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Mutação constitucional como um problema:

historicidade do instituto na Alemanha do Século XIX

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28/03/2016 às 14:08

Resumo:


  • O instituto da mutação constitucional foi analisado por autores do formalismo jurídico alemão, como Paul Laband e Georg Jellinek, que viam as alterações informais da Constituição como prejudiciais à sua validade formal.

  • No final do século XIX e início do século XX, o sistema normativo alemão do II Reich não previa mecanismos de controle de constitucionalidade das leis, permitindo que violações à Constituição se perpetuassem sem possibilidade de impugnação.

  • Atualmente, com sistemas de controle de constitucionalidade mais robustos, como o controle difuso e concentrado, as mut

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3 Análise crítica do instituto da mutação constitucional

O estudo do tema das mutações constitucionais no Brasil carece de uma visão clara das circunstâncias históricas e jurídicas que lhe serviram de fundamento. Nesse ínterim, Laband e Jellinek diagnosticaram o fenômeno na Alemanha como um problema para a validade da constituição formal.

Para esses autores, a mutação constitucional era identificada como uma deformidade do sistema normativo, justamente porque na alemã do II Reich não existiam mecanismos de controle de constitucionalidade das leis ou dos demais atos estatais, de modo que as quaisquer violações à constituição se eternizavam na realidade constitucional material, em detrimento dos preceitos formais do texto constitucional.

Aliás, Ferdinand Lassalle, em sua obra “A essência da Constituição”[28], argumentou em momento histórico ainda mais remoto (Reino da Prússia) que existiam duas constituições: a real e a escrita. A primeira representa os efetivos fatores reais de poder que regem a sociedade, enquanto a outra diz respeito à expressão escrita do poder no momento histórico de sua formação. Ocorre que, com o decorrer do tempo, a constituição escrita pode deixar de corresponder com a constituição real, ocasião em que a “folha de papel” certamente sairá derrotada pela realidade material.

Esse conflito entre a constituição escrita e a material se dá justamente pela mutação constitucional, em que as forças materiais alteram a realidade constitucional sem que o texto escrito fosse modificado. E essa mutabilidade informal somente se eternizava porque inexistiam mecanismos de controle de constitucionalidade que impedissem ou sancionassem os detentores efetivos do poder de promover mudanças contrárias ao próprio texto magno.[29]

Por conseguinte, constata-se que as teorias aqui apresentadas representaram um marco teórico para o desenvolvimento e aperfeiçoamento de mecanismos de controle de constitucionalidade que fossem capazes de manter a rigidez e a estabilidade constitucional frente às mudanças praticadas pelos detentores do poder público.

Isso significa que o amadurecimento dos sistemas de controle de constitucionalidade na Europa teve como pressuposto a crítica apresentada pelos autores formalistas ao processo informal e ilegítimo de mudança constitucional denominado Verfassungswandlung.

Como se constata, o arcabouço jurídico de análise dos citados autores do século XIX é substancialmente distinto dos modelos atuais, especialmente pela atual predominância de complexos sistemas de controle de constitucionalidade, tanto difusos quanto concentrados.

Nesse prisma, a utilização da expressão mutação constitucional na contemporaneidade requer uma profunda adaptação doutrinária, visto que no decorrer destes mais de 100 (cem) anos houve tanto um aperfeiçoamento nos sistemas de controle de constitucionalidade, quanto uma ampliação das matérias e elementos previstos e protegidos pelas constituições modernas, que não mais se limitam a estabelecer a organização do Estado e seus princípios fundamentais.

No final do século XIX, o termo mutação constitucional foi utilizado para denunciar atos promovidos pelos detentores do poder que, apesar de afrontarem o texto da constituição, seriam insuscetíveis de impugnação jurídica posterior. Na prática, o postulado da supremacia da constituição era derrogado por atos a ela inferiores.

