Muito embora a Lei 9.099/95 tenha vindo prestigiar a idéia da participação da sociedade na administração da Justiça quando previu, em seu bojo, a figura do conciliador, necessárias se fazem, a meu ver, algumas considerações acerca do papel destes auxiliares da Justiça, criados, segundo posição doutrinária, para funcionar como multiplicadores da capacidade de trabalho do juiz. [1]( GRINOVER, ADA PELLEGRINI e outros. " JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS", RT, pág. 118.)
De fato, essa apregoada multiplicação de desempenho deve ser ater aos contornos traçados pela Lei, sob pena de atrair para os atos praticados vício de impossível convalidação, além de um conseqüente desprestígio social para o Judiciário decorrente do exercício de atos efetivados ao arrepio da lei, sem prejuízo de eventual consumação de delito tipificado no art. 328 do CPB. [2] (Art. 328. Usurpar o exercício de função pública: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos, e multa)
Exemplo apto a ilustrar o raciocínio esposado seria o de permitir ao conciliador o oferecimento da proposta de transação penal, uma vez não tenha logrado êxito a tentativa de composição dos danos civis e colhida a representação da parte ofendida, não servindo, a meu ver, a invocação dos princípios da informalidade, celeridade e da economia processual, os quais regem o procedimento seguido no âmbito dos JECCs, para justificar tal procedimento, ainda mais se em detrimento de princípios informadores do processo penal, dentre os quais podemos citar os da legalidade, oficialidade, autoritariedade, promotor e juiz natural, bem como e principalmente o princípio constitucional do devido processo legal.
O artigo 72 da Lei 9.099/95 prevê que, a audiência preliminar, presentes o Representante do Ministério Público, o autor do fato, a vítima (com o representante civil, se for o caso) e os respectivos advogados, constitui o momento oportuno para esclarecimento das partes, pelo Juiz, quanto à possibilidade de composição dos danos e de aceitação de proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade.
A lei é clara ao imputar ao juiz a tarefa de esclarecimento das partes acerca das hipóteses ali previstas, abrindo, no entanto, um precedente quanto à possibilidade de conciliação, uma vez que esta poderá ser conduzida por conciliador, sob a orientação do Juiz, segundo dispõe o art. 73 seguinte.
É isso. A atuação do conciliador no âmbito do Juizado Especial Criminal está, a meu ver, delimitada a esta única tarefa de condução, sob orientação judicial, da tentativa de conciliação entre as partes, encerrando sua participação na redução a escrito de eventual composição para fins de homologação, pelo juiz, por sentença irrecorrível (art. 74 da Lei 9.099/95) ou na coleta da representação da parte ofendida, em não logrando êxito a composição das partes. (art. 75 da Lei 9.099/95) Nem mais nem menos que isso.
E não poderia ser de outra forma, já que as providências seguintes são atribuídas pela lei ao Ministério Público, quanto à proposta de transação penal (art. 76) e ao Juiz, para fins de apreciação da proposta, caso aceita pelo autor e seu defensor, e conseqüente aplicação da pena proposta, nos moldes do parágrafo 4º. do artigo 76.
Mesmo a nova tentativa de conciliação prevista no art. 79 da Lei 9.099/95 [3] (No dia e hora designados para a audiência de instrução e julgamento, se na fase preliminar não tiver havido possibilidade de tentativa de conciliação e de oferecimento de proposta pelo Ministério Público, proceder-se-á nos termos dos artigos 72, 73, 74 e 75 desta Lei) não deve ser conduzida pelo conciliador, eis que se trata aqui de fase imediatamente anterior à abertura de audiência de instrução e julgamento, ato impreterivelmente presidido pelo Juiz, entendimento que é confirmado pelo teor do parágrafo 1º. do aludido artigo. [4] (§ 1º. Todas as provas serão produzidas na audiência de instrução e julgamento, podendo o Juiz limitar ou excluir as que considerar excessivas, impertinentes ou protelatórias)
Ao argumento de que o artigo 98, I da CF/88 poderia ensejar a compreensão de que a transação penal poderia ficar a cargo do ali denominado "juiz leigo", entendo que referido raciocínio não encontra amparo legal já que o texto constitucional se refere expressamente à obediência ao procedimento sumaríssimo, remetendo, portanto, aos ditames da Lei 9.099/95.
