuição ou sugestão por parte do empregado, deixando ao gerente a responsabilidade também do resultado. Ademais, haveria apenas uma forma correta de execução da tarefa, cabendo ao gestor utiliza-la para maximizar a eficiência e diminuir as perdas[9].
Ocorria assim uma apropriação do conhecimento dos trabalhadores, fazendo com que estes deixassem de ser relevantes, ao passo que se centralizava no empregador todas as decisões sobre como o trabalho deveria ser realizado. Assim, uma única pessoa se torna responsável pela análise, planejamento e gestão do processo produtivo, bem com pela forma de instrução de eventuais novos trabalhadores.
Acrescenta-se ainda que ao tornar apenas um indivíduo o responsável pela instrução, o sistema taylorista diminui sensivelmente a necessidade de aprendizagem, além de tornar obsoletos todos os demais conhecimentos construídos pelos trabalhadores ao longo do tempo.
O operário perde assim parte de sua identidade, não possuindo mais nenhum vestígio de autonomia sobre como deveria efetuar seu trabalho. Há ainda a perda do conhecimento acumulado, de forma que tudo aquilo que fora gradativamente construído no exercício do trabalho é descartado como inútil. Neste sentido, o taylorismo seria constituído apenas de mecanismos de controle de produtividade, sem que buscasse se efetuar uma análise aprofundada das razões e fundamentos que efetivamente impactam o processo produtivo. Deste modo, a alienação do poder dos trabalhadores ocorreria sem que efetivamente se desenvolvesse um novo contexto de relações de trabalho.
Portanto, haveria o controle pelo controle, sem aprofundar-se nas demais questões capazes de influenciar as relações de trabalho e produção.
3.2. Fordismo
Seguindo a linha iniciada por Taylor, Henry Ford buscou desenvolver um sistema de trabalho que permitisse uma racionalização da produção aliando a produção e consumo em massa como meio de crescimento da empresa.
Para atingir seus objetivos, far-se-ia necessária a padronização dos produtos, de modo a permitir a fabricação em larga escala, reduzindo e contrabalanceando os custos de produção com um exponencial aumento do consumo. Este, por sua vez, seria relacionado diretamente a uma questão cultural, já que se objetivava implantar um sistema de mecanismos publicitários e econômicos aptos a criar uma ideologia de consumo em massa[10].
A produção em larga escala seria possível diante da utilização da linha de montagem, constituída de um mecanismo de transferência do objeto de trabalho para os operários. Os trabalhadores seriam dispostos uniformemente ao longo do mecanismo de transferência, de modo que seria mínima a necessidade de intervenção de cada um dos trabalhadores no produto final como um todo. Portanto, caberia ao operário a pratica de apenas um gesto na realização do objeto produzido.
O fordismo configura assim um novo sistema de reprodução da força de trabalho, atrelado a uma nova forma de controle e gerência de todo o processo produtivo dos trabalhadores, colaborando para a criação de um novo modelo social[11].
Logo, o fordismo eleva o ideário taylorista a um patamar até então impensável, criando um trabalhador que responderia apenas por uma única tarefa, que deveria ser executada de forma extremamente rápida. Vale salientar que isoladamente estas ações nada revelariam sobre o objeto do processo de produção, de forma que o trabalhador é alienado não apenas de seu saber técnico, mas também de sua própria relação com seu trabalho, tornando-se assim individualmente nulo e facilmente substituível.
3.3. Pós-Fordismo
O sistema fordista começa a perder força em meados da década de sessenta, demonstrando um esgotamento frente ao aumento da concorrência de outros Estados, em especial em razão de países como o Japão e Alemanha, que superaram o pós II Guerra Mundial, tendo seu excedente produtivo direcionado ao comércio internacional. Ao mesmo tempo a América Latina e parte do sudeste asiático iniciaram incursões no mercado globalizado, tornando-o ainda mais concorrido. Neste sentido, David Harvey afirma que a recessão da década de setenta, aumentada pela crise do petróleo, retirou o mundo capitalista do torpor da estagflação, que seria a estagnação da produção de bens e alta de inflação de preços, colocando em movimento um conjunto de processos que solaparam o compromisso fordista. Por consequência disto, as décadas de setenta e oitenta foram um conturbado período de reestruturação econômica e de reajustamento social e político no espaço social criado por todas essas oscilações e incertezas, dando origem à novas experiências na organização industrial e na vida social e política. Tais experiências podem representar os primeiros ímpetos da paisagem para um regime de acumulação inteiramente novo, associado com um sistema de regulamentação política e social bem distinta[12].
