STF: conselhos de fiscalização de classe possuem legitimidade ativa para propor arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF)?

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Esse artigo visa analisar a ADPF nº 264, a fim de verificar as razões pelas quais o STF decidiu que os conselhos de fiscalização de classe não possuem legitimidade ativa "ad causam" para propor a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

1. Considerações Iniciais acerca da ADPF.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é instituto inédito no direito brasileiro e nasce como uma vanguardista criação do Constituinte Originário de 1988.

Cumpre, aqui, sem maiores delongas, registrar que a referida ação constitucional (ADPF) é regida pela Lei nº  9.882/1999 e veio possibilitar um controle concentrado-incidental de constitucionalidade, permitindo a resolução abreviada de  controvérsias constitucionais relevantes, inicialmente deduzidas em qualquer processo judicial concreto de natureza subjetiva, impedindo que a “quaestio juris” somente seja concluída após anos e mais anos de tramitação do processo individual.

A ADPF é ação de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal (art. 102, §1º, da CRFB). A legitimidade ativa para a propositura da ADPF é a mesma prevista no art. 103 da CFRB para a ADI e ADC (art. 2º, I, da Lei 9.882/99). A participação do amicus curiae no processo da ADPF, mercê da inexistência de previsão normativa, tem sido admitida por analogia à Lei 9.868/1999.

Não é a violação a qualquer dispositivo constitucional que permite a propositura de uma ADPF: a violação tem que ser perpetrada em face de um preceito fundamental da CF/88, ou seja, hão de ser violados aqueles preceitos (regras ou princípios) – implícitos ou explícitos – que preservam a identidade da CF como uma norma garantidora do Estado Democrático de Direito; por isso são chamados de “fundamentais”.

São, pois, preceitos fundamentais, os direitos e garantias fundamentais previstos no corpo da Constituição, as cláusulas pétreas, os princípios constitucionais sensíveis etc. Vale frisar que, de acordo com a jurisprudência do STF, cabe exclusivamente à referida Corte Suprema, enquanto soberana e definitiva intérprete da Carta Constitucional, indicar quais são os seus preceitos fundamentais.

De suma importância perceber que, no campo jurídico-positivo, não há normas constitucionais “mais fundamentais que outras”; o fato de a ADPF ter como parâmetro apenas preceitos fundamentais da Constituição Federal quer dizer que há normas no corpo na CF que são VALORATIVAMENTE (E NÃO JURIDICAMENTE) mais relevantes que outras, também constitucionais; o campo da hierarquia restringe-se apenas ao campo axiológico, pois, do ponto de vista jurídico, todas as normas constitucionais possuem o mesmo ‘status’. Essa observação não passou despercebida pelo notável constitucionalista, Dirley da Cunha Júnior:

“Vale dizer, sem embargo da irrepreensível constatação dogmática de que todas as normas de uma Constituição encerram um mesmo imperativo e, em consequência disto, situam-se num mesmo plano hierárquico-normativo, as normas constitucionais distinguem-se quanto aos valores que carregam, sendo admissível falar, na hipótese, em hierarquia axiológica entre as normas de uma mesma Constituição. Assim, impõe-se reconhecer a existência de preceitos normativos da Constituição que, em razão dos valores superiores que consagram, são mais fundamentais que outros. Por conseguinte, dada a fundamentalidade destes preceitos, o constituinte optou por lhes conferir proteção especial com a criação de um mecanismo próprio” (JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. 9ª Ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2015, p. 361).

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) pode se dar em duas espécies: autônoma e incidental.

A argüição autônoma tem o objetivo de evitar (ou reparar) lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público (art. 1º, caput, da Lei 9.882/99). Trata-se de uma ação típica do controle concentrado-abstrato, proposta diretamente perante o Supremo Tribunal Federal, independentemente de qualquer controvérsia, cuja pretensão é deduzida em juízo mediante um processo constitucional objetivo, com a principal finalidade de tutelar os preceitos fundamentais ameaçados ou lesados por conduta do Poder Público.

A argüição incidental, por sua vez, não é uma ação autônoma, vez que surge no curso de uma demanda judicial concretamente deduzida, em razão de uma controvérsia constitucional relevante (art. 1º, Parágrafo Único, I, da Lei 9.882/99). A principal finalidade da argüição incidental é apressar a manifestação do STF acerca de questões constitucionais discutidas em processos concretos, que só chegariam ao conhecimento do Pretório Excelso muito tempo depois (através da estreita via do Recurso Extraordinário).

O Supremo Tribunal Federal já consolidou o entendimento segundo o qual as partes envolvidas na controvérsia judicial não possuem legitimidade ativa “ad causam” para propor a arguição incidental.

Possível concluir que, no caso da ADPF incidental, a controvérsia constitucional relevante se origina em um processo judicial concreto, no qual está, aí sim, sendo discutido interesses subjetivos das partes envolvidas. No caso de um dos co-legitimados à propositura da arguição entender que a controvérsia constitucional provocada nos processos concretos é relevante, poderá, então, ingressar com a ADPF perante o STF.

Na argüição incidental há uma conjugação de efeitos atinentes ao controle concreto e ao controle abstrato de constitucionalidade; consequentemente, a decisão final do STF terá duas implicações:

a) ENDOPROCESSUAL: faz com que a resolução da  questão constitua antecedente lógico do julgamento da própria causa que deu causa à arguição, vinculando as partes e o órgão judicante;

b) EXTRAPROCESSUAL: decorre das eficácias “contra todos” e vinculante da decisão proferida pelo Pretório Excelso, fazendo com que a decisão proferida no julgamento da ADPF atinja todos aqueles que não participaram da relação jurídico-processual, bem como o Poder Executivo e os demais órgãos do Poder Judiciário.

