Responsabilidade civil do Estado por atos de tortura no regime militar:lei de anistia e comissão da verdade

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Artigo abordando a responsabilidade civil do estado pelos atos de tortura cometidos durante o período de regime militar, abordando a lei de anistia e a comissão da verdade.

1.      INTRODUÇÃO

Antigamente o Estado não respondia pelos seus atos, particularmente na época do absolutismo, na qual monarcas pressupunham estar acima da lei, o que originou a expressão “L’État c’est moi” que traduzindo significa “o Estado sou eu”. Naquela época, havia apenas ações contra o funcionário público causador do dano, não cabendo ao Estado responsabilidade alguma pela ação de seus funcionários.

Em 1789, com a Revolução Francesa e o consequente surgimento do direito administrativo, houve uma ruptura com o autoritarismo decorrente do despotismo monárquico.

Dessa forma, começou a surgir por parte da população uma revolta contra os desmandos dos absolutistas, que acarretou com a responsabilização das comunas pelas atitudes das forças policiais. Essa revolta teve reflexo nos demais países.

Assim, começaram a surgir os diplomas que instituem responsabilidade ao Estado devido aos prejuízos causados, obrigando a Administração Pública ao dever de indenizar os atos lesivos praticados pelos seus agentes. Para isso, basta que o indivíduo que se sentir lesado comprove o nexo causal que existe entre a ação ou omissão do agente público e o prejuízo sofrido.

     A Responsabilidade do Estado passou por uma evolução até chegar à forma que hoje temos. Veremos a seguir.

2 EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
2.1 IRRESPONSABILIDADE TOTAL DO ESTADO

Na época das monarquias absolutistas, na qual os monarcas reuniam em si todos os poderes para comando do Estado, dizendo possuir inspiração divina para tais atos, foi que esta fase se desenvolveu.

Quando surge a máxima “The king can do no wrong”, ou seja, o Rei – no caso os monarcas – não erra. Isso quer dizer que o Estado imputava à vítima a responsabilidade por possíveis atos danosos, sem que ele tivesse qualquer dever de ressarcir ou indenizar.

Tal fase começou a perder força com a queda do absolutismo e o advento do Iluminismo e também pela própria função do Estado que é guardar o Direito e zelar pelo bem-estar dos cidadãos, sendo assim não se justifica o fato da população não poder recorrer quando se sentir prejudicada pelo Estado.

2.2 RESPONSABILIDADE SUBJETIVA: CULPA CIVILISTA E CULPA ADMINISTRATIVA
2.2.1 CULPA CIVILISTA

A Culpa civilista é baseada nas teorias do direito civil, tomando por base o código civil Francês, chamado código napoleônico. Nessa fase temos uma evolução, pois o Estado que antes era irresponsável civilmente, passa a uma condição de possível responsável a depender da comprovação da culpabilidade do agente público. Porém, tal comprovação era imputada por lei ao administrado, que tinha contra si a estrutura estatal e o imenso ônus de contra ela lutar.

No Brasil esta teoria encontrava respaldo no artigo 159 do Código Civil de 1916. Hoje, essa responsabilidade civil encontra-se expressa no artigo 186 do Código Civil, e trata da responsabilidade civil entre pessoas físicas.

2.2.2 CULPA ADMINISTRATIVA

Apesar do avanço, a responsabilidade subjetiva ainda representava um encargo para o administrado, que teria que comprovar a culpa do agente público. Isso se tornava tão dificultoso que a vítima muitas vezes acabava por não optar em ser indenizada e arcava com seu prejuízo.

Porém, tal situação começou a mudar quando os publicistas franceses, no século XIX, para resguardar o direito das vítimas de danos administrativos resolveram pôr fim a incumbência de comprovar a culpa do agente público, passando a pessoa a ter que provar a culpa da administração pública manifesta em uma das seguintes hipóteses:

a) Inexistência de serviço público que por lei devesse ser prestado pelo Estado;

b) Serviço público existente, mas prestado com defeito pelo Estado; e

c) Serviço público prestado em atraso.

2.3 RESPONSABILIDADE OBJETIVA

A teoria objetiva surge na França em resposta à teoria subjetiva, por essa ser de difícil comprovação por parte da vítima da culpa seja do agente público ou da administração pública na ocorrência do dano.

Esta fase representa o ápice da evolução da responsabilidade civil do Estado e tem por base não mais a teoria da culpa e sim a chamada teoria do risco, bem mais favorável à vítima. Sua teoria determina a inversão do ônus probandi, ou seja, cabe agora ao Estado provar a sua não responsabilidade, o que facilitou o direito de reparação da vítima.

A Responsabilidade Objetiva encontra-se respaldada no direito brasileiro no art. 37 § 6º da CF/88, com repercussão no artigo 43 do Código Civil Brasileiro, conforme veremos adiante.

3. FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NO BRASIL

A Constituição Federal de 1988 trouxe uma considerável evolução no âmbito social e jurídico. Apelidada de Constituição Cidadã, consagrou definitivamente a formação e consolidação do Estado Democrático de Direito e iniciou uma nova fase, livre do autoritarismo e do abominável sistema ditatorial que regiam o Brasil.

Diante dessa evolução jurídico-social, a República Federativa do Brasil subordinara todos seus segmentos à Constituição Federal e às normas infraconstitucionais, ou seja, o Poder Público e seus três Poderes subordinaram-se à Lei Maior e passaram a se responsabilizar pelos danos eventualmente causados a terceiros.