Além disto, faz-se necessário destacar que a própria estrutura das relações de trabalho sofreu grande impacto com o grande desenvolvimento de setores como a automação, robótica e a microeletrônica. Estas mudanças passaram a exigir cada vez menos esforço humano para a produção de bens cada vez mais especializados. Suplanta-se assim o padrão generalizante do fordismo, abrindo-se espaço para produtos cada vez mais individualizados e modos de produção flexíveis e desregulamentados.
A presente reestruturação produtiva inicia assim uma fase pós-fordista, submetida à alta competitividade interna e externa, em que a produção deve ocorrer de forma diferenciada e facilmente mutável, adequando-se a diversas realidades culturais, bem como às mudanças tecnológicas e sociais. Logo, diante de uma produção tão especializada, o pós-fordismo exige um trabalhador mais qualificado, com uma visão mais ampla que aquela predominante no fordismo[13].
Logo, rompe-se o paradigma da acumulação e produção rígidos em favor de um sistema flexível de produtos, mercados e padrões de consumo. Este novo padrão ocorre ao mesmo tempo em que o Estado abandona parte de seu ideário regulador, optando por uma maior liberdade comercial e de produção.
Ademais, altera-se ainda a dinâmica da concorrência, vez que a pura relevância do preço perde espaço para a oferta de produtos cada vez mais adaptados às necessidades individuais. Já não basta que o empresário ofereça preços atraentes, deve agora também oferecer um produto adequado ao novo mercado, ainda que isto signifique a reorganização de todo o processo de produção.
Nesta reorganização pós-fordista é necessário destacar a relevância do Toyotismo, movimento que nos dizeres de Ricardo Antunes[14] pode ser entendido como uma forma de organização do trabalho nascida na fábrica Toyota, no Japão, e que se expandiu pelos países ocidentais. Teria como princípio base o melhor aproveitamento possível do tempo de produção, mediante um sistema de placas ou senhas de comando para reposição de peças e de estoque, que devem ser mínimos. Haveria ainda uma forte descentralização do trabalho, com parte significativa do processo produtivo ocorrendo por terceiros, fora do ambiente da fábrica.
Já não se buscam mais trabalhadores sem especialização para a prática de tarefas repetitivas, mas sem um indivíduo adaptável, capaz de realizar diversas funções, mas sem dominar de fato nenhuma delas.
Em razão de atrelar-se diretamente à demanda, o Toyotismo coloca o trabalhador em contato direto com fatores eternos ao simples processo produtivo, tais como meta, prazos e mesmo riscos existentes. Logo, o empregado vê-se forçado a incorporar integralmente toda a ideologia da empresa, suportando, ainda que indiretamente, os riscos da atividade empresarial.
Ocorre assim uma alienação do trabalhador diversa daquela promovida pelo taylorismo e fordismo, fundamentando-se não na anulação e substitutividade do indivíduo, mas sim em um comprometimento exacerbado com a política empresarial. Logo, há um grande impacto psicológico, com a sujeição do trabalhador a ônus que não lhe caberiam por lei.
Dentro do tema da alienação do empregado, forçoso salientar ainda que o sistema toyotista horizontaliza o comando hierárquico. Diminui-se o número de prepostos do empregador em favor de uma fiscalização pelos próprios trabalhadores, que passam a também cobrar e exigir a produtividade dos demais, potencializando a pressão exercida sobre o indivíduo.
Ainda neste sentido, o trabalhador não detém o domínio sobre o processo de produção, sendo realocado para diferentes funções conforme o interesse do empregador. Ademais, o tempo de permanência do indivíduo em cada tarefa é determinado exclusivamente pelo empregador, de forma que não existe uma especialização, mas sim uma realocação pontual. Impede-se assim que o empregado tenha uma visão do processo de produção como um todo, restringindo-se sua atuação a situações específicas por prazos determinados.
