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Consentimento da vítima nos crimes sexuais

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24/01/2004 às 00:00

Resumo:

"Não gosto de trabalhar. Preferia vagabundear e pensar em todas as coisas boas que podem ser feitas. Não gosto de trabalhar — nenhum homem gosta —, mas gosto do que existe no trabalho — a oportunidade de encontrar-se a si próprio. Sua própria realidade — para você mesmo e não para os outros —, aquilo que nenhuma pessoa jamais poderia saber. Eles podem ver o resultado final, mas nunca dizer o que realmente significa".

Joseph Conrad

I – Índice.: I – Índice; II – Introdução; III – Breve nota sobre os crimes contra os costumes; IV – O consentimento do ofendido nos crimes sexuais; V – Análise crítica das diferentes "teorias" apresentadas; VI – Uma "nova" proposta;VII – Conclusão;VIII – Bibliografia


I – Introdução.

A análise dos crimes sexuais, mais especificamente do consentimento da vítima nesse tipo de crime, oferece rica controvérsia doutrinária e jurisprudencial. Adentrá-la é situar-se num espectro argumentativo que vai desde uma determinada concepção de Hermenêutica até uma análise sociológico-evolutiva dos dispositivos do Código Penal.

De todo modo, o posicionamento crítico, sem cuja observância estaríamos fadados a uma mera repetição do discurso tradicional, deve acompanhar cada etapa do presente trabalho.

Para tanto, precisamos fugir do "senso comum teórico" e aceitarmos, inicialmente, a realidade de que os instrumentos de interpretação são plurívocos e que todos nós, enquanto aplicadores do Direito, possuímos a capacidade de trabalhar — numa perspectiva criativa e criadora — com os inúmeros sentidos que esses podem ganhar.

Nesse contexto, perpassar-se-á as tradicionais posições dogmáticas e jurisprudenciais acerca do tema para, posteriormente, apresentar as opiniões de vanguarda sobre o assunto. Ao final, concluir-se-á com a apresentação de uma "nova" proposta, calcada em uma hermenêutica liberta do consenso forçado que a dogmática jurídica põe à nossa "disposição".


II – Breve nota sobre os crimes contra os costumes.

O legislador pátrio no Título VI da Parte Especial do Código Penal (artigos 213 a 249) estabeleceu a tutela jurídica dos "costumes". Dentro desse universo amplíssimo, que envolve desde crimes contra a liberdade sexual até aqueles contra a filiação e o pátrio poder (poder familiar, segundo a Lei 10.406/2002), interessa ao presente trabalho aqueles que se convencionou chamar de "crimes sexuais", tais como o estupro, o atentado violento ao pudor, posse sexual mediante fraude, o atentado ao pudor mediante fraude, a sedução, a corrupção de menores e o rapto (definidos nos artigos 213 a 222 do Código Penal), tanto em suas formas qualificadas quanto presumidas (Cf. arts. 223 e 224 do Código Penal). Sendo ainda mais preciso, os crimes de estupro e atentado violento ao pudor são os que se aproximam mais do objeto do presente, haja vista que, além de serem os mais comuns, são aqueles que envolvem violência que, em tese, pode ser real ou ficta — sendo esta última alvo da principal polêmica a ser abordada neste trabalho: a da possibilidade de a vítima de crimes em que há violência presumida consentir com a prática de atos sexuais.

Fogem do âmbito de pesquisa do presente trabalho, então, análises conceituais, subjetivas (sujeitos ativo e passivo), etc., dos delitos em tela, na medida em que, conforme indicado acima e no intróito, o que se visa a discutir é o consentimento da vítima nos crimes sexuais, mais especificamente quando se tratar da menor de 14 anos, hipótese em que, segundo o art. 224, a, do Código Penal, a violência é presumida.

