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Soberania e ordem jurídica supra-nacional no Mercosul

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30/01/2004 às 00:00
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1. Introdução

O presente trabalho tem por objetivo discutir a possibilidade de constituir-se, no âmbito do MERCOSUL, uma ordem jurídica nos moldes do direito comunitário europeu, ou seja, autônoma e hierarquizada frente ao sistema jurídico interno dos Estados-Partes, levando em consideração a noção de soberania vigente nos países que integram este bloco regional.

A análise aqui desenvolvida não tem a pretensão de chegar a uma conclusão definitiva sobre a questão. Trata-se, apenas, de reflexões trazidas à pauta, motivadas pelo fato de ter o MERCOSUL, do qual o Brasil é parte integrante, sido criado tendo como paradigma a União Européia.

Neste sentido, a questão que se apresenta é: como se concretizará, à luz das Constituições vigente nos países envolvidos e da noção de soberania neles vigente, uma ordem jurídica supra-nacional, que leve à completa integração dos países envolvidos no processo de regionalização buscada pelo MERCOSUL?

Por questões históricas e tradicionais, a exacerbação do nacionalismo e a ênfase na soberania nacional são questões marcadamente presentes nos países latino-americanos. Por este motivo, tudo leva a crer que a concepção de soberania que se tem nestes países seria um elemento de obstáculo e de influência na escolha do tipo de integração e um determinante na criação e nos efeitos de uma ordem jurídica comunitária.

No âmbito europeu, resta claro que a integração que se realizou atinge a concepção tradicional de soberania encontrando, por parte dos países integrantes da Comunidade, maior ou menor receptividade, dependendo da forma como tal questão é tratada nas suas respectivas Constituições as quais, em maior ou menor grau, contêm, todas, dispositivos que aceitam a delegação do exercício de certas competências para um poder supra-nacional. Assim, a ordem supra-nacional, instituída pelos tratados constitutivos da Comunidade Européia, revolucionou o conceito de soberania, mormente no que pertine à aplicação de normas sujeitas a um Tribunal de Justiça que se encontra acima dos Estados-Partes, preponderando o direito comunitário sobre o direito nacional.


2. A Estrutura Institucional do Mercosul

Na análise do Protocolo de Ouro Preto, de 17/12/94, que definiu o quadro orgânico definitivo do MERCOSUL, percebe-se que o mesmo manteve ou criou, em seu artigo 2º, estruturas de tipo intergovernamental onde estão representados os interesses de cada Estado, cujas decisões estão submetidas à regra da unanimidade dependendo de posterior ratificação pelos órgãos nacionais. Descartou-se a criação de órgãos supra-nacionais, acima dos Estados, que poderiam aplicar suas decisões, diretamente, sem

transposição para o direito interno dos Estados-Partes e concedeu-se à obrigatoriedade das normas jurídicas do MERCOSUL um caráter precário e condicionado [1].

Segundo Rui Manoel Ramos, "não se pode deixar de acentuar a fidelidade do MERCOSUL ao clássico modelo da intergovernamentalidade ou da cooperação, que caracteriza o mecanismo decisional da maior parte das organizações internacionais, em contraponto com a mais arrojada aposta do legislador comunitário no princípio da integração e na introdução de típicas notas de supra-nacionalidade. Fruto decerto da maior importância ainda hoje reconhecida no hemisfério sul-americano ao dogma da soberania estadual, bem como da menor pressão no sentido da unificação face à que caracteriza o pensamento e a vida política europeus do pós-guerra, o certo é que o Tratado de Assunção se afasta a este respeito, bem nitidamente, da construção comunitária" [2].

Jorge Perez Otermin, por sua vez, ao referir-se aos países integrantes do MERCOSUL, diz: "Lo cierto es que el criterio que ha imperado, pero por cierto no unánimemente deseado, há sido y sigue siendo - incluso en el Protocolo de Ouro Preto - el negarle al proceso de integración el menor viso de supranacionalidad. Esta posición ha sido sostenida principalmente por Brasil, argumentando en impedimentos de orden constitucional". [3]

Neste sentindo, a opção, em princípio, dos países do MERCOSUL, por este tipo de estrutura e não pela integração estrita com um poder supra-nacional, é, talvez, a grande diferença entre este bloco regional e a União Européia.

