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A aplicação da teoria da pré-ocupação em face dos princípios constitucionais da propriedade

26/02/2016 às 21:37

Resumo:


  • Análise da teoria da pré-ocupação e sua aplicabilidade em relação aos princípios constitucionais da propriedade, considerando a anterioridade da posse como critério para a normalidade do uso do imóvel.

  • Discussão sobre a proteção constitucional ao direito de vizinhança e a função social da propriedade, que limita o uso pleno do imóvel em prol da convivência harmoniosa e do interesse público.

  • Exame de ações judiciais cabíveis e jurisprudência relacionada, destacando a não aceitação integral da teoria da pré-ocupação quando o uso anormal da propriedade prejudica a segurança, o sossego e a saúde dos vizinhos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O uso anormal da propriedade deve ser coibido, respeitando a função social. A pré-ocupação não justifica a perturbação do sossego alheio, mesmo que o ocupante seja anterior.

Resumo: A aplicação da teoria da pré-ocupação em face dos princípios constitucionais da propriedade foi o tema do presente artigo. Propôs-se analisar se o argumento da anterioridade da posse pode ser utilizado como critério para se aferir a normalidade ou a anormalidade da utilização do imóvel, no atual contexto jurídico e constitucional. O artigo teve por base a leitura e a análise de textos, ao avaliar os institutos de Direito Civil, bem como a análise da aplicação da teoria da pré-ocupação face aos princípios constitucionais da propriedade.

Palavras-chave: Teoria da Pré-ocupação. Princípio constitucional da propriedade. Anterioridade

Sumário: Introdução. 1.Direito de Vizinhança. 1.1.Ponderações Gerais. 1.2. Proteção Constitucional ao Direito de Vizinhança. 2. Uso Anormal da Propriedade. 2.1. Interferências Prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde. 2.2. Ações Cabíveis. 3. Teoria da Pré-Ocupação. 3.1. Análise da Teoria da Pré-ocupação a luz da Doutrina. 3.2. A teoria da Pré-ocupação na jurisprudência brasileira. 3.3. (In)aplicabilidade da teoria. Conclusão.


Introdução

A convivência social pressupõe deveres e regramentos que, por vezes, limitam o uso pleno da propriedade pelo seu possuidor, tendo em vista as numerosas situações em que a fruição do próprio direito interfere no direito alheio. Dessa forma, surge a problemática da regularização sob situações que caracterizam esse cenário, considerando disposições normativas e principalmente do bom-senso, na ponderação de interesses Públicos e privados entre princípios basilares do direito brasileiro.

O presente trabalho tem como escopo trazer à tona a questão da teoria da pré-ocupação frente aos princípios constitucionais da propriedade, demonstrando como o judiciário tem procedido em alguns casos, através de seus julgados, e direcionando o leitor à possíveis conclusões doutrinária sobre o tema.

Para tanto, faz-se necessário trazer ao estudo de disposições contidas no ordenamento jurídico pátrio acerca das hipóteses que demarcam a abrangência do direito de propriedade, sobretudo, em razão da premissa do interesse público.


1. Direito de Vizinhança

1.1. Ponderações Gerais

O Código Civil atual, assim como o anterior, cuidou de tratar dos direitos de vizinhança e os apresentou de maneira ordenada: Do uso anormal da propriedade, Das árvores limítrofes, Da passagem forçada, Da passagem de cabos e tubulações, Das águas, Dos limites entre prédios e do direito de tapagem, e Do direito de construir.

É importante determinar o que seriam direitos de vizinhança, já que estes receberam especial tratamento no ordenamento jurídico brasileiro. Dessa forma, concretizam-se na máxima "Nosso direito acaba onde começa o direito do outro" e podem ser conceituados como direitos responsáveis por organizar a vida em sociedade, além de determinar uma coexistência pacífica, limitando o exercício da propriedade.

No que pese o direito de vizinhança é relevante analisar que ele não se limita a prédios ou imóveis contíguos, mas sim a imóveis que de alguma maneira interferem juridicamente em outros e que por esta razão merecem a tutela jurídica do Código.

