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Consentimento da vítima nos crimes sexuais

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24/01/2004 às 00:00
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VI – Conclusão.

Conforme mencionado no intróito do presente trabalho, o âmbito de discussão da presunção de violência nos crimes sexuais é bastante amplo, crítico e desafiador. Nesse contexto, nos deparamos com uma legislação e interpretações obsoletas, que não mais atendem aos anseios de uma sociedade pluralista e laica, como a brasileira. Em razão disso, o espírito crítico foi o norte que se procurou seguir, para que se pudesse chegar a uma solução minimamente satisfatória.

Nessa linha de raciocínio, a primeira conclusão a que se chega é a da premente necessidade de reforma na legislação dos crimes sexuais no Brasil: quer para incluí-la entre os crimes contra a liberdade individual, quer para descriminalizar algumas condutas (como a do rapto consensual, v. g.), quer para solucionar, de uma vez por todas o problema da presunção de violência contra menores e alienados mentais.

Sobre essa última perspectiva, Luiz Vicente Cernicchiaro [16] acredita que deveríamos copiar o direito alemão e estabelecer um tipo próprio para o crime sexual cometido contra menores de quatorze anos, eliminando, assim, apenas o erro da presunção de violência, mas mantendo, a meu ver, o equívoco de não se permitir que, em algumas hipóteses, nas quais a (o) adolescente se encontre madura para consentir validamente na prática de atos sexuais, o juiz possa fazer um juízo crítico acerca do consentimento da (o) menor (como no exemplo dado supra, em que um casal de namorados menores pratica atos sexuais conscientemente). Deve-se, então, inserir-se um parágrafo único (ou mesmo um novo artigo substitutivo ao 224) nos artigos 213 e 214 do Código Penal, com a seguinte redação: "Equipara-se à violência sexual, o consentimento inválido da vítima". Com essa redação, acabar-se-ia, de vez, com as presunções de violência e permitir-se-ia que o juiz, de forma absolutamente justificada e motivada, analisasse as particularidades de cada caso, podendo, sem a utilização de critério morais ou religiosos, conformar cada hipótese aos princípios constitucionais e penais modernos. Tutela-se, portanto, tanto os menores incapazes de consentir, quanto os alienados mentais e os que não pudessem oferecer resistência.

Não se fale, nessa hipótese levantada, que se estaria conferindo poderes em demasia ao juiz, porquanto ele está adstrito juridicamente às partes (em especial ao Ministério Público), que, diante de uma irregularidade, podem recorrer, bem como aos princípios constitucionais. Assim, ganham relevância os princípios norteadores da Constituição, pois têm a função de (de)limitar tanto a produção legislativa quanto a aplicação das normas. O que equivale a dizer: a fim mesmo de evitar um subjetivismo arbitrário por parte daquele que possui o poder de aplicação da norma, "os princípios, numa relação dialética com a realidade, num debate de compromisso" [17], devem atuar como nortes interpretativos-concretizadores, em busca da solução mais adequada.

Contudo, enquanto a reforma legislativa não é uma realidade, acredito que a solução apresentada acima é a que melhor se coaduna com uma interpretação crítica, respondendo aos anseios sociais, bem como aos princípios constitucionais e penais; promovendo justiça sem, contudo, esquecer-se da tutela de bens jurídicos essenciais à boa convivência em sociedade.


VII – Bibliografia

BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2002.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1996.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Curso de Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 3ª edição, reimpressão, 1999.

DELMANTO, Celso. DELMANTO, Roberto. DELMANTO JR, Roberto. DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado. São Paulo: Renovar, 5ª edição, 2000.

FRANCO, Alberto Silva. STOCO, Rui. Coordenadores. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 7ª edição, 2001.

FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. Notas sobre a lei 8072/90. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991.

FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. São Paulo: Malheiros, 1998.

JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal Anotado. São Paulo: Saraiva, 10ª edição, 2000.

GOMES, Luiz Flávio. Presunção de violência nos crimes sexuais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 6ª edição, 1997.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Volume 2. São Paulo: Atlas, 6ª edição, 1991.

—. Código Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 1999.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2ª edição, 2000.


Notas

01. FRANCO, Alberto Silva. STOCO, Rui. Coordenadores. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT. 7ª edição, 2001, p. 3059.

02. Ob. cit. p. cit.

03. FRANCO, Alberto Silva Franco. Crimes Hediondos. Notas sobre a Lei 8072/90. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 150/151.

04. Nesse momento, cabe um parêntesis para reforçar o anacronismo do vigente Código Penal no que se refere à essa espécie de crimes. São tidas como típicas as condutas do rapto consensual, da sedução, da posse sexual mediante fraude e do atentado violento ao pudor mediante fraude, ainda que a vítima, explicitamente concorde com a relação sexual. Tais crimes, a meu ver, são absolutamente obsoletos e não resistem a uma análise crítica, à luz da sociedade atual, dos modernos princípios do Direito Penal (especialmente o da lesividade) e da Constituição.

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05. Cf. MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Vol. II. São Paulo: Atlas, 6ª edição, 1991, p. 453/454.

06. Cf. MRABETE. Ob. cit. p. cit

Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 6ª edição, 1997, p. 289.

07. Cf. GOMES, Luiz Flávio. Presunção de violência nos crimes sexuais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 38 e ss.

08. Ob. cit. p 44.

09. Ob. cit. p. 75

10. Nesse momento, cabe uma distinção entre abuso sexual e violência sexual: na primeira não existe violência real, mas consentimento inválido da vítima para a prática de atos sexuais, enquanto na segunda, como o próprio nome indica, há a prática de violência real.

11. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. COELHO, Inocêncio Mártires. MENDES, Gilmar Ferreira. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 18 e 19.

12. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2ª edição, 2000.

13. Segundo Lenio, a doutrina brasileira, de uma forma geral, ainda atua sob uma perspectiva segundo a qual o intérprete deve buscar, através de um processo lógico, um sentido (único e verdadeiro) que paira subjacente à norma. A busca de "essências" e da "correta" exegese, conduz ao que ele denomina "fetichização do discurso jurídico": sempre remetendo à realidade, a dogmática tradicional oculta as condições de produção do sentido do discurso. A lei é vista como uma "lei-em-si", abstraída das condições sociais que a produziram, "como se a sua condição de lei fosse uma propriedade ‘natural’".

14. GADAMER, Hans-George. Apud STRECK, Lenio Luiz. Ob. cit. p. 60.

15. CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Apud GOMES, Luiz Flávio. Ob cit.

16. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 112.

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Sobre o autor
Gustavo Teixeira Nacarath

Acadêmico do curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora- MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NACARATH, Gustavo Teixeira. Consentimento da vítima nos crimes sexuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 202, 24 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4718. Acesso em: 26 abr. 2024.

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