A realidade dos sistemas constitucionais contemporâneos é bem distinta. Além do sistema de controle difuso de constitucionalidade oriundo do modelo americano, há, em grande parte dos países europeus e latino-americanos, o mecanismo de controle concentrado de constitucionalidade, sendo o seu principal mentor o doutrinador Hans Kensen, cujos conceitos foram implementadas de maneira inaugural na Corte Constitucional Austríaca de 1920.

Assim, para analisar o fenômeno da mutação constitucional de um país, é fundamental apreciar o modelo de controle de constitucionalidade adotado. No Brasil, ocorre a convivência de ambos os modelos, denominado sistema misto de controle, sendo o modelo difuso exercido de forma ampla (juízes e Tribunais), e o modelo concentrado, de competência exclusiva do STF.

Considerando a existência constitucional do sistema misto e a sua progressiva efetividade na práxis jurídica nacional, é nítido que todas as normas e atos das esferas do poder estão sujeitos ao controle de constitucionalidade repressivo exercido pelo Judiciário.

Isso significa que o fenômeno da mutação constitucional, como foi idealizado no século XIX, não pode ser aplicado de maneira irreflexiva pela comunidade jurídica pátria, pois todas as modalidades de mutação próprias ilegítimas estariam protegidas pelo sistema misto de controle de constitucionalidade.

Havendo uma lei ou um ato normativo inconstitucional, a sua vigência inconstitucional será apenas provisória, visto que poderá ser submetida a controle judicial repressivo de constitucionalidade, tanto material (conteúdo normativo) quanto formal (processo genético).

É dizer, tais violações à constituição escrita estarão sujeitas ao controle de constitucionalidade, não representando, pois, o fenômeno da mutação constitucional ilegítima na visão Jellinekiana.

Por outro lado, seguindo-se a sistematização trazida por Jellinek, a mutação legítima poderia ser materializada em decorrência da atuação do Supremo Tribunal Federal, a qual caberá proferir o último entendimento quanto à matéria constitucional. Somente aí é que se poderá cogitar na ocorrência ou não de uma alteração constitucional que venha a representar uma mutação constitucional.


CONCLUSÕES

O instituto da mutação constitucional (Verfassungswandlung) foi teorizado na Alemanha por autores do formalismo jurídico, em especial Paul Laband e Georg Jellinek, os quais viam as alterações do texto constitucional por meio de atos inferiores como um problema que prejudicava a supremacia da Constituição.

Porém, diferentemente dos sistemas normativos contemporâneos, o sistema normativo alemão do II Reich (final do século XIX e início do século XX) não previa mecanismos de controle de constitucionalidade das leis e dos demais atos normativos, de modo que as violações efetivadas por quaisquer das esferas do Poder se perpetuavam sem possibilidade de impugnação.

Diante dessa expressiva diferença de sistemas jurídicos, a utilização da expressão mutação constitucional na contemporaneidade requer uma profunda adaptação doutrinária. Isso porque a maior parte das mutações constitucionais identificadas no passado, tidas como inalteráveis, estarão sujeitas aos rigorosos mecanismos de controle de constitucionalidade, tanto difusos quanto concentrados, de modo que representariam apenas vigências temporárias de atos inconstitucionais.

Ressalta-se que as teorias formalistas aqui apresentadas representaram um marco teórico para o desenvolvimento e aperfeiçoamento de mecanismos de controle de constitucionalidade que fossem capazes de manter a rigidez e a estabilidade constitucional frente às mudanças praticadas pelos detentores do poder público.