Os direitos de vizinhança são obrigações propter rem, porque vinculam os confinantes, "acompanhando a coisa onde quer que ela esteja", sendo uma qualidade do titular do domínio ou do detentor da coisa, ou seja, do vizinho. Ainda entre as qualidades inerentes às obrigações propter rem, decorrentes do direito de vizinhança, está a transmissão das relações de vizinhança ao sucessor.

As limitações impostas aos direitos de propriedade e consequentemente aos vizinhos são: a) as limitações de ordem pública: "as quais são destinadas a impedir que o arbítrio ou o egoísmo do proprietário prevaleça em absoluto sobre o interesse da coletividade". (FARIAS, p. 633); e, b) as limitações de ordem privada: "que visam conciliar os interesses do proprietário com os de outros particulares; […]" (FARIAS, p. 633).

Dentre estas obrigações impostas aos vizinhos ainda há que se falar naquelas que geram a obrigação de praticar determinados atos, como é o caso do vizinho que é obrigado a conceder passagem a outro que tem seu imóvel encravado, e as outras que geram a abstenção da prática de determinados atos. Entre os exemplos desse tipo de obrigação está a proibição do proprietário de fazer mau uso de sua propriedade, abstendo-se determinadas práticas que prejudiquem a saúde, o sossego ou a segurança do vizinho.

Assim, os direitos de vizinhança são imprescindíveis para conter a atuação irrestrita sobre determinado imóvel, de forma a perturbar a saúde, segurança ou o sossego do vizinhos.

1.2. Proteção Constitucional ao Direito de Vizinhança

O direito de propriedade é um direito constitucionalmente protegido, desde a Constituição de 1824. A Constituição vigente, de 1988, assegura a proteção à propriedade no rol dos direitos e garantias fundamentais, incisos XXII, XXIII, XXIV, XXV e XXVI do artigo 5º. Além da proteção, a constituição elenca a função social da propriedade, nos arts. 182. § 2º e 186.

O direito constitucional de propriedade constitui limite aos direitos de vizinhança, sendo necessário um regime jurídico que regule as questões sobre vizinhança com base nos litígios que se configuram e na função social da propriedade.

Portanto, trata-se de normas que tendem a compor, a satisfazer os conflitos entre propriedades opostas com o objetivo de tentar definir regras básicas da situação de vizinhança. Busca-se, como disse, a satisfação de interesses de proprietários opostos.

(Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/anais_onovocodigocivil/anais_especial_2/Anais_Parte_II_revistaemerj_158.pdf. Acesso em: 31/05/2015)

Os direitos de vizinhança configuram obrigação propter rem, pois acompanham a coisa, vinculando os confinantes. Tais obrigações apenas acontecem em relação à situação jurídica em que se encontra o obrigado, seja de titular do direito ou de detentor de determinada coisa, logo, vizinhos. “Como acontece com toda obrigação propter rem, a decorrente das relações de vizinhança se transmite ao sucessor a título particular. Por se transferir a eventuais novos ocupantes do imóvel (ambulat cum domino), é também denominada obrigação ambulatória.” (GONÇALVES, 2012, p.299, versão pdf).

Outra corrente defende que os direitos de vizinhança são apenas uma ordem de restrição. As limitações ao uso da propriedade são impostas com base no interesse geral e na reciprocidade, ou seja, a limitação que é imposta a um proprietário equivale a um direito ao vizinho, sendo o contrário verdadeiro.

O Código Civil de 2002 trata dos direitos de vizinhança em capítulo próprio, a partir do art. 1277, que se encarrega do uso anormal da propriedade, que gera os direitos de vizinhança, até o art. 1.313. Quanto à jurisprudência, a teoria do abuso de direito já era reconhecida nas ações que versavam sobre violação antes da previsão no Código Civil de 2002. “A lei civil atual afirma que o abuso de direito é o exercício imoderado de um direito que causa prejuízo a outra pessoa, razão pela qual é considerado ato ilícito.” (LISBOA, 2012, p. 82, versão pdf)


2. Uso Anormal da Propriedade

2.1. Interferências Prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde

Os direitos de vizinhança foram implementados no ordenamento jurídico brasileiro com o intuito de regulamentar as relações entre os proprietários de prédios vizinhos, considerando os eventuais conflitos decorrentes dessas relações.