Do mesmo modo, verifica-se tal diferença na forma escolhida para solucionar as controvérsias no âmbito do MERCOSUL, cujos Estados-Partes optaram pela criação do Tribunal Arbitral -ad hoc- constituído de três árbitros, dois escolhidos pelas partes envolvidas no conflito e um terceiro de comum acordo, estranho à nacionalidade de ambos, para presidir o Tribunal.

Luiz Olavo Baptista, ao referir-se sobre a formação de um Tribunal do MERCOSUL com caráter supra-nacional, assim expõe: "Do ponto de vista jurídico, parece haver obstáculos, ao menos do ponto de vista da Constituição brasileira. A criação do Tribunal do MERCOSUL, implicará a modificação das Constituições dos quatro países. Será preciso que eles admitam a existência de um órgão judicial supra-nacional, que predomine sobre a estrutura dos respectivos Poderes Judiciais. Nós não podemos de modo nenhum ignorar a nossa realidade sociológica. E nesta, o corporativismo impera. Na medida em que se disser que sobre as Cortes Supremas dos quatro países se erguerá uma outra Corte, que terá o poder de revogar as decisões dessas, imediatamente veremos o corporativismo judicial pôr-se em ação e reagir ante a ameaça de um poder mais alto. Será preciso, então, que o processo de educação que nascerá através da prática da Corte Arbitral... e dos mecanismos de integração em geral, venha a demonstrar a necessidade e a utilidade de vir a se constituir a Justiça do Mercosul, que não será superior à Justiça de cada um dos países, senão naquelas matérias da sua exclusiva competência, isto é, verificar a integração e a atuação que se dá a normas comunitárias". [4]


3. Breve análise das Constituições dos Estados-Partes do Mercosul

Todos os países, principalmente o Brasil, justificam esta tendência com limitações impostas por suas respectivas Constituições. Ao analisar-se as Leis Fundamentais dos Estados-Partes do MERCOSUL, percebe-se que há disparidades quanto à questão, inclusive com reconhecimento, por parte de algumas, embora com restrições, à formação de uma ordem jurídica supra-nacional.

A Constituição do Paraguai, promulgada em 20 de julho de 1992, em seu artigo 145 prevê o instituto da supra-nacionalidade de forma literal, nos seguintes termos:"La República del Paraguay, en condiciones de igualdad con otros Estados, admite un orden jurídico supranacional que garantice la vigencia de los derechos humanos, de la paz, de la justicia, de la cooperación y del desarrollo, en lo político,económico social y cultural. Dichas decisiones sólo podrán adoptar-se por mayoria absoluta de cada Cámara del Congresso".

A Argentina enfrenta o tema no artigo 75, inciso 24 de sua Constituição, promulgada em 22 de agosto de 1994, atribuindo ao Congresso a competência para "aprobar tratados de integración que deleguen competencias y jurisdiccíon a organizaciones supraestatales en condiciones de reciprocidad e igualdad, y que respecten el orden democrático y los derechos humanos. Las normas dictadas en su consecuencia tienen jerarquía superior a las leyes". La aprobación de estos tratados con Estados de Latinoamérica requerirá la mayoria absoluta de la totalidad de los miembros de cada Cámara. En caso de tratados com outros Estados, El Congresso de la Nación, con la mayoria absoluta de los miembros presentes de cada Cámara, declarará la conveniencia de la aprobación del tratado y sólo podrá ser aprobado con el voto de mayoria absoluta de la totalidad de los miembros de cada Cámara, después de cento e viente dias del acto declarativo"(...)

Percebe-se que o legislador argentino buscou consagrar a figura da supra-nacionalidade quando se refere à aprovação de tratados de integração com delegação de competência a organismos supra-estatais, atribuindo-lhes hierarquia superior às leis nacionais, mas não à Constituição. Por outro lado,

impõe a obrigatoriedade da observância de dois princípios constitucionais: reciprocidade e igualdade.

Infere-se desta atitude, uma preocupação em proteger a soberania, condicionando o reconhecimento de um organismo com competência e jurisdição supra-nacional, à idêntica atitude por parte dos demais Estados-Membros, em igualdade de condições na tomada de decisões. O princípio da igualdade é observado, também, na Constituição do Paraguai.

Em contraposição, as Constituições do Uruguai e do Brasil, não contêm menção à supra-nacionalidade nem à possibilidade de uma ordem jurídica comunitária com superioridade hierárquica em relação às normas nacionais.

