A perpetuação da omissão dos direitos humanos através da servidão por dívida na área rural

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Após um longo histórico de exploração, o Brasil ainda possui trabalho análogo ao de escravo, em especial, nas áreas rurais. Fica claro que o Estado precisa aumentar os esforços para combater a impunidade e resgatar a dignidade do trabalhador.

Resumo: Após um longo histórico de exploração, o Brasil ainda possui trabalho análogo ao de escravo, em especial, nas áreas rurais. Fica claro que o Estado precisa aumentar os esforços para combater a impunidade e resgatar a dignidade do trabalhador prejudicado pelas condições degradantes que o trabalho escravo apresenta.

Palavras-chave: Trabalho Escravo; Impunidade; Direitos Humanos.

1 INTRODUÇÃO

A escravidão no Brasil teve início no século XVI, com a chegada dos colonizadores. Os aborígines foram inicialmente os mais prejudicados, uma vez que sua relação de trabalho com os portugueses acontecia através do escambo e do corte e carregamento de pau-brasil, o que abriu o interesse acerca do trabalho escravo. Dessa forma, a Coroa portuguesa se apressou em tornar a escravidão legal, pois a mão de obra nativa era mais barata do que a negra. Porém, a mão de obra indígena deixou de interessar os exploradores sendo considerada não-especializada e desacostumada com o trabalho sistemático esperado, além do lucro que a liberdade dos índios produzia para a Igreja Católica e Coroa através da exploração das drogas do sertão. A partir desse momento a exploração aborígene não interessava mais.

Em 1559, foi autorizada a entrada de escravos negros no Brasil e sua mão de obra seria destinada especialmente aos trabalhos nos engenhos de açúcar e canaviais, apesar disso, após o desembarque dos negros no país, era comum que escravas trabalhassem na cozinha, ou como amas de leite. Os escravos eram submetidos a tratamento desumano, através de torturas e jornada exaustiva de trabalho.[2]

O sistema capitalista não funcionava de maneira eficiente diante da exploração, uma vez que o mercado se desenvolvia através da compra e venda, algo que se tornava impossível, já que os escravos não eram assalariados. Após exaustivos anos de luta contra a escravidão, no ano de 1888 a Lei Áurea a declarou extinta. A emancipação ocorreu de maneira lenta e gradual, e mesmo após os esforços e conquistas os ex-escravos eram discriminados por não existirem programas de reintegração social.

Atualmente a expressão utilizada para aludir ao trabalho escravo é “trabalho análogo ao de escravo”, pois o que restou da escravidão foram situações semelhantes às vividas no passado. É possível afirmar que no século XXI ainda existe trabalho análogo ao de escravo, descrito no art. 149 do Código Penal, que prevê pena para quem mantém o empregado em condições degradantes, ou restringe sua locomoção por razão de dívida e afins.

O trabalho degradante é um desrespeito às leis trabalhistas, penais e aos direitos humanos uma vez que fere a dignidade do cidadão que se submete a tal situação por falta de oportunidade ou necessidade.

Diante de tantas maneiras de submeter alguém à trabalho degradante, a servidão por dívidas é recorrente no Brasil, em especial na área rural, é o que trata o Recurso Ordinário Trabalhista RO 00742201208403004 0000742 – 41.2012.5.03.0084.[3]