Feita essa pequena ressalva técnica, urgem esclarecimentos acerca da visão que se pretende dar aos crimes sexuais no presente trabalho: um Estado laico, democrático e pluralista não pode pretender ter uma visão moralizadora e, quiçá, catequizadora da sexualidade. A sexualidade hoje, em pleno século XXI, deve ser interpretada e "permitida" em suas diferentes formas, o que significa dizer que o diferente deve, necessariamente, ser admitido. Não por um beneplácito do intérprete ou do legislador, mas por imperativos constitucionais de liberdades, de proibição de quaisquer tipos de discriminação, etc. Nesse contexto, concordamos com o texto extraído do Volume II do livro "Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial", organizado por Alberto Silva Franco e Rui Stoco: "Não há que se cogitar, na atualidade, [um conceito] de sexualidade fora do espaço da pessoa humana, não cabendo delimitação de sua área de significado segundo parâmetros éticos, de moralidade pública ou de bons costumes". Assim, "só não pode encontrar suporte [jurídico] a sexualidade exercida com coerção ou explorada".

Tal redimensionamento do que seja a liberdade sexual está de tal modo a inspirar o legislador e o aplicador do direito que, nas legislações penais mais recentes, os crimes sexuais têm sido definidos dentro do título destinado aos crimes contra a pessoa, porquanto violam uma das esferas da liberdade individual (tal como o seqüestro viola a liberd

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

VI – Conclusão.

Conforme mencionado no intróito do presente trabalho, o âmbito de discussão da presunção de violência nos crimes sexuais é bastante amplo, crítico e desafiador. Nesse contexto, nos deparamos com uma legislação e interpretações obsoletas, que não mais atendem aos anseios de uma sociedade pluralista e laica, como a brasileira. Em razão disso, o espírito crítico foi o norte que se procurou seguir, para que se pudesse chegar a uma solução minimamente satisfatória.

Nessa linha de raciocínio, a primeira conclusão a que se chega é a da premente necessidade de reforma na legislação dos crimes sexuais no Brasil: quer para incluí-la entre os crimes contra a liberdade individual, quer para descriminalizar algumas condutas (como a do rapto consensual, v. g.), quer para solucionar, de uma vez por todas o problema da presunção de violência contra menores e alienados mentais.

Sobre essa última perspectiva, Luiz Vicente Cernicchiaro [16] acredita que deveríamos copiar o direito alemão e estabelecer um tipo próprio para o crime sexual cometido contra menores de quatorze anos, eliminando, assim, apenas o erro da presunção de violência, mas mantendo, a meu ver, o equívoco de não se permitir que, em algumas hipóteses, nas quais a (o) adolescente se encontre madura para consentir validamente na prática de atos sexuais, o juiz possa fazer um juízo crítico acerca do consentimento da (o) menor (como no exemplo dado supra, em que um casal de namorados menores pratica atos sexuais conscientemente). Deve-se, então, inserir-se um parágrafo único (ou mesmo um novo artigo substitutivo ao 224) nos artigos 213 e 214 do Código Penal, com a seguinte redação: "Equipara-se à violência sexual, o consentimento inválido da vítima". Com essa redação, acabar-se-ia, de vez, com as presunções de violência e permitir-se-ia que o juiz, de forma absolutamente justificada e motivada, analisasse as particularidades de cada caso, podendo, sem a utilização de critério morais ou religiosos, conformar cada hipótese aos princípios constitucionais e penais modernos. Tutela-se, portanto, tanto os menores incapazes de consentir, quanto os alienados mentais e os que não pudessem oferecer resistência.

Não se fale, nessa hipótese levantada, que se estaria conferindo poderes em demasia ao juiz, porquanto ele está adstrito juridicamente às partes (em especial ao Ministério Público), que, diante de uma irregularidade, podem recorrer, bem como aos princípios constitucionais. Assim, ganham relevância os princípios norteadores da Constituição, pois têm a função de (de)limitar tanto a produção legislativa quanto a aplicação das normas. O que equivale a dizer: a fim mesmo de evitar um subjetivismo arbitrário por parte daquele que possui o poder de aplicação da norma, "os princípios, numa relação dialética com a realidade, num debate de compromisso" [17], devem atuar como nortes interpretativos-concretizadores, em busca da solução mais adequada.