Para tanto, o Código Civil resguardou os direitos constitucionais à segurança, ao sossego e à saúde especificamente no que se refere à vizinhança no art. 1277, estabelecendo que “O proprietário ou possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudicais à segurança, ao sossego e à saúde dos que habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha”.

Assim, as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos vizinhos decorrem necessariamente do uso anormal da propriedade quando de atos abusivos e eventualmente quando de atos ilegais ou lesivos.

Ilegais são os atos ilícitos que obrigam à reparação do dano, isto é, aqueles decorrentes de ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência. Um exemplo é aquele ato em que o vizinho danifica as plantações de seu confinante, ensejando assim o dever de ressarcir o prejuízo causado.

Abusivos são os atos em que o titular exerce o seu direito de propriedade de modo irregular em desacordo com a finalidade social como, por exemplo, com o barulho excessivo.

Já os atos lesivos são os que causam dano ao vizinho a despeito de o agente estar fazendo o uso normal da propriedade e de a atividade inclusive ter sido autorizada pelo Poder Público.

Dessa forma, se as interferências forem justificadas pelo interesse público, dispõe o art. 1278. do CC que o proprietário ou possuidor que as causar deverá pagar ao vizinho prejudicado indenização cabal, uma vez que a interferência é irreversível. Tal disposição constitui uma exceção ao direito de se fazer cessar as interferências, com base no principio da supremacia do interesse público.

Em se tratando de interesse particular, o vizinho prejudicado pode pedir, quando possível, a redução ou eliminação das interferências, ainda que em decisão judicial anterior se tenha apurado que devam ser essas toleradas. Isso porque o que a lei confere ao vizinho é o direito de impedir que o outro lhe incomode em excesso, não lhe assistindo o direito quando o incômodo causado for tolerável e razoável.

Do mesmo modo, conforme a zona em que o imóvel estiver sito o proprietário deverá suportar o incômodo. É o caso de um imóvel localizado em área industrial, desde que os ruídos não se estendam pelo espaço de tempo reservado ao repouso humano.

Há ainda, a possibilidade de se considerar a anterioridade da posse como matéria de defesa. Assim, a pessoa que se instalou por primeiro em determinada localidade teria a preferência de se manter ali exercendo as atividades que geram incômodo ao vizinho, se ao tempo da instalação deste já as exercia, conforme dispõe a teoria da pré-ocupação.

No entanto, essa teoria, denominada pré-ocupação, não tem aplicabilidade a todos os casos, uma vez que a lei veda o incômodo, não sendo justificável a perpetuação da interferência na vizinhança com base na alegação de anterioridade da propriedade.

Dessa forma, para se verificar o uso normal ou anormal de um imóvel é necessário aferir a extensão do dano causado, analisar o local onde ocorre o conflito e os costumes daquele local e por fim considerar, conforme o caso, a anterioridade da posse.

2.2. Ações Cabíveis

Para que sejam solucionados os problemas derivados do uso anormal da propriedade, o nosso ordenamento traz algumas soluções judiciais para estes conflitos, presentes no atual Código de Processo Civil - CPC (Lei 5.869/73), como pode ser observado pela transcrição do seguinte artigo:

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Art. 287. Se o autor pedir que seja imposta ao réu a abstenção da prática de algum ato, tolerar alguma atividade, prestar ato ou entregar coisa, poderá requerer cominação de pena pecuniária para o caso de descumprimento da sentença ou da decisão antecipatória de tutela (arts. 461, § 4o, e 461-A).

Quando se configura uma hipótese incidindo na situação do artigo supracitado, tem-se a ação cominatória. Esta se dispõe a proteger aquele que esteja sofrendo ou possua justo receio de sofrer dano em seu imóvel em virtude do uso anômalo da propriedade alheia. O intuito dessa ação é o de desestimular ou coibir o causador do ato nocivo, ato este que pode ser uma ação ou omissão, diminuindo os danos ou levando a uma não reincidência daquela prática, sob a pena de multa diária estipulada pelo Juiz.

