1. INTRODUÇÃO
Pretende-se fazer considerações especificamente sobre o suprimento da outorga de consentimento tendo em conta sonegação de autorização para viagem ao exterior, abordando aspectos do direito material e do direito processual, com ênfase na "interpretação conforme a Constituição".
2. ANOTAÇÕES SOBRE O DIREITO MATERIAL
O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a possibilidade de suprimento de autorização para viagem ao exterior no caso de um dos pais se negar a concedê-la (art. 84), tratando-se de ato de império (sujeição do jurisdicionado) e de vontade (da lei) a ser praticado pelo Juiz da Infância e Juventude.
Importa dizer, contudo, que a atuação do Estado e da sociedade no que tange à educação e à criação dessas pessoas jovens é subsidiária, o que se demonstra facilmente, desde que se atente para o destaque dado à família, pela Carta Magna, na organização social.
Por outro lado, o art. 16 do ECA diz que toda criança ou adolescente tem direito de ser criado e educado no seio de sua família e o art. 22 desse texto deixa claro que "aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, o que evidencia a excepcionalidade da autorização judicial em caso de discordância.
O art. 98,II, do ECA traça um bom parâmetro interpretativo no que tange à permissão da intervenção estatal, considerando que as medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos dessa lei forem ameaçados ou violados por falta, omissão ou abuso dos pais.
Assim, um primeiro norte interpretativo é não considerar regra esse suprimento de autorização judicial.
É preciso, pois, ir adiante para fixar algumas diretrizes que indicam limites para essa intervenção.
Os casos em que esse suprimento pode realizar-se devem ser aqueles nos quais a viagem seja necessária (sem a qual haverá prejuízo/falta de outro meio para atingir certo fim) para a criança ou adolescente, como no caso de viagem que tenha a finalidade de propiciar a realização de cirurgia por médico de renome internacional ou para buscar tratamento médico diferenciado.
No caso de viagem ao exterior objetivando o aprimoramento cultural da criança e adolescente (intercâmbios), a rigor, o Estado não deveria intervir, pois a educação e a criação dos filhos, como se disse, cabe, prioritariamente, aos pais, só sendo lícita a intervenção estatal em caso de abuso, nos termos do princípio da proteção integral.
Em suma, pode-se dizer, regra geral, que para ser legítima a intervenção do Estado-Juiz a viagem deve ser necessária e a falta dela implicar em violação dos direitos básicos da criança ou do adolescente. Essa é a interpretação conforme a Constituição do art. 84, do Estatuto, s.m.j.
3. DOS ASPECTOS PROCESSUAIS DA JURISDIÇÃO
A jurisdição, do ponto de vista do cidadão, é o dever-poder atribuído a órgão próprio para dizer o direito em caso concreto, ou mesmo abstratamente, em se tratando de jurisdição constitucional.
Veja-se que esse conceito abrange também a jurisdição penal e casos nos quais, ante a indisponibilidade dos interesses apreciados, não se pode cogitar propriamente de litigantes, ou de conflitos a serem dirimidos extrajudicialmente pelos envolvidos.
TIPOS DE JURISDIÇÃO
Há diversas classificações. Importa no presente estudo a que separa a jurisdição em contenciosa e voluntária.
Em ambos os casos, advirta-se, seu exercício depende de pedido prévio veiculado em demanda contida na petição inicial, ou seja, da processualização de uma pretensão.
Há traços que as distinguem, podendo-se dizer que na jurisdição voluntária permite-se, como regra, o julgamento por equidade, não há coisa julgada, não sendo próprio cogitar-se de lide, pois o que se trás para apreciação judicial são interesses privados cuja realização depende da chancela judicial, ante a indisponibilidade que lhes é pertinente, já que disciplinados por normas de ordem pública. Não há propriamente "partes" no processo, mas sujeitos interessados na adequada realização desses interesse, as quais apresentam opiniões divergentes (há contrariedade, no particular).
DA COMPETÊNCIA
Nos termos do art. 147 a competência será determinada pelo domicílio dos pais ou responsável ou, na falta deles, pelo lugar onde se encontre a criança ou adolescente.
Na hipótese de casais separados o Juiz da infância e juventude do domicílio daquele a quem se atribuiu a guarda.
A alínea "d", do parágrafo único, desse artigo prevê a competência (material) do juiz da infância e juventude para o caso (art. 98,II).