A Constituição da República Oriental do Uruguai, promulgada em 2 de fevereiro de 1967 e reformada em 1994, acentua, em seu artigo 4º, a plenitude da soberania nacional e a competência exclusiva da nação no estabelecimento de suas leis. No artigo 6º, por sua vez, determina que "en los tratados internacionales que celebre la República propondrá la cláusula de que todas las diferencias que surjan entre las partes contratantes, serán decididas por el arbitraje u otros medios pacíficos. La República procurará la integración social y económica de los Estados Latinoamericanos, especialmente en lo que se refiere a la defensa común de sus productos y materias primas. Asimismo, propenderá a la efectiva complementación de sus servícios públicos. (...) Outorga, também, em seu artigo 85º, competência ao Congresso para aprovar ou reprovar, por maioria absoluta das duas Câmaras, os tratados celebrados pelo Poder Executivo com potências estrangeiras.

Observa-se, portanto, o caráter restritivo imposto pela Constituição uruguaia, ao determinar, por um lado, exclusividade nacional para criação das leis vigentes no território nacional e, por outro, ao atribuir à arbitragem ou outros meios pacíficos, a solução de possíveis controvérsias no âmbito das relações internacionais, negando, com isso, qualquer possibilidade de um organismo com poder de sanção supra-nacional.

No pertinente à Constituição Brasileira promulgada em 5 de outubro de 1988, encontram-se as seguintes disposições:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania; (...)

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

I - independência nacional;

II - prevalência dos direitos humanos;

III - auto-determinação dos povos;

IV - não-intervenção;

V - igualdade entre os Estados;

VI - defesa da paz;

VII - solução pacífica dos conflitos;

VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;

IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;

X - concessão de asilo político.

Parágrafo único: A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

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Alguns autores brasileiros concluem que o parágrafo único do artigo 4º "deixa certo que o País conta com a autorização constitucional para buscar sua integração em uma comunidade latino-americana" e que a existência deste artigo implica a aceitação de organismos supra-nacionais em detrimento do princípio clássico da soberania nacional, "do contrário, ele seria desnecessário, posto que organização sem caráter supra-nacional já existe na América Latina. De outra parte, a expressão utilizada ‘integração’ envolve certamente a participação em entidades que não sejam de cunho meramente associativo". [5]

Entretanto, quer nos parecer que, na ausência de qualquer outro dispositivo referente à matéria, o referido mandamento traduz-se em mera regra programática, sem qualquer intenção constitucional de transferir soberania para uma possível organização com poderes supra-nacionais.

Além disso, independentemente das restrições constitucionais, a falta de vontade política e a resistência à aceitação de uma soberania compartida, no que se refere ao Brasil, são os grandes obstáculos à formação de organismos supra-nacionais no âmbito do MERCOSUL. É o que parece demonstrar os debates travados no interior do Congresso, por ocasião da fracassada revisão constitucional de 1994, mencionados por diversos autores, na qual, das 28 emendas ao artigo 4º propostas por diferentes Deputados Federais, apenas uma foi acatada pelo relator-geral da revisão constitucional, então Deputado Federal Nelson Jobim; proposta esta que, no entanto, foi rejeitada permanecendo o referido artigo 4º com sua redação original [6].


4. A noção de soberania predominante no Brasil.

Sob o ponto de vista doutrinário, o tema da soberania se expressa em diferentes concepções que podem ser agrupadas em dois grandes ramos de pensamento jurídico brasileiro: o constitucionalismo, que, embora agrupe autores com diferentes métodos e ideologias, resume-se na afirmação do dogma da soberania absoluta, como supremacia do Estado sobre qualquer outro poder de decisão admitindo, no máximo, uma relativização da soberania estatal frente às relações exteriores; e o internacionalismo, que prega o desaparecimento da soberania e a "subordinação da ordem interna à ordem internacional como ordem parcial do Direito", outorgando à supremacia do Estado uma dimensão menor no sentido de que "não há, acima dele, nenhum outro Estado, mas apenas o direito internacional" [7].