Há também a ação de nunciação de obra nova, que está prevista no CPC nos artigos 934 a 940, e tem a finalidade elucidada nos termos do artigo 936, como pode ser visto a seguir:

Art. 936. Na petição inicial, elaborada com observância dos requisitos do art. 282, requererá o nunciante:

I - o embargo para que fique suspensa a obra e se mande afinal reconstituir, modificar ou demolir o que estiver feito em seu detrimento;

II - a cominação de pena para o caso de inobservância do preceito;

III - a condenação em perdas e danos.

Com este dispositivo, percebe-se claramente a proteção que se dá àquele que vê a possibilidade de ameaça à integridade de sua propriedade ou também nos casos em que existe alguma irregularidade em obra nova de imóvel vizinho.

Por último, há que se falar na ação demolitória, prevista no Código Civil de 2002 em seu artigo 1280, ela possui caráter punitivo e é considerada uma medida extrema, sendo possível apenas nos casos em que se encontram vícios insanáveis ou inadequações à legislação vigente, obstando assim a manutenção da mesma. Neste mesmo artigo, há a possibilidade da ação caucionatória, ou seja, a revindicação tem por base o pedido de caução pelo dano eminente. Essas ações são chamadas pela doutrina de ações de dano infecto.

Sendo essas algumas das ações cabíveis no que tange à resolução dos conflitos resultantes do uso anormal da propriedade, é preciso salientar que nenhuma delas exclui a possibilidade de ajuizamento de ação indenizatória pelos danos e transtornos sofridos, dentre outras.

Quando se fala do uso anormal da propriedade, faz-se mister a análise social do meio em que se encontra aquele imóvel, uma vez que certos usos são característicos de determinadas áreas e incompatíveis com outras. Neste plano, é importante observar um argumento frequente nestas ações que é o da anterioridade da propriedade, conforme preceitua a teoria da pré-ocupação, que será objeto de estudos do próximo capítulo.


3. Teoria da Pré-Ocupação

3.1. Análise da Teoria da Pré-ocupação a luz da Doutrina

Ante das possíveis ofensas ao sossego, à saúde e a segurança, para que se deduza o uso normal ou anormal da propriedade, levam-se em conta diversos critérios apontados pela doutrina, dentre eles destaca-se a Teoria da Pré-ocupação.

A teoria da Pré-ocupação estrutura-se na ideia de que o proprietário ou possuidor, que se afixa primeiramente na região, estabelece certos padrões sociais de habitação, sendo estes investigados como base de aferir a normalidade da atuação do proprietário contíguo, que se constitui posteriormente. Maria Helena Diniz acrescenta ainda que “aquele que se instala depois de estabelecido um certo uso pelo proprietário contiguo, não poderá alterar esse estado de coisa.” (DINIZ, 2014, p.313)

Contudo, a própria autora pondera tal entendimento, alegando que:

“ não se pode aceitar, integral e absolutamente, a teoria da pré ocupação, pois que a anterioridade ocupação não tem condão de paralisar toda propriedade nova , sujeitando o que chega posteriormente e se transforma com tudo, hipótese em que se teria uma servidão e não restrição aos jura vicinitstis.” (DINIZ, 2014, p.313)

Nesse sentido, Silvio de Salvo Venosa defende que o absolutismo no direito de propriedade, há tempos foi afastado, dessa forma, a teoria da Pré-ocupação também não conferiria um direito absoluto ao proprietário que chegou primeiro ao local. Ele assim explica: “Não é pelo fato de uma indústria ter-se instalado em local ermo, posteriormente urbanizado, que lhe dará o direito de emitir gases poluentes, sem a devida filtragem, por exemplo.” (VENOSA, 2013, p.287)

Caio Mario da Silva Pereira, do mesmo modo, defende que a Teoria da Pré-ocupação não é um direito absoluto. No entanto, reconhece que esta tem o mérito de influir sobre a tolerância sobre a utilização preexistente.