2 SERVIDÃO POR DÍVIDA NA ÁREA RURAL
 

A condição análoga a de escravo na área rural, em geral tem início com o aliciamento de peões através dos “gatos”, que são homens com poder de persuasão contratados pelo fazendeiro para informar, muitas vezes de maneira exagerada, os empregados sobre as condições de trabalho e transportá-los até a fazenda. A intenção do fazendeiro ao contratar o “gato”, é de conseguir mão de obra de baixo custo, de forma irregular. É esse fato que se faz concreto no Recurso Ordinário Trabalhista supramencionado. Simão Sarkis Simão contratou, por meio de “gato” diversos trabalhadores com a promessa de pagar-lhes trinta e cinco reais por hectare roçado, entretanto, não o fez. O gerente dos serviços nem mesmo apareceu na fazenda para medir a área roçada, segundo relato de Sr. Dorisvaldo. Não havia comida, ferramentas de trabalho e materiais de higiene pessoal na fazenda, tudo era trazido pelos próprios peões, que em determinado momento viram-se obrigados a gastar o próprio dinheiro com itens que deveriam ser oferecidos por quem lhes empregou, no caso, o fazendeiro. Até mesmo foices com corte eficientes tiveram de ser compradas pelos empregados para garantir a eficácia do trabalho. Diante dessa situação, e tendo acabado o dinheiro que utilizava para sustentar sua família, um dos empregados viu-se obrigado a tomar dinheiro emprestado com o “gato”, José Poeira, iniciando de maneira inconsciente a escravidão por dívida. Uma das estratégias da escravidão por dívida é manter o trabalhador preso ao local onde é explorado para render mais lucros à fazenda, que continuará economizando com mão de obra. Segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), “ele ou ela endivida-se cada vez mais, e um círculo vicioso de escravidão por dívida começa.”.[4]

A dívida faz com que os trabalhadores se sintam forçados a trabalhar tempo suficiente para pagá-la, seja por seu caráter, costumes ou moral. O empregador tem a mesma expectativa, apesar de ser do seu interesse que a conta não seja paga rapidamente para aumentar o tempo de vínculo do empregado. Ricardo Rezende, em uma pesquisa feita à respeito da escravidão por dívida recebeu a seguinte resposta por parte de um fazendeiro:

Quem deve é obrigado a pagar, mesmo trabalhando sob coerção física, enquanto não saldar a dívida, deve ser retido na fazenda... Se essa não for a lei, problema da lei.[5]

O fazendeiro em questão, além de não fiscalizar a própria propriedade, compactuar com o trabalho análogo ao de escravo e mostrar que desenvolveu um senso de justiça autônomo, afirma que se preciso, a coerção física pode ser usada, perpetuando a cultura da desvalorização do trabalhador e da omissão dos seus direitos.

3 OMISSÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Os direitos humanos incluem o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre e muitos outros.[6]

Para a OIT, a definição de trabalho decente é:

trabalho adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, livre de quaisquer formas de discriminação e capaz de garantir uma vida digna a todas as pessoas que vivem de seu trabalho.[7]

Dessa maneira é possível observar que o trabalho que Simão Sarkis oferecia a seus empregados não era decente e feria os direitos dos trabalhadores. Estavam impedidos de abandonar a fazenda, mesmo que de maneira ignorante, pois “procurar os “direitos” é violar uma retribuição de dons recebidos”[8]. Os peões não eram adequadamente remunerados e tinham sua dignidade violada que não recebiam o suficiente para comprar itens necessários, sustentar a família e suportavam situações constrangedoras e que expunham suas vidas ao perigo. 

É relatado que não havia água potável, local apropriado para dormir e nem para tomar banho. Os peões se lavavam na água que o gado bebia, e afirmaram que tal prática os causava coceira. Entretanto não era possível deixar de tomar banho ou beber desta mesma água. O risco de contrair doenças provenientes da água do gado era existente e ignorado pelo fazendeiro, que insistiu em contratar pessoas e mantê-las em condições degradantes, ferindo o direito à segurança (art. 5º, caput. CF) e a dignidade da pessoa humana. Não é possível viver com qualidade e dignidade quando se é explorado e enganado pelo grau de inocência quanto aos próprios direitos. Ricardo Rezende, Suliane Sudano e Edna Galvão, em artigo que trata do trabalho exploratório de chineses afirmam:

O êxito econômico aparece, na maioria das vezes, vinculado a um grupo de proprietários, enquanto há grande parte de migrantes mal sucedidos e sujeitados a relações desfavoráveis.[9]

O mesmo ocorre quando se pensa nos peões, a exploração é louvável para o fazendeiro, mas o que acontece na vida desses trabalhadores ultrapassa as conseqüências dos direitos transgredidos de forma coletiva e adentra à esfera íntima das vítimas de forma dolorosa.