3.4. Fisiolítica: Novos Rumos do Controle do Processo Produtivo
Novas tecnologias sempre significam mudanças em diversos setores da economia e da realidade social, não sendo diferente com o sistema de produção e o controle dele decorrente.
O surgimento de equipamentos eletrônicos vestíveis, que poderiam ser utilizados junto ao próprio corpo do indivíduo na forma de faixas, relógios, pulseiras ou sensores descortinaram um novo horizonte aos empregadores. Tais equipamentos seriam capazes de uma gama de funcionalidades que incluiria monitorar o desempenho das funções vitais e hábitos do usuário, além de garantir que este mantenha o foco em suas tarefas, através de lembretes, vibrações e mecanismos semelhantes. Em artigo publicado pela Harvard Business Review, James Wilson[15] chamou este fenômeno de physiolytics, que pode ser traduzido como fisiolítica, em referência à fisiologia e analítica.
Embora originalmente tais instrumentos tecnológicos visassem analisar pontos específicos em favor do próprio usuário, estas tecnologias portáteis seriam capazes de registrar e avaliar todos os movimentos dos empregados, transformando tudo o que ocorre na jornada de trabalho em um conjunto de dados transmitido instantaneamente para a análise dos empregadores. Diante de tais informações, estes poderiam eliminar movimentos e tarefas considerados inúteis, que supostamente poderiam prejudicar a produtividade.
Logo, diante de inumeráveis possibilidades de controle, permite-se a criação de um ambiente de vigilância perpétua sobre o trabalhador. Tem-se assim uma nova vertente taylorista, com um viés tecnológico, mas herdeira de todos os princípios e ideias que caracterizaram o sistema.
Neste diapasão, é cabível ressaltar ainda a relevância que as redes sociais têm alcançado no ambiente de trabalho. Ainda que seja um espaço da vida privada do indivíduo, diante da popularização e de seu amplo acesso, o que é dito no ambiente virtual pode impactar a relação de trabalho, ocasionando até mesmo a dispensa ou outras sanções.
Desta forma, a lógica do trabalho se torna onipresente, prevalecendo onde antes não vigorava. Logo, o trabalhador vê-se cada vez mais tolhido em seu espaço privado, mesmo sendo ele virtual, uma vez que não pode comprometer a imagem da empresa, além de sujeitar-se à avaliação do empregador e mesmo dos demais trabalhadores sobre qualquer coisa que seja dita ou postada.
Embora tais tecnologias vestíveis ainda não sejam uma ampla realidade em razão e seu elevado preço, deve-se ter em mente que sua popularização é apenas uma questão de tempo, de modo que não é possível prever a totalidade dos impactos aos trabalhadores. Todavia, as inúmeras possibilidades de controle pelo empregador são capazes de configurar cenários quase distópicos, sobretudo pelo natural descompasso entre a evolução da tecnologia e a da legislação.
4. GLOBALIZAÇÃO E CONSUMO: A LIBERDADE DE ESCOLHAS COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO
Pode-se entender que a sociedade industrial em seu modelo vigente constitui um verdadeiro regime totalitário, em que uma coordenação técnico-econômica opera através da manipulação das necessidades por interesses adquiridos, criando obstáculos ao surgimento de uma ideologia efetivamente oposicionista. Neste sentido, necessário frisar que o totalitarismo não seria restrito a uma forma específica de governo ou direcionamento partidário, sendo na verdade um sistema de produção e distribuição perfeitamente compatível com o pluralismo político. Pode-se argumentar que no modelo atual de sociedades globalizadas há sempre uma gama de opções abertas aos indivíduos, porém, tal pretensa liberdade esconderia um sistema rígido de controle, em que alguns poucos definiriam o que pode ser escolhido e por quem[16].
Neste contexto de economias e mercados globalizados, cada vez mais tem sido frequente na retórica de governantes a ênfase na necessidade de adequar-se economicamente ao cenário mundial, de modo a não ser o Estado suplantado por seus concorrentes. Percebe-se assim a apropriação do discurso empresarial pela esfera estatal. Logo, imperativos eminentemente mercantis tais como desempenho econômico, eficiência e racionalidade são invocados como justificativa para remanejamento ou redução de gastos que visem apenas potencializar o chamado capital produtivo [17].