Cristiano Farias e Nelson Rosenvald intera sobre a Teoria da Pré-ocupação que “Em princípio, a posição é razoável, pois o indivíduo que venha estabelecer domicílio nas proximidades da rodoviária não poderá ter êxito na demanda em que postula a paralisação das atividades nocivas.” (FARIAS, ROSENVALD, 2012, p.646 a 647) Não obstante tal argumento, o doutrinador ressalva que esta tese deverá ser perquirida com rigor, para que ela não seja um alvará de produção de danos, justificados pelo uso preexistente da propriedade, impedindo, portanto, qualquer atuação dos novos moradores.

Por fim, preceitua Hely Lopes Meireles que:

(...) a pré-ocupação do local não atribui ao vizinho o direito de perturbar o sossego, saúde ou a segurança da vizinhança. Por isso que a anterioridade que poderia justificar a manutenção do uso que a incomoda não é a individual ou acidental, mas sim aquela prevista de modo coletivo, nas normas municipais referentes ao zoneamento do bairro em questão. (MEIRELES,1999, p.17)

3.2. A teoria da Pré-ocupação na jurisprudência brasileira

Conforme destacado, dentre os fundamentos passíveis de alegação pelo réu no pleito de cessação do uso anormal da propriedade ou de indenização ou de dano causado à segurança, ao sossego e à saúde, a teoria da pré- ocupação é, sem dúvida, uma das hipóteses de maior ocorrência.

Isso ocorre, pois partindo do pressuposto de que a vida em sociedade impõe um certo numero de encargos, inclusive o de suportar alguns incômodos, normalmente toleráveis, a teoria da pré-ocupação serviria de reforço a esta tese da tolerabilidade normal.

Através de uma análise jurisprudencial a respeito do tema, constatou-se que o posicionamento majoritário do Poder Judiciário em relação à aplicação da teoria da pré-ocupação, assenta-se na sua possibilidade, ainda que não de forma absoluta, mas tem o mérito de influir sobre a tolerância em relação à utilização preexistente, conforme poderá ser observado nos precedentes delineados a seguir. Há, contudo, o posicionamento de que a seria incoerente admitir que o vizinho possa interferir no sossego apenas por já estar estabelecido no local.

No caso Efigênia Cesária Ferreira v. MRS LOGÍSTICA S/A10, julgado pelo tribunal mineiro, por exemplo, em que a parte autora pleiteava indenização por danos materiais e morais em virtude de ruídos emitidos pela parte ré, que exerce atividade de transporte ferroviário, foi aplicado a teoria da pré-ocupação ao argumento de que a própria cidade de Conselheiro Lafaiate, local onde ocorreu o litígio, teria crescido no entorno da estação ferroviária, de modo que, qualquer pessoa que decidisse residir próximo à linha férrea já sabia das consequências de sua escolha.

Repetindo o posicionamento do caso anterior, no caso Condomínio Edifício Bandeirantes v. Sociedade Beneficente De Senhoras Hospital Sírio Libanês11, a parte autora argumentou que o hospital réu realizaria a manutenção de seus equipamentos durante a madrugada, sem ao menos se preocupar com os moradores do condomínio autor. Requereu a obrigação de não fazer consistente na abstenção de barulhos excessivos, bem como a condenação a pena cominatória por dia, caso haja novamente a prática de sons exagerados no horário noturno. No caso, aplicou-se a teoria da pré-ocupação sob o argumento de que o fato do hospital ter se afixado primeiramente na região estabeleceria os padrões sociais de habitação.

Em que pese o entendimento supracitado, cumpre destacar o julgamento da Apelação nº 0184306-86.2009.8.26.0100, também apreciado pelo Tribunal de São Paulo, em que, apesar da alegada anterioridade pela Companhia do Metropolitano de São Paulo, o entendimento que predominou foi de que a lei não adota a teoria da pré-ocupação como determinante para estabelecer direitos, sendo obviamente ilógico que o vizinho possa interferir no sossego apenas por já estar no local, sendo mantida a indenização em virtude do barulho excessivo causada pelas atividades do metrô.