Notas

[1] OTTO, Ignacio de. Derecho constitucional. Sistema de fuentes. 2ª Edición. Barcelona: Editorial Ariel, 1988, cit., p.12: “La finalidad del movimiento que históricamente se llamó constitucionalismo no era, obviamente, introducir en los ordenamientos una norma denominada Constitución, sino asegurar La garantía de La libertad frente al poder público. Que una sociedad tenga Constitución, que un Estado sea constitucional, significa, ante todo, que en él la organización de los poderes responda a un determinado fin, el aseguramiento y garantía de la libertad de los ciudadanos. Luchar por la libertad es, así, luchar por la Constitución, y constitucionalismo y liberalismo aparecen como términos equivalentes, porque en ese significado la palabra Constitución designa algo más que una norma jurídica: la propia organización del Estado que obedece a determinados principios, esto es, que responde a una determinada esencia. Por eso mismo el calificativo constitucional se utiliza tan sólo cuando se cumplen las exigencias de esa idea.”

[2] OTTO, Ignacio de. Derecho constitucional, p.13-14: “Por el contrario, en el constitucionalismo americano, donde faltan los factores condicionantes que se dan en Europa, resulta claro desde el principio que las normas contenidas en la Constitución escrita son derecho, el derecho supremo del país, al que han de sujetarse los órganos del Estado en el ejercicio de sus poderes, con la consecuencia de que es posible el control de la constitucionalidad del mismo. En palabras del Juez Marshall, que expresan con claridad esta idea, “los poderes del legislativo son definidos y limitados y para que tales límites no se confundan u olviden se ha escrito la Constitución”.

[3] OTTO, Ignacio de. Derecho constitucional. Sistema de fuentes. 2ª Edición. Barcelona: Editorial Ariel, 1988, cit., p.14.

[4] OTTO, Ignacio de. Derecho constitucional. Sistema de fuentes. 2ª Edición. Barcelona: Editorial Ariel, 1988, cit., p.15.

[5] HESSE, Konrad. Escritos de Derecho constitucional, Madrid: Centro de Estudios constitucionales, 1983, p. XXVI, nota 60: “Los comienzos de la traducción al castellano han sido un tanto erráticos: La traducción de F. DE LOS RIOS de la ‘Teoría General del Estado’, de Georg JELLINEK (reimpresión de 1978, buenos Aires, páginas 405 y ss.) se inclina por el término ‘modificación’; la de L. LEGAZ LACAMBRA de la ‘Teoría General del Estado’, de Hans KELSEN (reimpresión de 1979, México, pág. 332) se inclina por ‘cambio de constitución’; la de Luis TOBIO de la ‘Teoría del Estado’, de Herman HELLER (México, 1934, pág. 278) se inclina por ‘reforma constitucional’. Quizá a la vista de este estado cosas GARCIA-PELAYO propuso en su ‘Derecho constitucional comparado’ (cit. n. 53, pág. 137) el término ‘mutación constitucional’, seguido por A. GALLEGO ANABITARTE en su traducción de la ‘Teoría de la Constitución’, de Karl Loewenstein (cit. n. 51, pág. 165). Siguiendo este intento de afianzar una sola versión castellana, la traducción del trabajo de HESSE se atiene estrictamente al término propuesto por GARCIAPELAYO, por encima de la personal preferencia por el término ‘mudanza constitucional’ que me permito emplear ocasionalmente en esta nota de forma alternativa. Por lo demás, la doctrina alemana utiliza indistintamente los términos ‘Verfassungswandlung’ y ‘Verfassungswandel’.”

[6] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito constitucional, 20ª Ed. São Paulo, Malheiros, 2007, p. 171.

[7] URRUTIA, Ana Victoria Sánchez. Mutación constitucional y Fuerza Normativa de la Constitución: Una Aproximación al Origen del Concepto, Revista Española de Derecho constitucional, Año 20. Núm. 58. Enero-Abril 2000, p. 105: “Laband se plantea el problema de la mutación desde que constata que la Constitución puede transformarse fuera de los mecanismos formales de reforma a pesar de ser Ley (Gesetz) que debe dar continuidad y estabilidad al derecho en cuanto codificación de los más fundamental Estado.”.

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[8] URRUTIA, Ana Victoria Sánchez, op. cit., p. 109.