O cenário retratado sinalizaria não só a mudança de rumos das políticas econômicas, mas a crise em que se encontram os Estados. Essa crise foi usada como justificativa para a formação de um ideário hegemônico em que se apontava como causa da perda de competitividade externa os gastos com políticas públicas, notadamente aquelas voltadas para a previdência social, saúde, educação, e segurança. Ressurge assim o neoliberalismo, com sua pretensa economia autorregulatória e a minimização da presença estatal.
Esta forma de pensamento tem levado a um aprofundamento de desigualdades, uma vez que a prestação de serviços como educação e saúde são cada vez mais retirados das mãos do poder público para a iniciativa privada. Desta maneira, são acrescentados às formas de comercialização do ser humano, sendo o cidadão mais uma vez reduzido não apenas à um consumidor, mas sendo também a própria mercadoria.
Imersos neste contexto, os grandes produtores de bens e serviços, cada vez mais cientes de que a globalização dos mercados quase extinguira os limites físicos entre os Estados, passam a buscar atingir não mais uma coletividade específica, mas sim um público fragmentado e disperso. A enorme quantidade de opções de consumo, aliada à construção de uma ideologia consumista maciça pela mídia, desestimula o indivíduo a avaliar o universo a seu redor. Perde-se a identidade como cidadão em prol da identidade como consumidor, sendo toda a afirmação social construída em torno da competitividade entre os cidadãos sobre o potencial aquisitivo de cada um.
Assim, mais do que uma alienação forçada, vive-se uma alienação ideológica, em que deliberadamente instiga-se ao consumismo desenfreado como única forma de identidade, induzindo-se a uma apatia nas questões sociais. Por possuir determinadas escolhas de consumo, o indivíduo credita ser livre, recusando peremptoriamente questionar os limites que lhe são impostos pelos donos dos meios de produção.
Neste contexto de globalização e consumismo como motor econômico, ao ver-se confrontado entre proteger o cidadão ou proteger o mercado, o Estado opta por este, a fim de pretensamente garantir a competitividade no cenário internacional. Logo, os entes estatais endossam a ideologia empresarial de que seria necessário fragilizar as relações interpessoais, e por consequência de trabalho, para assegurar a sobrevivência econômica dos empresários. Assim, o Direito deixa de ser um mecanismo de garantia do cidadão para se tornar uma forma de opressão, enfraquecendo garantias e voltando-se à superada ideia de igualdade formal entre trabalhador e empregador.
O Estado omite-se na exploração do mercado contra o indivíduo; não apenas a exploração do corpo, mas da mente e de sua própria essência enquanto homem. Retiram-se não apenas os direitos, mas também a consciência do trabalhador, forçando-o a se identificar como apenas um elemento descartável da produção, e não como sujeito de direitos. Isto ocorre em especial pela paulatina retirada de direitos e garantias trabalhistas, sob o fundamento de que seriam excessivamente onerosas e poderiam comprometer a viabilidade da empresa. Diante disto, o indivíduo aceita a precarização, temendo o desemprego, e a perda de sua capacidade de consumo. A repetição deste ciclo leva a um cenário desolador, em que séculos de lutas são desconsiderados apenas em razão de uma maior lucratividade. Logo, o processo técnico-produtivo “coisifica” o sujeito ao eliminar sua consciência, à medida que o industrialismo “coisifica” as almas[18].
Há assim uma homogeneização da identidade, em que todos são reduzidos à engrenagens de um mesmo sistema produtivo global e sem limites aparentes e a consumidores dos mesmos produtos e serviços, fornecidos por poucos grupos empresariais.
Portanto, a liberdade de escolha de uma sociedade capitalista nada mais é do que uma cortina de fumaça, em que o Estado age apenas para a proteção do capital produtivo, ainda que ao custo da massificação e precarização das relações jurídicas, em especial as trabalhistas.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora a globalização não seja um fenômeno recente, a globalização tem se intensificado desde a segunda metade do século XX, ocorrendo em diversos aspetos, mas com especial destaque no setor político-econômico.