De qualquer sorte, no conjunto da doutrina brasileira evidencia-se a idéia de que o princípio da soberania se constitui em obstáculo natural à integração e à formação de uma ordem jurídica supra-nacional. Além disso, mesmo dentre aqueles autores que propugnam pela supremacia do direito nacional, há os que admitem ter, o conceito de soberania, caráter meramente formal e ideológico frente às relações imperialistas que se estabelecem no âmbito internacional entre os Estado ou frente à atuação das empresas transnacionais, verdadeiros "capitais sem pátria" que seguidamente interferem na política e economia dos chamados países do terceiro mundo.

Neste sentido, o Brasil é um destes países que tem sofrido ingerência externa na condução de sua política econômica ao longo de sua história. Entretanto, as disposições constitucionais referentes à supra-nacionalidade e à vontade política dos grupos no exercício governamental deste país, leva a crer que, do ponto de vista do Brasil, a formação de uma ordem jurídica supra-nacional hierarquizada, no âmbito do Mercosul, encontra forte resistências, justificadas e consubstanciadas, paradoxicamente, na idéia de soberania nacional.

Da análise realizada das Constituições dos demais Estados integrantes do MERCOSUL acerca da supra-nacionalidade, evidenciou-se as semelhanças, quanto à noção de soberania, bem como na conseqüente prática política, entre os governos envolvidos. Ficou claro que o Uruguai nega expressamente qualquer ordem jurídica de caráter supra-nacional; a Argentina e o Paraguai, embora a admitam com restrições, localizam-na abaixo de suas respectivas Constituições.

Com referência, ainda, ao Brasil, Luiz Olavo Baptista acrescenta outros elementos constitucionais que obstaculizam a criação de um órgão supra-nacional, nos art. 22 e 24, os quais estabelece, entre outras, competências legislativas privativas da União e unidades federativas, não mencionando possibilidade de delegação, ao executivo do país ou de um organismo internacional. Acrescenta que um organismo nos moldes do Conselho da União Européia, que acumula funções legislativas e administrativas, afrontaria a regra da separação dos poderes, que, juntamente com as determinações dos artigos 22 e 24, fazem parte das chamadas cláusulas pétreas da Constituição, sendo que uma reforma da Carta Fundamental, no sentido de adaptá-la à normas supra-nacionais, que afrontasse tais cláusulas, é incabível [8].


5. Conclusão

Como se percebe do exposto acima, a problemática da criação de uma ordem jurídica supra-nacional no interior do MERCOSUL esbarra na noção doutrinária tradicional de soberania nacional que envolve a vontade e a prática dos governantes dos Estados-Partes integrantes deste bloco regional.

A idéia tradicional de soberania caracteriza-se historicamente, como um poder incontestável, supremo e absoluto, com o qual, o Estado - titular exclusivo deste poder - tem a capacidade de decidir e criar as normas jurídicas, aplicando-as coercitivamente dentro de seu espaço territorial, bem como impor-se, em igualdade de condições, frente às relações com os demais Estados, não reconhecendo, acima de si, qualquer outro poder. Neste sentido a soberania estatal é tida como indivisível, inalienável e imprescritível.

Tal noção, emergida como elemento fundamental para o fortalecimento do Estado Moderno, não se justifica mais frente à nova realidade mundial. Embora permaneça como uma idéia de insubmissão, independência e de poder supremo juridicamente organizado, deve-se levar em conta uma certa relatividade que lhe é imposta face às novas relações que se estabelecem no âmbito internacional.

O fenômeno da globalização da economia e suas conseqüências, gera uma nova mentalidade criada a partir de interesses políticos e econômicos compartilhados, forçando a necessidade de revisão quanto ao conceito de soberania. "A interdependência que se estabelece contemporaneamente entre Estados aponta para um cada vez maior atrelamento entre as idéias de soberania e cooperação jurídica, econômica e social, o que afeta drasticamente, a pretensão à autonomia", [9] levando, na prática, a uma revisão dos postulados fundamentais referentes à soberania estatal.

A globalização da economia e a criação dos blocos regionais, fundamentalmente a formação da Comunidade Européia, impuseram uma nova lógica no que concerne às relações internacionais e, como conseqüência,

solaparam as tradicionais pretensões dos Estados quanto ao poder ilimitado e absoluto contido na velha noção de soberania.

É esta nova visão que relativisa a soberania, que força os Estados-Partes da Comunidade Européia a acatar e aceitar as normas emanadas de um poder supra-nacional, consubstanciado no Direito Comunitário Europeu.