A formulação da proposta de transação penal pelo conciliador tem merecido veemente rejeição doutrinária:
"(...) O Conciliador tem como função apenas presidir, sob orientação do juiz, a tentativa de conciliação entre as partes, como auxiliar da Justiça que é, nos limites exatos da lei. Não há possibilidade que interfira, por exemplo, na tentativa de transação, já que esta implica imposição de pena, matéria exclusivamente de ordem pública a cargo do Ministério Público e do juiz. Violar-se-ia com a sua interferência preceito constitucional (art. 5o., LIII da CF) (...) A função do conciliador, portanto, é meramente administrativa, embora se insira no quadro da política judiciária e de racionalização da justiça, com a participação comunitária desejável em uma sociedade democrática e pluralista." (5) (MIRABETE, JÚLIO FABBRINI. "JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS", Atlas, 3a. Edição, 1998, pág. 76.)
"A participação dos conciliadores na audiência prevista pelo art. 72 da lei cessa com o encerramento da fase de reparação civil dos danos entre ofensor e ofendido, qualquer que seja o seu resultado." (6) ( Confederação Nacional do Ministério Público, conclusão nr. 11)
"Tanto o Juiz como o Conciliador poderão conduzir a conciliação. Ressalte-se, porém que este não tem a função jurisdicional e, portanto, não poderá homologar acordo e nem transação penal, tarefa exclusiva daquele." (7)( TEÓFILO NETO, MÁRIO PARENTE e MELO, JOSÉ MARIA. "LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS COMENTADA". ED. JURUÁ, 1a. Edição, 1997, pág. 102.)
"(...) Concluímos que, de jure constituto, o conciliador atuará apenas na área de satisfação do dano. Se o legislador criou dois institutos, conciliação (para a satisfação dos danos) e transação (para a aplicação da pena não privativa de liberdade), e se confiriu ao juiz ou conciliador a tarefa de conduzir a conciliação, por óbvio ficará ele arredado da transação, mesmo porque, nesta, formulada a proposta, cumpre ao autor do fato dizer se a aceita ou não, podemos, conforme vimos, formular uma contraproposta. Por certo que deve ser assessorado pelo Advogado que tiver, ou lhe for nomeado, não devendo ter o conciliador, nessa fase, qualquer participação". (8) (TOURINHO FILHO, FERNANDO DA COSTA. "COMENTÁRIOS À LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS.", Ed. SARAIVA, 2000, pág. 81).
Considerados os aspectos aqui enfocados, advém o questionamento quanto aos efeitos gerados pela atuação do conciliador nos moldes acima relatados.
A resposta para tal questionamento é simples: referida atuação não gera nenhum efeito, analisada a questão sob a luz da doutrina referente aos vícios processuais.
De acordo com os ensinamentos mencionados, os vícios processuais podem ser classificados em: a) irregularidades; b) nulidades relativas; c) nulidades absolutas e d) inexistência.
Em resumido comentário, apenas para fins ilustrativos, tem-se que as irregularidades desatendem exigências formais, sem qualquer relevância; as nulidades relativas tem o condão de invalidar o ato praticado, uma vez demonstrado efetivo prejuízo e respectiva argüição do vício no momento processual oportuno; as nulidades absolutas ofendem diretamente ao Texto Constitucional, prescindindo de alegação pelos litigantes, jamais precluindo e podendo ser reconhecida de ofício em qualquer fase processual.
O ato inexistente, por sua vez, "é aquele que não reúne elementos sequer para existir como ato jurídico. São os chamados não-atos, como, por exemplo, a sentença sem dispositivo ou assinada por quem não é juiz.
Ao contrário da nulidade (relativa ou absoluta), a inexistência não precisa ser declarada pelo juiz, bastando que se ignore o ato e tudo o que foi praticado em seqüência, pois o que não existe é o ‘nada’, e o ‘ nada’ não pode provocar coisa alguma." [9] (CAPEZ, FERNANDO. "CURSO DE PROCESSO PENAL", Saraiva, 8ª. Ed., 2002, págs. 627/630)
Inobstante, entendo que mesmo inexistente, o ato praticado poderá vir a gerar efeito de natureza penal, em face da possibilidade da consumação do crime tipificado no art. 328 do CPB, qual seja, o de usurpação de função pública.
