Prender ladrão de galinha é fácil; difícil é o “sistema” prender poderosos (Neudo Campos, João Santana etc.).

23/02/2016 às 09:56
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Um homem no mês de agosto/15 foi preso em flagrante (em SP) porque teria subtraído um frasco de creme de pentear avaliado em R$ 7,95 (equivalente a 0,95% do salário mínimo da época). O TJSP, por unanimidade, negou habeas corpus para ele, em razão da sua..

Um homem no mês de agosto/15 foi preso em flagrante (em SP) porque teria subtraído um frasco de creme de pentear avaliado em R$ 7,95 (equivalente a 0,95% do salário mínimo da época). O TJSP, por unanimidade, negou habeas corpus para ele, em razão da sua periculosidade. O réu foi liberado pelo STJ, relator Nefi Cordeiro (HC 338.718). Vários meses ele permaneceu na cadeia por ter cometido (?) o hediondo crime (?) e se apropriar de um creme de pentear de R$ 7,95! Ninguém está autorizado a furtar nada de ninguém (nem pobres nem poderosos). Mas qualquer analfabeto sabe que outros tipos de pena seriam mais adequados para a tentativa de furto de um creme de R$ 7,95.

O ex-governador de Roraima, Neudo Campos (marido da atual governadora), foi condenado a 10 anos e 8 meses de reclusão em regime fechado (já pela 2ª instância) por envolvimento no “escândalo dos gafanhotos”, que teria desviado R$ 70 milhões da União, em 2002, com base em convênios fraudulentos. Cadastravam-se funcionários “fantasmas” na folha de pagamento do Estado e do DER/RR, para distribuição dos salários a Deputados Estaduais e outras autoridades em troca de apoio político. Um juiz, com base no novo entendimento do STF (que permite a execução provisória da pena depois do 2º grau), decretou a prisão do ex-governador. Em 24 horas lhe foi concedido habeas corpus pelo TRF 1ª Região. Não é fácil levar para a cadeia os poderosos, mesmo se sabendo que os danos sociais dos seus delitos são impactantes para a vida em sociedade.

Contra o publicitário João Santana e sua mulher foi decretada prisão provisória. Teriam recebido dinheiro de propinas nas campanhas de Lula e Dilma. E a Odebrecht é que teria feito vários pagamentos. A era lulopetista tem que ser passada a limpo, porque por meio dela será possível desvendar a maior parte da delinquência econômica cleptocrata (DEC), que envolve praticamente todos os partidos. A Justiça (“morolização”) está fazendo muita coisa, com o apoio dos tribunais superiores. Mas a grande mudança contra todos os corruptos só poderá vir com o seu voto consciente. Pelo fim de todos esses políticos profissionais da ladroagem.

O STF mudou seu entendimento sobre a presunção de inocência. O modelo adotado pela CF é o do “trânsito em julgado” (só se executa a pena após o trânsito em julgado). O STF acolheu o sistema do duplo grau de jurisdição (basta o duplo grau para derrubar a presunção de inocência).

Penso que isso deveria ser resolvido numa Emenda Constitucional, a única que legitimaria sem contestação a necessária mudança de paradigma, para se fazer respeitar o império da lei, sobretudo contra a delinquência econômica cleptocrata (DEC).

A pergunta é a seguinte: mas por que o Brasil seguiu, na Constituição (art. 5º, inc. LVII), o sistema do trânsito em julgado (não o do duplo grau de jurisdição)? Muito provavelmente porque ele é o mais favorável aos donos da ordem social (leia-se, aos donos do poder). Não por coincidência, os donos do poder coincidem com os poderosos políticos, econômicos e financeiros. Sendo donos do poder, muitos deles se dão a liberdade de se enriquecerem também ilicitamente. Isso faz parte da nossa formação histórica. Os poderosos costumam mesclar negócios lícitos com negociatas ilícitas (sonegação de impostos, empréstimos privilegiados, dívidas com o Estado não pagas, evasão de divisas, lavagem de dinheiro, superfaturamento, fraude em licitações etc.). Daí surgem impérios econômicos dignos da revista Forbes.

A quem mais interessa o sistema do trânsito em julgado? Aos poderosos que podem contratar excelentes advogados para retardarem (com recursos infinitos, previstos no ordenamento jurídico) o máximo possível a execução de uma pena.

Essa pode ter sido a razão do texto constitucional brasileiro, sugerindo-se, uma vez mais, que o Estado de Direito pode cumprir também o papel de mero veículo de uma ordem social injusta e fanática e aberrantemente classista.

O leitor mais atento diria: os poderosos lutam por um sistema que vale para todos (poderosos e não poderosos). Teoricamente seria assim. Todos somente seriam presos depois do trânsito em julgado. Eventual prisão antes desse momento processual, só em casos excepcionais.

Mas isso só existe no papel e no ensino “neutro” do Direito. Quem milita na área criminal sabe que não é assim que funciona o “sistema”.

Duas observações: 1ª) somente os poderosos têm condições econômicas para usar todos os recursos em todas as instâncias penais. A igualdade na lei nunca corresponde à igualdade real de oportunidades; 2ª) na prática, não se espera o trânsito em julgado para prender os não poderosos. Aliás, frente aos não poderosos, nem sequer o duplo grau de jurisdição se respeita.