DO PROCESSO JUDICIAL
O processo judicial pode ser visualizado pela realização dos atos que compõem o procedimento, com a peculiaridade de que esse procedimento, no caso, deve realizar-se em contraditório. Evidente que esses atos são realizados por pessoas (ou entes a que o direito atribui capacidade processual), com o que o processo é uma relação jurídica, composta pelas partes/interessados e pelo Juiz.
Nos termos do Estatuto, aos procedimentos regulados nele (perda do pátrio poder, etc) aplicam-se subsidiariamente os dispositivos do CPC.
O art. 153 desse texto legal diz que o Juiz pode deferir de oficio as medidas para as quais não há procedimento previsto no ECA, com ampla liberdade para investigação dos fatos.
O art. 154 do ECA diz que na falta de procedimento específico aplica-se o de outras leis, etc.
É preciso fazer algumas observações:
NECESSIDADE DE PETIÇÃO INICIAL
Evidente que deve haver pedido para a concessão da medida, nos termos da alínea "d", do parágrafo único, do art. 147 do ECA, sendo certo que a demanda deve ser veiculada numa petição inicial, com os requisitos exigidos pelo CPC.
Deve constar na causa de pedir remota fatos que evidenciem a necessidade da viagem e que a sonegação da autorização por um dos pais tem cunho abusivo, lesando direito fundamental básico da criança.
DO PROCEDIMENTO
Nos termos do art. 154 do ECA deve-se aplicar procedimentos previstos em outras leis para as medidas inespecíficas, sendo certo que não há um procedimento específico em outra lei para o suprimento de autorização para viagem, mas há o procedimento geral do CPC para feitos de jurisdição voluntária, devendo ser aplicado.
Aos que pesam que o art. 154 do ECA apenas atribui ampla liberdade na montagem do procedimento no caso de ausência de regulamentação do rito no referido diploma, advirta-se que essa suposta discricionariedade procedimental atribuída ao Juiz da Infância e Juventude não lhe conferiria poderes para desnaturar a aptidão jurídica dos atos de comunicação, de modo que não poderia substituir a citação (efetiva o contraditório ligado ao ato inicial do processo – a demanda contida na exordial) por uma intimação.
Advirta-se que o Constituinte atribuiu competência para legislar sobre direito processual ao legislador federal, de modo que esse entendimento (discricionariedade para montagem do procedimento) não seria expressão de uma interpretação conforme a Constituição.
PROCESSO ADMINISTRATIVO
Não se trata de competência administrativa, pois essa está prevista taxativamente no art. 149, sendo certo que da decisão (sobre autorização para viagem) cabe recurso judicial (apelação).
Mesmo na falta desse dispositivo (art. 149) não seria adequado pensar em um processo administrativo propriamente dito, devendo-se ficar atento para o fato de que nesse tipo de processo o Estado participa tendo em conta interesses próprios (primários) inerentes a relações jurídico-materiais em que atua com poder de império, regidas (por isso mesmo) por normas de direito público, não se podendo cogitar, assim, de imparcialidade.
Na verdade, o Estatuto usa termo inadequado, ou seja, "autorização" ao invés de "suprimento judicial de consentimento", sendo essa imprecisão responsável, também, pelo entendimento de alguns no sentido de que se trata de processo administrativo, no qual não se cogita de citação do interessado.
Seria possível um temperamento da crítica ao entendimento de que o caso dispensa a citação do interessado, como pensam alguns, se essa expressão apenas fosse utilizada como sinônima de processo de jurisdição voluntária, já que divergem os autores sobre se nesse caso há propriamente exercício de atividade jurisdicional no processo.(haveria apenas procedimento).
Em conclusão, o caso é de processo em que se exercita a jurisdição voluntária, aplicando-se regras de ordem pública (irrelevante a vontade, no que disciplinado pela lei), devendo, o Juiz, orientar-se pelo principio da proporcionalidade (necessidade/adequação da medida pleiteada) no julgamento do mérito, nos termos do devido processo legal, tendo liberdade para deferir medida diversa da pedida, pois lhe é lícito julgar por eqüidade, advertindo-se, contudo, que essa discricionariedade, como a do administrador, realiza-se dentro dos ditames do direito.
Importa dizer que o Estatuto diz que o Juiz pode deferir a medida cabível de ofício, de modo que não vigora o princípio da adstrinção.
