Honorários advocatícios e Direito Intertemporal

02/03/2016 às 18:03
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O artigo objetiva estabelecer a natureza jurídica da norma que prevê a condenação em honorários advocatícios no novo código de processo civil para, a partir daí, estabelecer o critério de direito intermporal adequado.

                                          

            Uma das questões mais intrincadas que surgem com o advento do Código de Processo Civil de 2015 relaciona-se com a aplicação das leis velha e nova aos processos pendentes. Isso porque, quanto aos processos findos, é pacífico que as situações jurídicas consolidadas, bem como seus efeitos, serão regidas pela lei revogada. É igualmente tranquilo o posicionamento segundo o qual às ações supervenientes se aplica inteiramente a nova disposição normativa. Os pontos de maios discussão, portanto, decorrem da incidência da nova lei aos processos pendentes.

            No que se relaciona com a condenação nas despesas processuais - um dos campos em que se observa significativas alterações ao se cotejar o CPC/73 e o CPC/15 - a propensão a que o debate se desvirtue é imensa. E a razão para tanto é evidente: cuida-se de capítulo que se refere diretamente com a remuneração do advogado, podendo, caso aplicado o NCPC, gerar ganhos financeiros vultosos em comparação com a sistemática anterior. Tudo somado, ressoa atual a ponderação feita há mais de cinquenta anos por Ugo Rocco no sentido de que, nas zonas de incerteza quanto à incidência do direito intertemporal, deveria o legislador se antecipar à inarredável controvérsia.[1] O alvitre, porém, não foi seguido no ponto em tela.

            Como é de fácil apreensão, existem normas de direito transitório gerais e especiais. Estas últimas podem ser observadas, v. g., em relação ao direito probatório (art. 1.047) e procedimentos revogados (art. 1.046, § 1º), para os quais se deve aplicar, usando da nomenclatura de Chiovenda, a teoria dos períodos processuais.[2] Lado outro, a norma geral, como é intuitivo, deve ser utilizada na ausência de regra especial. Assim, tendo em vista que as disposições finais e transitórias do novo diploma não regem a condenação em honorários de ações propostas antes de sua entrada em vigência, é de se indagar se a norma geral do art. 14 - o qual abraça a teoria do isolamento dos atos processuais - deve incidir na questão em tela.

            E a resposta negativa se impõe. Com efeito, o art. 85 do NCPC não é uma norma de direito processual, senão de direito substancial inserta em um diploma processual. Isso não deve causar espécie à ninguém, pois basta ver que no Código Civil italiano se encontra previsão acerca da coisa julgada (art. 2.909), sentença constitutiva (art. 2.910), expropriação patrimonial (art. 2.910) e tutela in natura das obrigações (art. 2.930), que são, indubitavelmente, questões que concernem ao direito processual. O mesmo se passa com o diploma civil brasileiro, o qual prevê, canhestramente, normas acerca dos meios de prova.

A posição que se vem de expor - no sentido de discernir, de um lado, um direito material intertemporal, e, de outro, um direito processual intertemporal - é moeda corrente por ocasião da sucessão de leis no tempo. Veja-se, por exemplo, que com o advento da Lei 10.358/2001 houve uma extensão eficacial do art. 14 do CPC/73, pois antes estavam sujeitos às regras relativas aos deveres processuais apenas as partes e seus procuradores, ao passo que, após o advento da norma, todos quantos participam do processo devem atuar de forma leal e proba. O que releva destacar é que, sem embargo das alterações terem sido incorporadas ao CPC por uma lei eminentemente processual, o dispositivo em tela não diz respeito a atividade tipicamente processual, de modo que “se está aqui diante de um raciocínio típico de direito material intertemporal”.[3]

Isso quer dizer, portanto, que a aplicação do direito intertemporal não pode ocorrer de acordo com uma simplista lógica bi-modal: à norma prevista em um diploma processual, aplica-se a teoria do isolamento dos atos processuais aos processos pendentes; à norma encampada em um arcabouço substancial aplica-se a lei vigente ao tempo da consumação do ato jurídico. Conforme aduz a doutrina do maior processualista peninsular do século XX: “La natura di una norma si desume dall”oggetto non dalla ubicazione”.[4] Ou seja, é nodal distinguir normas heterotópicas de normas puras a partir de seu objeto, e, não, de acordo com um critério topográfico.