De fato, segundo magistério de Damásio de Jesus [10], ( JESUS, DAMÁSIO DE. "CÓDIGO PENAL ANOTADO". SARAIVA, 4ª. ed., 1994, pág. 838/839.) trata-se de conduta delituosa que pode ser cometida por qualquer pessoa, inclusive por funcionário público que exerce função que não lhe compete, como entendo ser o caso. A consumação se dá pela realização de pelo menos um ato oficial inerente à função pública, seja ela gratuita ou remunerada, mas necessário se faz ressaltar que sendo o dolo um dos elementos do tipo, é necessário que haja vontade livre e consciente de usurpar a função pública, devendo o sujeito ter plena consciência de que está realizando um comportamento funcional que não lhe é permitido. [11]
Com base em tal raciocínio, creio, inobstante, que a conduta delituosa em questão dificilmente restará configurada, eis que não há como se supor que alguém que esteja a serviço da administração da Justiça tenha por intuito cometer ilícitos no exercício de tal mister, de forma intencional e que, casos da espécie, que possam estar ocorrendo ou mesmo que já tenham ocorrido, não configuraram o delito em questão à falta do elemento subjetivo do tipo.
A atuação dos conciliadores no âmbito dos Juizados Especiais veio, de forma inquestionável, servir de elo de ligação entre o Poder Judiciário e o povo, sendo conveniente, transcrever trecho da obra do Prof. Fernando da Costa Tourinho Filho, o qual declara: "Se a Justiça emana do povo, nada mais salutar que entregar-lhe esa parcela de poder. E, as vezes, as pessoas do povo, desconhecedoras do texto legal, têm mais habilidade para encontrar uma solução ou saída para determinadas situações. O Juiz, sempre preso à tessitura da lei, já não teria tanta liberdade. Ou para usar o jargão popular: faltar-lhe-ia ‘ jogo de cintura’... Assim, teremos um sistema político bem participativo, permitindo-se aos cidadãos integrar-se direta e pessoalmente em um dos três poderes em que se triparte a soberania nacional. A participação popular na administração da Justiça é por demais benéfica, pois o estranho às lides forenses tem muito mais liberdade de agir,. De sugerir composição, o que, muitas vezes, faltaria àquele acostumado a seguir os ditames da lei".(TOURINHO FILHO, FERNANDO DA COSTA. "COMENTÁRIOS À LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS". SARAIVA, 2000, pág. 83)
Por fim, entendo por oportuno ressaltar que a pretensão aqui esposada tem por objetivo unicamente alertar, bem como trazer a lume um aspecto que deve ser observado de forma atenta pelos aplicadores do direito no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, de forma a evitar que prejuízos das mais variadas ordens venham a ocorrer, acarretando ainda mais danos à já tão arranhada imagem da Justiça.
Notas
01. GRINOVER, ADA PELLEGRINI e outros. " JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS", RT, pág. 118.
02. Art. 328. Usurpar o exercício de função pública:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos, e multa.
03. No dia e hora designados para a audiência de instrução e julgamento, se na fase preliminar não tiver havido possibilidade de tentativa de conciliação e de oferecimento de proposta pelo Ministério Público, proceder-se-á nos termos dos artigos 72, 73, 74 e 75 desta Lei.
04. § 1º. Todas as provas serão produzidas na audiência de instrução e julgamento, podendo o Juiz limitar ou excluir as que considerar excessivas, impertinentes ou protelatórias.
05. MIRABETE, JÚLIO FABBRINI. "JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS", Atlas, 3ª. Edição, 1998, pág. 76.
06. Confederação Nacional do Ministério Público, conclusão nr. 11.
07. TEÓFILO NETO, MÁRIO PARENTE e MELO, JOSÉ MARIA. "LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS COMENTADA". ED. JURUÁ, 1ª. Edição, 1997, pág. 102.
08. TOURINHO FILHO, FERNANDO DA COSTA. " COMENTÁRIOS À LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS.", Ed. SARAIVA, 2000, pág. 81.
09. CAPEZ, FERNANDO. "CURSO DE PROCESSO PENAL", Saraiva, 8ª. Ed., 2002, págs. 627/630
10. JESUS, DAMÁSIO DE. "CÓDIGO PENAL ANOTADO". SARAIVA, 4ª. ed., 1994, pág. 838/839.
11. Idem, idem.