OBSERVAÇÕES SOBRE A PROVA
No caso de processo cujo objeto é o suprimento judicial de outorga de autorização o que se deve verificar é se a viagem é meio de realização do melhor interesse da criança ou do adolescente, sendo ônus do autor provar a necessidade do deslocamento, bem como a lesão a direito básico da criança que adviria da sonegação, no caso concreto (causa de pedir remota/interesse de agir).
O dispositivo em comento (art. 153) permite ampla liberdade probatória ao juiz, nos moldes já defendidos pela doutrina mais abalizada, antes mesmo do ECA, já que a verdade deve prevalecer, mormente em casos de interesses indisponíveis (isso também acontece no processo penal). Não se deve, pois, cogitar de preclusão, quando o assunto é prova no "Juízo da Infância e Juventude".
SOBRE O CONTEÚDO DA SENTENÇA
A sentença, no caso, tem natureza constitutiva, pois não se trata de caso em que já há prévia vontade declarada pendente apenas de efetivação pelo titular do poder-dever familiar sonegador.
Assim, a despeito de o ECA prevê apenas efeito devolutivo para a apelação, a decisão que julga procedente o feito suprimento judicial de outorga de autorização para viagem apenas tem efeito depois do trânsito em julgado.
DOS RECURSOS
Aplica-se ao feitos de suprimento judicial de outorga para viagem os recursos previstos no CPC.
Assim, da sentença seja terminativa ou definitiva, cabe apelação, no prazo de 10 dias, com efeito devolutivo, em regra. O processamento do recurso se dá no juízo a quo. Não funciona Revisor.
Das decisões interlocutórias cabe agravo de instrumento ou retido, dependendo do caso, no prazo de 10 dias.
É cabível, também, o uso dos embargos de declaração, no prazo de 5 dias da ciência da decisão (inclusive interlocutória).
Podem-se, ainda, interpor os recursos extraordinários, desde que haja violação da lei ou da Cf/88, no prazo de 15 dias, a ser processado no Tribunal de Justiça. Esses recursos serão interpostos na forma retida em se tratando de insurgência contra decisões interlocutórias.
PARTICIPAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
O Ministério Público deve atuar como custus legis em todos os feitos da Infância e Juventude, tendo em conta que se trata de interesses de menores e sendo exigência do próprio Estatuto (pode atuar como autor, em certos casos, como na ação civil pública).
Advirta-se que não é lícito, por evidente, ao Juiz da Infância e Juventude (ou qualquer outro) escolher o Promotor que atuará na fiscalização da correta aplicação do direito (tem acontecido no ES!), sob pena de restar inútil a atuação do parquet. Essa conduta do Magistrado violaria, com escusas pela obviedade, o princípio da separação dos poderes, no que tange à necessária harmonia que deve imperar entre os órgão que exercem as funções estatais, o que requer relacionamento nos termos da Carta Magna e legislação infraconstitucional. No caso, também, o princípio do promotor natural restaria violado, pois a não-aceitação de um membro é contraponto da escolha de outro, mesmo existindo vários remanescentes.
NECESSIDADE DE ADVOGADO
Por outro lado, a necessidade de advogado para a regularidade postulatória resta expressa no Estatuto, de modo que aqueles que não podem pagar as despesas da contratação devem ser assistidos pela Defensoria Pública (absurda a omissão do Estado no que tange ao aparelhamento e ampliação do quadro funcional desse órgão), podendo o juiz nomear um curador à lide, se for o caso.
4. ALGUMAS CONCLUSÕES
- A intervenção estatal no que tange a criação, educação (orientação cultural, etc) de crianças e adolescentes é subsidiária, de modo que apenas havendo omissão ou abuso dos pais, com violação de direitos fundamentais básicos dos menores, é lícito o suprimento judicial de autorização para viagem ao exterior em caso de discordância dos pais, nos termos do princípio da proteção integral e tendo em conta interpretação conforme a Constituição;
- O suprimento de autorização deve realizar-se por processo judicial em que atuará a jurisdição voluntária, aplicando-se as disposições gerais do CPC sobre o tema;
- Há ampla liberdade probatória para o Juiz da Infância e Juventude, sendo-lhe lícito, ainda, conceder medida diversa da pedida (julgamento por eqüidade), inclusive de ofício (não vige o princípio da adstrinção), em atenção à concretização do melhor interesse da criança e do adolescente, no particular, o que se deve fazer tendo em conta o princípio da proporcionalidade, nos termos do devido processo legal.
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