Para tanto, é nodal compreender que o direito processual é uma normativa secundária da vida em sociedade, ou seja, atua como instrumento de tutela de situações jurídicas de direito substancial.[5] Em palavras outras, em qualquer ordenamento jurídico existem normas vocacionadas a disciplinar o comportamento social dos cidadãos de modo a lhes atribuir os bens da vida e regular suas recíprocas interações de acordo com uma pauta axiológica previamente fixada. Essas normas são, na esteira de Francesco Paolo Luiso, “un complesso che, nei vari settori di vita dei consociati, istituisce una rete di dovere e poteri di comportamento, cercando di raggiungere determinate finalità”.[6] Em sentido aproximado, Liebman assevera que em um ordenamento existem: a) normas primárias, as quais “regulam diretamente as relações ocorrentes entre os homens na sua vida social”; b) normas de segundo grau, as quais “têm por objeto a vida e o desempenho do próprio ordenamento jurídico, cuja formação e desenvolvimento elas regulam”, e podem se bipartir em normas de produção jurídica e de atuação jurídica.[7]

Dessa forma, pode-se afirmar que as normas de direito substancial, à vista da incumbência de disciplinar a distribuição dos bens e regular as relações sociais, contém “critérios para a solução de conflitos (critérios para seu julgamento)”,[8] ao passo que as de direito processual disciplinam, precipuamente, a vida processo, isto é, os institutos jurídicos que permeiam a trilogia processual (ação, processo e jurisdição).

Nessa linha de exposição, resulta inequívoco que o capítulo que disciplina os honorários advocatícios no NCPC não é de direito processual, pois é responsável por, primariamente, atribuir um bem da vida. Traz, por conseguinte, um critério para a solução do conflito de interesses representado pela responsabilidade pelas despesas processuais.

Ressalte-se, ademais, que esse critério não é - como por vezes se supõe, e até mesmo pode decorrer de uma leitura açodada do código - o da sucumbência. O real parâmetro para determinação do dever (não ônus, como também equivocadamente se diz) de custear as despesas processuais em sentido lato advém da causalidade, sendo certo que a sucumbência é apenas um indício daquela.

Deve arcar com os custos do processo, por conseguinte, não necessariamente o vencido, senão aquele que, em desconformidade ao direito objetivo, deu causa ao processo. Se este é aquele que teve sua pretensão julgada improcedente, natural que assim o seja. Mas não deve causar qualquer mossa que, em embargos de terceiro nos quais se alega posse advinda de compromisso de compra e venda de imóvel não registrado, haja a condenação do embargante nas despesas processuais a despeito da juridicidade de sua pretensão. Como o possuidor não registrou o contrato, deu causa à restrição patrimonial, de sorte que deve arcar com o ônus financeiro decorrente de sua inação. Em síntese, e mais uma vez com Chiovenda, pode-se dizer que “è troppo assoluto e genérico l’ affermare che la parte vittoriosa non può mai esser condannata nelle spese”.[9]

Ora, se a causalidade é dotada de referibilidade ao ajuizamento da petição inicial, é natural que se aplique a regra tempus regit actum, de sorte que os honorários sejam disciplinados não pela lei em vigor ao tempo de prolação da sentença/acórdão, senão por aquela vigente àquele primeiro momento. Dessa forma, pode-se dizer que o capítulo condenatório, à semelhança do lançamento tributário (art. 144, CTN), reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação, qual seja, a propositura da ação, e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente revogada.

Veja-se, ainda, que a celeuma doutrinária quanto à natureza jurídica do ato de lançamento - se declaratório da obrigação, ou se constitutivo do crédito tributário -, é despicienda para a questão ora em debate. Com efeito, a despeito da natureza que se lhe queira atribuir, a obrigatoriedade de que os atos substanciais sejam regidos pela lei em vigor ao tempo de seu aperfeiçoamento é uma decorrência da tutela ao ato jurídico perfeito (art. 5º, inc. XXXVI, CRFB), de maneira que não se pode retroagir o NCPC para colher sob seu manto de eficácia ato já consumado.