Contudo, enquanto a reforma legislativa não é uma realidade, acredito que a solução apresentada acima é a que melhor se coaduna com uma interpretação crítica, respondendo aos anseios sociais, bem como aos princípios constitucionais e penais; promovendo justiça sem, contudo, esquecer-se da tutela de bens jurídicos essenciais à boa convivência em sociedade.


VII – Bibliografia

BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2002.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1996.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Curso de Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 3ª edição, reimpressão, 1999.

DELMANTO, Celso. DELMANTO, Roberto. DELMANTO JR, Roberto. DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado. São Paulo: Renovar, 5ª edição, 2000.

FRANCO, Alberto Silva. STOCO, Rui. Coordenadores. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 7ª edição, 2001.

FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. Notas sobre a lei 8072/90. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991.

FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. São Paulo: Malheiros, 1998.

JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal Anotado. São Paulo: Saraiva, 10ª edição, 2000.

GOMES, Luiz Flávio. Presunção de violência nos crimes sexuais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 6ª edição, 1997.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Volume 2. São Paulo: Atlas, 6ª edição, 1991.

—. Código Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 1999.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2ª edição, 2000.


Notas

01. FRANCO, Alberto Silva. STOCO, Rui. Coordenadores. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT. 7ª edição, 2001, p. 3059.

02. Ob. cit. p. cit.

03. FRANCO, Alberto Silva Franco. Crimes Hediondos. Notas sobre a Lei 8072/90. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 150/151.

04. Nesse momento, cabe um parêntesis para reforçar o anacronismo do vigente Código Penal no que se refere à essa espécie de crimes. São tidas como típicas as condutas do rapto consensual, da sedução, da posse sexual mediante fraude e do atentado violento ao pudor mediante fraude, ainda que a vítima, explicitamente concorde com a relação sexual. Tais crimes, a meu ver, são absolutamente obsoletos e não resistem a uma análise crítica, à luz da sociedade atual, dos modernos princípios do Direito Penal (especialmente o da lesividade) e da Constituição.

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05. Cf. MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Vol. II. São Paulo: Atlas, 6ª edição, 1991, p. 453/454.

06. Cf. MRABETE. Ob. cit. p. cit

Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 6ª edição, 1997, p. 289.

07. Cf. GOMES, Luiz Flávio. Presunção de violência nos crimes sexuais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 38 e ss.

08. Ob. cit. p 44.

09. Ob. cit. p. 75

10. Nesse momento, cabe uma distinção entre abuso sexual e violência sexual: na primeira não existe violência real, mas consentimento inválido da vítima para a prática de atos sexuais, enquanto na segunda, como o próprio nome indica, há a prática de violência real.

11. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. COELHO, Inocêncio Mártires. MENDES, Gilmar Ferreira. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 18 e 19.

12. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2ª edição, 2000.

13. Segundo Lenio, a doutrina brasileira, de uma forma geral, ainda atua sob uma perspectiva segundo a qual o intérprete deve buscar, através de um processo lógico, um sentido (único e verdadeiro) que paira subjacente à norma. A busca de "essências" e da "correta" exegese, conduz ao que ele denomina "fetichização do discurso jurídico": sempre remetendo à realidade, a dogmática tradicional oculta as condições de produção do sentido do discurso. A lei é vista como uma "lei-em-si", abstraída das condições sociais que a produziram, "como se a sua condição de lei fosse uma propriedade ‘natural’".

14. GADAMER, Hans-George. Apud STRECK, Lenio Luiz. Ob. cit. p. 60.

15. CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Apud GOMES, Luiz Flávio. Ob cit.

16. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 112.

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Sobre o autor
Gustavo Teixeira Nacarath

Acadêmico do curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora- MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NACARATH, Gustavo Teixeira. Consentimento da vítima nos crimes sexuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 202, 24 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4718. Acesso em: 5 jan. 2025.

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