Tal fenômeno veio acompanhado de inúmeras mudanças sociais, destacando-se a valorização do consumismo e a intensa competitividade econômica entre as grandes empresas de diversos países. Este cenário levou à uma encampação do interesses empresariais pelo Estado, que adotou a ideologia de que a competitividade econômica poderia significar a precarização de relações jurídicas, sobretudo as trabalhistas, supostamente onerosas ao crescimento da produção econômica.
Diante disto, frente ao interesse das grandes empresas no crescimento de seus mercados, ocorrera também uma mudança significativa na identidade social dos indivíduos, que passam a ser impelidos não à uma reflexão de seu papel social, mas apenas ao consumismo como maneira de afirmação. Logo, o aspecto trabalhista da vida em sociedade se enfraquece, sendo o trabalhador alienado de sua realidade.
Acrescido às novas tecnologias utiliza-se do discurso econômico neoliberal para alienar o trabalhador de seu papel, de forma que este aceite passivamente a redução de suas garantias, em prol de continuar empregado. Desta maneira, ao optar por proteger o interesse empresarial ao invés dos direitos dos cidadãos, o Estado desfere um duro golpe contra a própria identidade do indivíduo, corroborando para a massificação e hegemonização de seus membros. Assim, a menos que encontre-se um ponto de equilíbrio, caminha-se para que séculos de lutas trabalhistas sejam amplamente desconsideradas pelo Estado, e direitos essenciais sejam desprezados em prol da formação de uma sociedade de consumo maciça e homogênea, em que não há espaço para sujeitos de direito, mas apenas para os interesses do grande capital do mercado.
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[1] Dubar, Claude. La socialisation. Construction dês identités sociales e professionnelles. Paris, Armand Colin,1991.p.120
[2] BAUMAN, Zygmunt. A modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.26.
[3] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2008,p.25.
[4] MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Tradução Giasone Rebuá. 6 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982,p.143.
[5] GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Globalização, Neoliberalismo e o direito no Brasil. Brasília: Edições Humanidades. 2005,p.11.
[6] ZOLO, Danilo. Una Crítica Realista Del Globalismo Jurídico Desde Kant a Kelsen y Habermas. Tradução de Pedro Mercado Pacheco. Disponível em : <http://www.ugr.es/~filode/pdf/contenido36_81.pdf.> Acesso em 12 mar 2015.
[7] ZOLO, Danilo. Una Crítica Realista Del Globalismo Jurídico Desde Kant a Kelsen y Habermas. Tradução de Pedro Mercado Pacheco. Disponível em : <http://www.ugr.es/~filode/pdf/contenido36_81.pdf.> Acesso em 12 mar 2015.
[8] BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1987,p.86.
[9] CARDOSO, Marco Antônio Fernandes, MARRAS, Jean Pierre, COSTA, Benny Kramer. Taylorismo Globalizado: Um estudo do setor industrial de telecomunicações, 2007. Disponível em :< www.anpad.org.br/diversos/trabalhos/EnGPR/engpr_2007/2007_ENGPR435.pdf>. Acesso em 10 mar 2015.
[10] SOUSA SANTOS, Boaventura de. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 6 Ed. São Paulo: Cortez Editora, 1999,p.312.
[11] BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1987,p.86.
[12] DAVID, Harvey. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992, p.121.
[13] SILVA, Elizabeth Bortolaia .Pós-Fordismo No Brasil. São Paulo, Revista de Economia Política, v. 14, nº 3, julho–setembro, 1994,p.107.
[14] ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? 7 Ed. São Paulo: Cortez, Universidade Estadual de Universidade Estadual de Campinas, 2003,p.181.
[15] WILSON, James H. Wearables in the Workplace, Set 2013. Disponível em: <https://hbr.org/2013/09/wearables-in-the-workplace/ar/1>. Acesso em 12 set 2014.
[16] MARCUSE, Hebert, A Ideologia da Sociedade Industrial – O Homem Unidimensional, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982,p.28.
[17] GOMES, Alberto Albuquerque. Relações de Trabalho e Identidade Profissional. Disponível em:< http://www.fct.unesp.br/Home/Departamentos/Educacao/AlbertoGomes/relacoes-de-trabalho-e-identidade-profissional.pdf>. Acesso em 15 fev 2015.
[18] THEODOR, Adorno e HORKHEIMER, Max, Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1985. p.41.