Por último, impende salientar que a Lei 9.882/1999, em seu art. 4º, §1º, dispõe que “não será admitida arguição de descumprimento de preceito quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade”. Eis o polêmico caráter subsidiário da ADPF:

“Sob a inspiração dos direitos alemão e espanhol, que condicionam a propositura, respectivamente, do Verfassungsbeschwerde e do recurso de amparo ao prévio esgotamento das vias judiciais, o legislador brasileiro insculpiu a regra segundo a qual “não será admitida arguição de descumprimento de preceito quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade (Lei 9.882/99, art. 4º, §1º).

Tal disposição consagra o caráter subsidiário da arguição de descumprimento de preceito fundamental no sistema de controle concentrado de constitucionalidade, em face do qual a arguição só pode ser admitida na hipótese de inexistir, no sistema jurídico, outro meio eficaz e célere capaz de sanar, completa, eficaz e definitivamente, a lesão a preceito constitucional fundamental. Essa regra, no  entanto, deve ser compreendida adequadamente, sob pena de se esvaziar o instituto em pauta e incidir, via de consequência, em manifesta inconstitucionalidade” ((JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. 9ª Ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2015, p. 361).  

Eis, em apertada síntese, a arguição de descumprimento de preceito fundamental (a questão acerca da subsidiariedade da ADPF, por se tratar de tema que demanda maior aprofundamento e fugir ao propósito do presente trabalho, não será aqui trabalhada, em que pese o tema ser de suma importância para a real compreensão do alcance da referida ação de controle concentrado).

2. O julgamento da ADPF nº 264: A ausência de legitimidade ativa dos Conselhos de Classe para a propositura de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

Como visto anteriormente, tanto arguição autônoma quanto a arguição incidental somente podem ser propostas pelos legitimados arrolados no art. 103, incisos I ao IX, da CRFB, a saber: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V -  o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

No julgamento da ADPF nº 264, o Ministro Dias Toffoli negou seguimento à referida ação, a qual fora ajuizada pelo Conselho Federal de Corretores de Imóveis (COFECI) contra alguns dispositivos do Decreto-Lei 9.760/46 que definem e conceituam como bens da União as ilhas costeiras e seus “contornos”.

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O referido Ministro, relator da aludida ADPF, observou que, de acordo com a jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal, conselhos de fiscalização de classe não possuem legitimidade ativa para intentar  as ação de controle concentrado de constitucionalidade -  Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI),  Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO).

A jurisprudência do STF vaticina que os conselhos de fiscalização de classe não se enquadram como “entidades de classe de âmbito nacional” para fins de propositura das ações de controle concentrado de constitucionalidade. Isso porque os  referidos conselhos de fiscalização ostentam a natureza jurídica de ‘autarquias’; tais conselhos detêm, portanto, personalidade jurídica de direito público e exercem poder de polícia,  ou seja, sua função precípua não reside na defesa dos interesses dos membros da respectiva categoria ou classe de profissionais, e sim na fiscalização das atividades profissionais.  

Vejamos a Ementa da ADPF nº 264:

EMENTA Agravo regimental em arguição de descumprimento de preceito fundamental. Conselho Federal de Corretores de Imóveis - COFECI. Entidade que não se enquadra ao conceito de entidade de classe. Ilegitimidade ativa. Agravo a que se nega provimento. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal fixou-se no sentido de que os Conselhos de Fiscalização Profissional não detêm legitimidade ativa para as ações de controle concentrado de constitucionalidade, por não se enquadrarem no conceito de entidade de classe de âmbito nacional (art. 103, inc. IX, da Constituição Federal). Precedentes: ADC 34, Relator o Ministro Luiz Fux, Dje 12/8/14; ADI 3993, Relatora a Ministra Ellen Gracie, julgada em 23/05/08, Dje de 29/05/08; ADI 1997, Relator o Ministro Marco Aurélio, 8/6/99; ADI 1928, Relator o Ministro Sydney Sanches, DJ de 19/2/99; ADI 641-MC/DF Relator o Ministro Néri da Silveira, Relator p/ acórdão o Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJ de 12/3/93. 2. Não há razão para se revisar a jurisprudência sedimentada da Corte. Os conselhos de fiscalização profissional têm como função precípua o controle e a fiscalização do exercício das profissões regulamentadas, exercendo, portanto, poder de polícia, atividade típica de Estado, razão pela qual detêm personalidade jurídica de direito público, na forma de autarquias. Sendo assim, tais conselhos não se ajustam à noção de entidade de classe, expressão que designa tão somente aquelas entidades vocacionadas à defesa dos interesses dos membros da respectiva categoria ou classe de profissionais. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.

A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB – é a única exceção a essa regra, pois a sua legitimidade decorre de previsão constitucional explícita (art. 103, VII, da CRFB).

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Sobre o autor
Matheus Augusto de Almeida Cardozo

Defensor Público do Estado de Pernambuco, titular da Vara Privativa do Tribunal do Júri da Comarca de Petrolina.<br><br>Ex-Defensor Público do Estado de Goiás.<br><br>Ex-Analista Superior Jurídico da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.<br><br>Pós-graduado em Ciências Criminais pelo JusPodivm.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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