Outro argumento que ratifica o caráter material dos honorários é a tão famosa quanto equivocada teoria dos pedidos implícitos. A bem da verdade, a prestação da tutela jurisdicional no caso de capítulos condenatórios que prescindem de pedido não precisa se valer dessa ficção jurídica. O que há, em verdade, é uma extensão do objeto litigioso do processo para além da vontade da parte, o que, com o novo código, ganhou maior latitude com a previsão da coisa julgada sobre a questão prejudicial incidente (art. 503). A condenação em honorários, portanto, à semelhança dos juros legais, correção monetária e prestações sucessivas (arts. 322 e 323), compõe o mérito do processo, e o sentido, alcance e extensão das normas que preveem critérios para a solução do objeto litigioso do processo é questão afeta ao direito substancial.

É interessante destacar que, conquanto não se parta da premissa posta, devem as despesas processuais, multas e honorários advocatícios serem regulados pela lei da propositura da ação. Isso porque, de acordo com a teoria do isolamento dos processuais, adotada no art. 14 NCPC, a lei nova não se aplica aos atos já praticados e nem a seus efeitos, de maneira que há um direito processual aos efeitos processuais ainda não verificados que sejam consequência direta do ato anteriormente praticado.[10]

Nessa linha de convicções, Larissa Clare Pochmann da Silva, ao discorrer sobre a fixação de honorários recursais, sustenta que isso somente ocorrerá em relação aos recursos interpostos a partir da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, uma vez que “o efeito condenatório que gera os honorários decorre da interposição do recurso, e não de algum fato jurídico ao longo da tramitação do recurso ou mesmo do acórdão que o julgará e, como é cediço, em decorrência da teoria do isolamento dos atos processuais, não se aplica a lei nova a atos processuais já praticados, ainda que produzam efeitos no curso posterior do processo”.[11]

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Esse raciocínio – ainda que aborde diretamente a sucumbência recursal prevista no § 11 do art. 85 do NCPC - aplica-se a todo o capítulo que disciplina as despesas processuais lato sensu, pois, analogicamente, o efeito condenatório que gera os honorários decorre da propositura da ação, e, não, da sentença.

Destarte, tanto a corrente processualista preconizada pela autora supra, assim como a materialista, por nós aqui sustentada, malgrado partam de premissas distintas, chegam a uma mesma conclusão, a saber, a irretroatividade das normas do NCPC que disciplinam as despesas processuais.

E, deveras, outra solução não é possível em um código que busca, incessantemente, evitar as decisões-surpresa. Como é cediço, a decisão de terza via, incompatível com o modelo processual comparticipativo preconizado pelo novo código,[12] é aquela que, em desrespeito aos deveres de cooperação processual, surpreende as partes quanto a aspectos fáticos ou jurídicos da demanda. Ora, se assim o é, o que dizer de uma decisão que frustra a legítima expectativa de despesa decorrente da improcedência do pedido? Essa calculabilidade também não está coberta pelo modelo cooperativo de processo?

De fato, o custo ex ante de se utilizar um método de resolução de conflitos é um primado ínsito a um bom sistema jurisdicional, de forma que apenas em sociedades de subterrâneo capital institucional os cidadãos socorrem-se do aparelho estatal para compor litígios sem poder antever as consequências possíveis de seu comportamento.

Em palavras outras, o prêmio de risco de um litígio judicial deve, em um sistema constitucional que abraça o princípio da segurança jurídica, assim como em um modelo processual que resguarda as partes de decisões-surpresa, ser um dado prévio à propositura da ação, de modo que o jurisdicionado não seja surpreendido com uma despesa-surpresa que não podia antever quando calculou o custo envolvido.