Para eles vigora, na praxis, um terceiro sistema: o da prisão preventiva “cela fácil” (minha cela, minha vida), que independe de qualquer sentença penal condenatória (bastam indícios, ainda que vagos, e já se prende). Veja a barbaridade da prisão (por vários meses) no caso de um “creme de pentear de R$ 7,95”. Isso não é exceção, é o dia-a-dia da Justiça criminal brasileira.

Sistema maluco: no Brasil, com o sistema do trânsito em julgado valendo na prática (apenas) para os poderosos e o sistema da prodigalidade abusiva da prisão preventiva (cela fácil) valendo para os não poderosos, tornou-se muito mais rápido e fácil prender uma pessoa preventivamente, antes de qualquer tipo de condenação penal, do que depois de condenada em duas instâncias. Já a partir da prisão em flagrante, muitos não saem mais do cárcere, mesmo sendo desnecessária a prisão (insista-se: veja o caso do creme de pentear de R$ 7,95).

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Antigamente (no tempo do código de processo penal fascista de 1940) se prendia depois da sentença de primeira instância (antiga redação do art. 594 do CPP). Muitos postulavam a prisão depois do duplo grau. O STF foi para o polo oposto e disse que só se podia prender após esgotados todos os recursos (nem sequer depois da segunda instância podia se executar o julgado).

A magistratura reagiu e instituiu o terceiro sistema de prisão no Brasil, que não é nem o do trânsito em julgado nem o do duplo grau de jurisdição. Trata-se da preventiva cela fácil (minha cela, minha vida).

Conclusão: tornou-se muito mais fácil prender uma pessoa preventivamente (sem nenhum tipo de condenação penal) do que prender alguém já condenado em duas instâncias. Precisa dizer algo mais? Não se trata de um “sistema” maluco?

Consequência: 41% dos 650 mil presos no Brasil estão recolhidos sem nenhum tipo de sentença condenatória por força do terceiro sistema (preventiva cela fácil). Estamos discutindo se o mais justo e adequado à certeza do castigo é o sistema do trânsito em julgado ou o sistema do duplo grau. O STF adotava o primeiro (conforme a Constituição) e agora está querendo impor o segundo (violando a Constituição). Na prática, no entanto, o que vigora pra valer é o terceiro (preventiva cela fácil, minha cela, minha vida).

“Depois de tantas mentiras quando surge a verdade nós ficamos cegos” (discordo de Marx em quase tudo, mas ele teve a coragem de dizer muita coisa interessante).

Ironia da história: jamais os poderosos criminosos (os barões ladrões) imaginaram que o terceiro sistema (da “cela fácil”, minha cela, minha vida) fosse um dia alcançá-los. Curitiba que o diga! Nunca, na vida, os barões ladrões (poderosos criminosos) contaram que um dia viria a “morolização” da Justiça criminal, implantando-lhes o terceiro sistema (cela fácil).

Os “coimbrãos” (ideologia hegemônica da ordem social fanaticamente conservadora imposta no Brasil pelos poderosos, a partir da Universidade de Coimbra, desde a colônia) nunca sonharam com essa possibilidade.

Do ponto de vista da teoria dos jogos, os ladrões barões, particularmente da delinquência econômica cleptocrata (DEC), contavam, até 17/02/16, com o desafio de continuar lutando pelo primeiro sistema (trânsito em julgado) assim como pelo desfazimento da onda “morolizadora” (terceiro sistema).

O cenário adverso, agora, lhes apresenta mais uma confrontação: se posicionar contra uma eventual Emenda Constitucional que institua no Brasil o segundo sistema (duplo grau), que se tornou praticamente inevitável depois da decisão do STF.

Com essa emenda (na linha da nova decisão do STF), o barão ladrão pode até escapar da prisão preventiva cela fácil (minha cela, minha vida), que é do consumo “popular” (41% do sistema prisional), mas depois do duplo grau não tem mais jeito (o ex-governador Neudo Campos já estaria na cadeia, se não tivesse havido habeas corpus). No seu caso, se não se trata de uma condenação escatológica (estrambólica), estamos diante de um odioso privilégio de classe (de casta), que sempre favoreceu os barões ladrões no Brasil.

A cleptocracia brasileira vai fazer de tudo para impedir referida Emenda. É por isso que todos nós deveríamos apoiar a mudança legislativa aqui tratada. Será que vai sair, ou terá razão George Orwell (1984):

“De um modo ou de outro vocês [irresignados] fracassarão… no final, eles vencerão. Antes ou depois vocês verão como eles são… Há algo no universo – não sei o que é, algum espírito, algum princípio – contra o qual vocês não podem”.

CAROS internautas: sou do Movimento Contra a Corrupção Eleitoral (MCCE) e recrimino todos os políticos comprovadamente desonestos assim como sou radicalmente contra a corrupção cleptocrata de todos os agentes públicos (mancomunados com agentes privados) que já governaram ou que governam o País, roubando o dinheiro público. Todos os partidos e agentes inequivocamente envolvidos com a corrupção (PT, PMDB, PSDB, PP, PTB, DEM, Solidariedade, PSB etc.), além de ladrões, foram ou são fisiológicos (toma lá dá cá) e ultraconservadores não do bem da nação, sim, dos interesses das oligarquias bem posicionadas dentro da sociedade e do Estado. Mais: fraudam a confiança dos tolos que cegamente confiam em corruptos e ainda imoralmente os defende. 

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Estou no www.luizflaviogomes.com

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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