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4 CONCLUSÃO

A luta pelo fim do trabalho análogo ao de escravo nas áreas rurais do Brasil não pode partir da espera de piedade por parte dos fazendeiros, visto que muitos cultivam uma ideia de juízo autônoma. É necessário que haja maior interesse do Estado em combater o trabalho escravo contemporâneo no Brasil, valendo-se de meios como a fiscalização.  As condições humilhantes que a escravidão proporciona é um retrocesso dos fundamentos do Estado (art. 1º, III CF), bem como das leis que garantem que práticas como essas serão punidas. Quanto à responsabilização, ainda há muito a se fazer para a sociedade se sentir livre desse tipo de prática, que é o espelho da violação aos direitos e garantias fundamentais, através da aplicação das leis penais, trabalhistas, e civis, no que tange aos danos morais. É preciso, além disso, recompor a dignidade do sujeito, destruída pela desonra que o trabalho escravo traz.

5 BIBLIOGRAFIA

FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando Fora da Própria Sombra. A escravidão por dívida no Brasil Contemporâneo. Ed. Civilização Brasileira (2004)

FIGUEIRA, Ricardo Rezende; SUDANO, Suliane e GALVÃO, Edna. Os Chineses no Rio: A Escravidão Urbana. Brasiliana -  Journal for BrazilianStudies (Nov 2013)

Combate ao Trabalho Escravo. Disponível em <http://www.oit.org.br/sites/all/forced_labour/oit/faq/p1.php>

CUNHA, Ana Luiza Ribeiro. Trabalho Escravo no Brasil do Século XXI: A redução à condição análoga à de escravo e o direito ao respeito da dignidade humana. 2005.

O Trabalho Escravo. Disponível em <http://www.cprepmauss.com.br/documentos/trabalhoescravo69314.pdf>

DODGE, Raquel Elias Ferreira. Quem escraviza? 1995, 2000, Jornal do Brasil.

O que são os direitos humanos? Disponível em <http://www.dudh.org.br/definicao/>

Mais Trabalho Decente Para Trabalhadoras e Trabalhadores Domésticos no Brasil. Organização Internacional do Trabalho. Disponível em <http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/discrimination/doc/trabalho_domestico_40.pdf>

Recurso Ordinário Trabalhista RO 00742201208403004 0000742 – 41.2012.5.03.0084.Disponível em <http://trt-3.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/124288527/recurso-ordinario-trabalhista-ro-742201208403004-0000742-4120125030084/inteiro-teor-124288537>


[2]O Trabalho Escravo. Disponível em http://www.cprepmauss.com.br/documentos/trabalhoescravo69314.pdf

[3]Disponível em http://trt-3.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/124288527/recurso-ordinario-trabalhista-ro-742201208403004-0000742-4120125030084/inteiro-teor-124288537

[4]Disponível em <http://www.oit.org.br/sites/all/forced_labour/oit/faq/p1.php>

[5] FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora da própria sombra. 2004 p. 317.

[6] Disponível em <http://www.dudh.org.br/definicao/>

[7]Mais Trabalho Decente Para Trabalhadoras e Trabalhadores Domésticos no Brasil . Disponível em < http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/discrimination/doc/trabalho_domestico_40.pdf>

[8]FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora da própria sombra. 2004. p. 326.

[9]Figueira, Ricardo Rezende; Sudano, Suliane e Galvão, Edna. Os Chineses no Rio: A Escravidão  Urbana. p. 111

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Sobre a autora
Vanessa Lisandra Santos de Moraes

Acadêmica do curso de Direito da Universidade de Brasília.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Elaboração - trabalho final de PAD "Modernidade, Trabalho e Direitos Fundamentais"

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