Ao avaliar a vasta jurisprudência a respeito do tema, o questionamento a respeito da aplicação da teoria da pré-ocupação permanece. Para refletir a respeito da questão discutida, cumpre recorrer aos princípios constitucionais e mais uma vez ao entendimento da doutrina acerca do tema, como será mais bem delineado no capítulo a seguir.

3.3. A (in)aplicabilidade da teoria da pré-ocupação à luz do direito constitucional à propriedade

De acordo com Carlos Roberto Gonçalves, entende-se que a teoria da pré-ocupação não pode ser aceita em todos os casos e sem reservas, pois “Se o barulho é demasiado ou se a lei proíbe o incômodo, o proprietário não pode valer-se da anterioridade de seu estabelecimento para continuar molestando o próximo” (GONÇALVES, 2012).

Também, Maria Helena Diniz ensina que o direito de propriedade é limitado quanto à intensidade de seu exercício em razão do princípio geral que proíbe ao indivíduo um comportamento que venha a exceder o uso normal de um direito. Em outras palavras, aquele que faz uso anormal da sua propriedade, não pode alegar a anterioridade da ocupação para continuar perturbando o sossego, a saúde ou a segurança dos vizinhos.

O direito à propriedade é assegurado na Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, XXII. Entretanto, o inciso XXIII do referido artigo dispõe que deverá ser atendida a sua função social. Dessa forma, entende-se que a propriedade somente será reconhecida, enquanto direito, se respeitar a função social a que se destina.

Por sua vez, a função social das propriedades urbanas e rurais estão dispostas nos art. 182, §2º, e art. 186, CF/88, respectivamente. Conforme tais dispositivos, a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. Já a função social da propriedade rural é cumprida quando há o seu aproveitamento racional e adequado, a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, a observância das disposições que regulam as relações de trabalho e quando a exploração favorecer o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Assim, quando o princípio da função social da propriedade for violado estará caracterizado o uso anormal da propriedade.

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. INFRAÇÃO AMBIENTAL. EMISSÃO DE RUÍDOS ACIMA DO NÍVEL PERMITIDO. FUNÇÃO SOCIAL E USO NOCIVO DA PROPRIEDADE. RECURSO IMPROVIDO. I - SE CONSTATADA A EMISSÃO DE SONS QUE ULTRAPASSAM OS NÍVEIS MÁXIMOS DE INTENSIDADE PERMITIDOS POR LEI, PERTURBANDO O SOSSEGO E O BEM-ESTAR PÚBLICO E DA VIZINHANÇA, A INTERDIÇÃO, PARCIAL OU TOTAL, DE ESTABELECIMENTO OU DE ATIVIDADE É MEDIDA QUE SE IMPÕE, NOS TERMOS DO ART. 46, VIII, DA LEI Nº 41/89. II - EM DETENDO A AUTORIDADE AMBIENTAL CIÊNCIA OU NOTÍCIA DE OCORRÊNCIA DE INFRAÇÃO AMBIENTAL É OBRIGADA A PROMOVER A SUA APURAÇÃO IMEDIATA, MEDIANTE PROCESSO ADMINISTRATIVO PRÓPRIO, INCLUSIVE SOB PENA DE, EM NÃO O FAZENDO, TORNAR-SE CO-RESPONSÁVEL. III - A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE, PRECONIZADA PELA CARTA POLÍTICA, REFERE-SE, OUTROSSIM, À PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE, CONSISTINDO DEGRADAÇÃO DESSE A EXISTÊNCIA DE CONDIÇÕES INSALUBRES QUE COMPROMETAM O BEM-ESTAR DE SEUS HABITANTES, ESTANDO O USO NOCIVO DA PROPRIEDADE VEDADO TAMBÉM PELA NORMA INSERTA NO ART. 1.277. DO NOVO CÓDIGO CIVIL

(TJ-DF - AC: 20020110529388 DF , Relator: NÍVIO GERALDO GONÇALVES, Data de Julgamento: 28/02/2005, 1ª Turma Cível, Data de Publicação: DJU 29/03/2005 Pág. : 108)

Ainda, nas palavras de Maria Helena Diniz, “não se pode aceitar, integral e absolutamente, a teoria da pré-ocupação, pois que a anterioridade da ocupação não tem o condão de paralisar toda propriedade nova” (DINIZ, 2011, p. 292.)