Por fim, destaque-se que no Fórum Permanente de Processualistas Civis realizado em Curitiba (23-25 de outubro de 2015) foi proposto enunciado pelo Grupo de Direito Intertemporal com o seguinte teor: “Os §§ 3º e 11 do art. 85 do CPC/2015 somente se aplicam às ações envolvendo a Fazenda Pública e aos recursos, respectivamente, ajuizadas e interpostos após o início da vigência do CPC/2015”.

A despeito de nossa contundente manifestação pela sua aprovação, o enunciado foi objetado (e basta uma única para que não haja aprovação). E, como se sabe, faz parte da festa da democracia que nem sempre as melhores decisões sejam tomadas na praça pública.


[1] “Vi sono, tuttavia, alcune zone grigie, in cui dubbio potrebbe essere il critério di applicazione dell’ antica o della nuova legge processuale, ma, come abbiamo detto, tali punti non possono sfuggire all’ atento vaglio di un legislatore che meriti questo nome, onde normalmente i casi dubbi sono risoluti appunto dalle disposizione transitorie”. ROCCO, Ugo. Corso di Teoria e Pratica del processo Civile. Vol. 1. Parte Generale. Napoli: Ed. Libreria Scientifica, 1951, p. 176.

[2] “Teoricamente, due estreme soluzioni sono possibili: o applicare la legge antica fino al termine del processo (soluzione suggerita dall’intento d’evitare perturbamenti e complicazioni); o applicare la nuova agli atti successivi (applicazione rigorosa dell’autonomia del rapporto processuale). Una via de mezzo può trovarsi nella divisione della causa in periodi, per modo che fino a compimento di um período si applichi la legge antica, indi la nuova”. (Istituzioni di Diritto Processuale Civile. Vol. 1. Napoli: Ed. Dott. Eugenio Jovene, 1947, p. 85).

[3] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; WAMBIER, Luiz Rodrigues. Breves Comentários à 2ª Fase da Reforma do Código de Processo Civil. 2ª ed., São Paulo: Ed. RT, São Paulo, 2002, p. 268.

[4] CHIOVENDA, Giuseppe. Op. cit., p. 81.

[5] Perceba-se que não se está a tratar do caráter substitutivo da jurisdição, o qual é uma característica presente em diversas situações relacionadas aos direitos disponíveis, mas inidônea para explicar seja as ações constitutivas necessárias, seja as ações penas condenatórias. Como aqui se está a tratar da norma processual lato sensu, e, não das leis processuais civis, o argumento referente à secundariedade se entrincheira nas fileiras da teoria geral do processo, de modo a abranger a totalidade do fenômeno processual.

[6] LUISO, Francesco Paolo. Diritto Processuale Civile. Vol. 1. Milano: Ed. Giuffrè, 2013, p. 4.

[7] LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Vol. 1. Trad. Cândido Rangel Dinamarco. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 205, p. 59.

[8] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. 1. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 42.

[9] CHIOVENDA, Giuseppe. Principii di Diritto Processuale Civile. Napoli: Jovene Editore, 1965, p. 903, nota de rodapé n° 1.

[10] Por todos: SOARES, André Mattos. Direito Intertemporal e o Novo Código de Processo Civil. Atualidades e Polêmicas. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2015, p. 108.

[11] Pochmann da Silva, Larissa Clare. A fixação dos honorários advocatícios recursais prevista no Novo Código De Processo Civil e o direito intertemporal. Texto inédito, gentilmente cedido pela autora.

[12] Por todos: GALINDO, Maíra Coelho Torres. Processo Cooperativo. Curitiba: Juruá, 2015, passim.

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Sobre o autor
Marcelo Barbi Gonçalves

Doutorando em Direito Processual pela UERJ. Mestre em Direito. Juiz Federal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigos completos publicados em periódicos 1. GONÇALVES, M. B. Execução fiscal: um retrato da inoperância, o (bom) exemplo português e as alternativas viáveis. Revista de Processo. , v.247, p.451 - 471, 2015. 2. GONÇALVES, M. B. Meios alternativos de soluçao de controvérsias: verdades, ilusões e descaminhos no Novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. , v.242, p.597 - 629, 2015.

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