Por outro lado, as chamadas empresas transnacionais desempenharam um importante papel na criação de uma nova mentalidade quanto às relações internacionais. Por não estarem vinculada a algum Estado em particular, e por disporem de capacidade de decisão econômica poderosa, podem e têm afetado, profundamente, a ordem social e política de muitos países, especialmente aqueles economicamente frágeis, com ingerência em seus negócios internos e impondo aos seus governantes, atitudes que contradizem com a concepção tradicional de soberania estatal, transformando-a em um conceito meramente formal.

Frente a este quadro, há que se repensar o caráter soberano de uma ordem política absoluta e todo-poderosa atribuída ao Estado.

Tendo o Brasil e seus demais sócios optado por formar um bloco regional, nos moldes da Comunidade Européia, deve ter presente que um projeto de integração implica, fatalmente, em delegação de parte da soberania, no sentido da formação de uma ordem jurídica supra-nacional, de aplicabilidade direta, que contemple os interesses e objetivos comuns a serem alcançados. "A instituição comunitária não deve, então, ser tão somente o somatório das vontades dos Estados membros. Possui dinâmica e latitude de atuação próprias, a permitir a tomada de decisões que extrapolem a visão imediatista e os interesses personalistas das administrações dos países que a integram. Certamente, a instituição espelha as vontades de seus membros, inclusive no que diz respeito a sua corporação funcional, mas é, a um só tempo, distinta e superior, na medida em que a ordem comunitária deverá sobrepor-se à ordem nacional que persiste naqueles assuntos para os quais foi definida sua competência". [10]

Somente se pode conceber a supra-nacionalidade, quando há um órgão comunitário com poder de incidência direta, sem necessidade de aprovação dos Estados-Partes e integração de suas regras ao ordenamento jurídico interno, com força coercitiva necessária para impor suas decisões e penalizar aqueles que a elas resistirem.

Desta forma, retomando a pergunta inicial que nos levou a estas reflexões, conclui-se que, no presente momento, não há indícios de formação de uma ordem jurídica com caráter supra-nacional que leve à completa integração dos Estados integrantes do MERCOSUL.

As regras existentes estão longe de apresentar tal conformação, sobretudo por não possuírem poder de sanção. São apenas normas originadas em Tratados e incorporadas ao ordenamento jurídico interno, nos moldes do Direito Internacional, com negativas condições de eficácia.

As possibilidades de vir a existir um direito comunitário do MERCOSUL estão limitadas, por um lado pelas Constituições dos Estados-Partes - principalmente do Brasil e Uruguai - e por outro, pela noção tradicional de soberania e independência que envolve a vontade política dos governantes dos países que o integram. Neste sentido, justifica-se o fracasso da tentativa de alterar o artigo 4º da Constituição Federal brasileira.

O Protocolo de Ouro Preto não contém os instrumentos necessários para garantir eficácia, aplicabilidade direta e primazia às regras comunitárias. "A estrutura orgânica definitiva do MERCOSUL, mais do que governamental, é inconsistente, seja pela má técnica de seus parâmetros normativos e dos ritos adotados, seja pela absoluta exclusividade de participação dos Poderes Executivos nacionais nos órgão de poder decisório. Ao menos quanto ao Brasil, esta é uma situação proposital, como forma de manutenção de sua margem de discricionariedade e da flexibilidade dos compromissos". [11]

Mas, quer nos parecer que, se a busca de formação de um bloco regional tem como suporte a idéia de que a integração pode levar a minorar os problemas sócio-econômicos dos países envolvidos e a desenvolver suas potencialidades e fortalecer o Continente Sul-americano no cenário mundial, mister se faz que se modifiquem as formas de atuar, realizando as devidas reformas constitucionais, buscando, por um lado, ampliar as áreas que comportam iniciativas integracionistas - questões fronteiriças, trabalhistas, previdenciárias, direitos humanos, cooperação judiciária, proteção dos consumidores, etc. - e por outro, possibilitando a criação de um direito comunitário e de órgãos com poder supra-nacional que atribua ao MERCOSUL um verdadeiro status de comunidade, com todas as instituições que lhe são inerentes.

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Sobre a autora
Lea Ainhoren

Advogada e professora universitária. Porto Alegre, RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AINHOREN, Lea. Soberania e ordem jurídica supra-nacional no Mercosul. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 208, 30 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4744. Acesso em: 22 nov. 2024.

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