Tem-se então que a propriedade deve adequar-se à sua função social. Portanto, se um imóvel perturba a saúde, a segurança e/ou o sossego dos vizinhos, apesar de ter se estabelecido primeiro na região, será inaplicável a teoria da pré-ocupação.


Conclusão

Conforme foi possível observar no decorrer deste artigo, é indiscutível a proteção constitucional dada a direitos como a segurança, o sossego e a saúde especificamente no que se refere à vizinhança. Para que sejam solucionados os problemas derivados do uso anormal da propriedade, o nosso ordenamento traz algumas soluções judiciais para estes conflitos. Uma das defesas comumente utilizadas é a alegação de anterioridade da posse, assegurada pela teoria da ocupação.

A aplicação da teoria da Pré-ocupação estrutura-se na ideia de que o proprietário ou possuidor, que se afixa primeiramente na região, estabelece certos padrões sociais de habitação. Contudo, buscou-se verificar se seria coerente admitir que o vizinho possa interferir no sossego apenas por já estar estabelecido no local.

Assim, foi possível concluir que a teoria da pré-ocupação não deve ser aceita na integralidade de seus termos, sendo que, notando-se o uso anormal da propriedade pelo seu possuidor, poderá o vizinho prejudicado exercer seu direito de reação, não obstante ter aquele se estabelecido anteriormente no local,considerando ainda que cabe ao Estado reordenar às atividades desenvolvidas por particulares, como forma de cumprir ou se adequar aos ditamos constitucionais e administrativos.


Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico,

CARVALHO, Régis Santiago de. O direito de propriedade à luz dos princípios constitucionais ambientais – o problema da colisão entre direitos fundamentais. In: https://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=3395 , acessado em 25/05/2015, às 14h34.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisas. São Paulo: Editora Saraiva, 2011.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisa. 28° ed. Saraiva, 2014.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Direitos Reias. 8. ed. Salvador (BA): JusPODIVM, 2012.

GONÇALVES. Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 5: Direitos das Coisas. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das coisas. – 13. ed. – São Paulo : Saraiva, 2012. – (Coleção sinopses jurídicas; v. 3)

LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. Volume 4: Direitos reais e direitos intelectuais. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de Construir. 7. ed. Atualizada por Eurico de Andrade Azevedo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 199.

MONTEIRO FILHO, Carlos Edison Do Rêgo. O Direito de Vizinhança no Novo Código Civil. Disponível em: <https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/anais_onovocodigocivil/anais_especial_2/Anais_Parte_II_revistaemerj_158.pdf> Acesso em: 31/05/2015

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições do Direito Civil: Direitos Reais. Atualizada por Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. 21° ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

RANGEL, Tauã Lima Verdan. Direito de Vizinhança: Anotações às Limitações Legais à Propriedade Similares à Servidão. Disponível em: <https://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.38579&seo=1>. Acesso em: 02 jun. 2015.

RANGEL, Tauã Lima Verdan. Direito de vizinhança: comentários ao uso anormal da propriedade. In: https://www.conteudojuridico.com.br/artigo,direito-de-vizinhanca-comentarios-ao-uso-anormal-da-propriedade,38491.html, acessado em 25/05/2015, às 14h05.

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 2. ed. São Paulo (SP): Método; Rio de Janeiro (RJ): Forense, 2012.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 13° Ed. São Paulo: Atlas, 2013.


Notas

1 TJ-MG - AC: 10183071328763004 MG , Relator: Cláudia Maia, Data de Julgamento: 28/11/2013, Câmaras Cíveis / 13ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 06/12/2013.

1 TJ-SP - APL 01101742420108260100 SP 0110174-24.2010.8.26.0100, Relator: Claudio Hamilton, Data de Julgamento: 03/09/2013, 27ª Câmara de Direito Privado.

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