[9] Laband, Paul. Das Staatsrechts des deutschen Reiches apud Ana Victória Sánches URRUTIA, p. 110: “La regla según la cual las leyes ordinarias deben estar siempre en armonía con la Constitución y no deben ser incompatibles con ésta, constituye un postulado de política legislativa, pero no un axioma jurídico (…)”.

[10] JELLINEK, Georg. Teoría General de Estado, Trad. 1ª ed, España, Centro de Estudios constitucionales, 1985 (a edição orginal em alemão é de 1900), p.

[11] JELLINEK, Georg. Reforma y Mutación de La Constitución, Madrid, Centro de Estudios constitucionales, 1991 (a edição original em inglês é de 1961).

[12] JELLINEK, Georg. Reforma y Mutación de La Constitución, p. 15.

[13] George JELLINEK. Reforma y Mutación de La Constitución, p.15.

[14] Idem.

[15] George JELLINEK. Reforma y Mutación de La Constitución, p. 11.

[16] Ana Victoria Sánchez URRUTIA, p. 106.

[17] George JELLINEK. Reforma y Mutación de La Constitución, p. 16.

[18] George JELLINEK. Reforma y Mutación de La Constitución, p. 20.

[19] George JELLINEK. Reforma y Mutación de La Constitución, p. 16: “No solo el legislador puede provocar semejantes mutaciones, también pueden producirse de modo efectivo mediante la práctica parlamentaria, la administrativa o gubernamental y la de los tribunales”.

[20] George JELLINEK. Reforma y Mutación de La Constitución, p. 20.

[21] George JELLINEK. Reforma y Mutación de La Constitución, p. 7.

[22] George JELLINEK. Reforma y Mutación de La Constitución, p. 56: “(…) por regla general, la comprobación de lagunas constitucionales corresponde al legislador, porque la reforma de la Constitución es el camino más seguro para colmar completamente tales lagunas”.

[23] George JELLINEK. Reforma y Mutación de La Constitución, p. 22: “Estas manifestaciones nos abren el camino para encontrar un medio que proteja las Constituciones, que a primera vista se elija como la muralla más sólida contra los abusos anticonstitucionales del mismo legislador”.

[24] George JELLINEK. Reforma y Mutación de La Constitución, p. 26.

[25] George JELLINEK. Reforma y Mutación de La Constitución, p. 37: “Si todo esto no es un fenómeno pasajero, sino un comportamiento invariable observado durante mucho tiempo, (…)”.

[26] George JELLINEK. Reforma y Mutación de La Constitución, p. 37: “El monarca puede elegir libremente a los ministros pero los elige invariablemente de la mayoría parlamentaria dominante.”.

[27] George JELLINEK. Reforma y Mutación de La Constitución, p. 39.

[28] LASSALLE, Ferdinand. A essência da constituição. 9. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2014, pp. 26-27.

[29] LASSALLE, Ferdinand. A essência da constituição, pp. 42-43. 

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Sobre o autor
Thiago Vieira

Pós-graduando em Direito Tributário no Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET e bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB (2012). Servidor público no Supremo Tribunal Federal, tendo exercido trabalhos de análise processual em Gabinetes de Ministro, especialmente em processos de natureza tributária. Concentra suas pesquisas no ramo do Direito Tributário, com particular interesse em temas relacionados aos mecanismos jurídicos de controle de tributação ilegal e excessiva de empresas sobre as atividades de industrialização e consumo, e Constitucional, com foco nos processos judiciais de mutação da constituição.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Thiago. Mutação constitucional como um problema:: historicidade do instituto na Alemanha do Século XIX. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4653, 28 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47715. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Este artigo foi inspirado na monografia apresentada pelo autor no 6º Congresso de Iniciação Científica do Distrito Federal e XV Congresso de Iniciação Científica da UnB (2009), ocasião em que recebeu o prêmio de melhor projeto na área do direito constitucional.

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