Ratificando o fim do Estado autoritarista, a positivação pela Constituição Federal da Responsabilidade Civil por atos do Estado representou uma vitória do povo, consagrada por meio do artigo 37, § 6º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:  (…)

§ 6.º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.” (grifamos)
 

A professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro conceitua a responsabilidade estatal como “obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, matérias ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos”.[1]

No Brasil, como fundamento para a responsabilidade objetiva surgiu a teoria do risco administrativo, a qual informa que deve ser atribuída ao Estado a responsabilidade pelo risco criado por sua atividade administrativa. E, se essa atividade é exercida em favor de todos, o ônus deve ser assim suportado.

Dessa forma, para caracterização dessa responsabilidade deve-se estar presente o nexo de causalidade entre o evento danoso e o ato do agente público estatal, sempre permitindo a existência de contraprova de excludente de responsabilidade.

O dano nada mais é do que a ocorrência de um prejuízo de ordem material e moral a terceiros e, portanto, passível de reparação.

O nexo de causalidade refere-se à relação, ao liame, entre a conduta do agente e o dano ocasionado, sem o qual não se pode atribuir o dever de reparação do dano ao Estado.

As excludentes de responsabilidade podem ser por culpa exclusiva da vítima ou de terceiros, caso fortuito ou força maior, descaracterizando então a responsabilidade do Estado.

Os atos do Poder Público podem ainda ser comissivos ou omissivos e a doutrina não é unânime acerca da configuração de responsabilidade objetiva para ambos os casos.

Celso Antônio Bandeira de Mello e Maria Sylvia Zanella Di Pietro compartilham do entendimento de que os atos omissivos têm natureza subjetiva, uma vez que são sempre provenientes de atos ilícitos (eivados de negligência, imprudência ou imperícia) e, ainda, diretamente ligados à necessidade apuração (dilação probatória) que constate a suposta omissão. Assim, quando de natureza subjetiva, além do nexo causal e do dano, é preciso prova de culpa/falha do Estado na situação determinante.

Não divergem, pois, no que concerne aos atos comissivos – a responsabilidade deve ser objetiva (derivando de atos lícitos ou ilícitos).

Feitas as devidas colocações, passaremos a tratar da Responsabilidade do Estado por atos de tortura, mais especificamente no regime ditatorial vivido no Brasil.

4. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NO REGIME DITATORIAL
4.1 A RESPONSABILIDADE POR ATOS COMETIDOS EM PERÍODO DITATORIAL

Em 01 de Abril de 1964 o Brasil sofreu um golpe de Estado, quando o então Presidente João Goulart, eleito democraticamente, foi deposto dando lugar a um regime autoritário comandado por militares e apoiado por alguns setores da população.

Esse regime se manteve baseado em severas restrições de direitos e liberdades, sufocando violentamente qualquer anseio democrático, com restrições sobre a participação popular, a representação por meio de partidos políticos, a liberdade de expressão e a liberdade de reunião. Passeatas deveriam ser autorizadas; a censura atingia todos os meios de comunicação, inclusive as formas de expressão artística. Direitos humanos básicos, como a inviolabilidade da vida e da integridade física, foram desde o início agredidos.

Como qualquer ditadura, o regime buscou apagar qualquer foco de oposição política, utilizando-se de meios não permitidos pela própria legislação da época como tortura, homicídios, agressões físicas, sequestros, estupros e outros crimes. O próprio Estado brasileiro, de forma coordenada e consciente, voltava-se contra a população que deveria proteger, contra pessoas que ousavam tentar participar do poder político ou que questionavam as suas bases.

Em 1978, com a vitória da oposição e respectiva nomeação do general João Baptista Figueiredo, um processo de redemocratização começou a se estabelecer. Figueiredo decretou a Lei da Anistia em 1979, concedendo o direito de retorno para o Brasil aos políticos, artistas e demais brasileiros exilados e condenados por crimes políticos.

O período ditatorial durou aproximadamente 21 anos, se estendendo até meados de 1985. Com a Lei da Anistia, restou claro que o Estado, não responderia pelos seus atos de tortura e demais agressões à dignidade da pessoa humana.

Em 1988, foi promulgada a Constituição Federal, fruto do processo constituinte de maior participação política dos cidadãos e dos diversos setores organizados da sociedade na história brasileira, substituía as autoritárias cartas de 1967 e 1969. Uma nova Constituição para uma nova democracia. A esse período de sucessão de um regime de autoritarismo por um regime democrático tem-se dado o nome de “transição”.

Em seu artigo 5º, incisos III e XLIII, a Constituição Federal trouxe respectivamente que:

“III - Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. (...)

XLIII - A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça e de anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores, e os que, podendo evitar, se omitirem.”

Os incisos acima descritos são uma forma de normatização contrária à tortura e protetora da integridade física, assim como previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assim, a Carta Constitucional Brasileira se fundamenta nos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos já que estes oferecem base ao aspecto ético envolvido na fórmula política para o Estado Democrático de Direito marcando, no Brasil, o rompimento com a ordem jurídica ditatorial anterior que violava os Direitos Humanos e desconsiderava a dignidade humana.

Além disso, o Estado passa a responder objetivamente por atos danosos a terceiros, conforme se depreende do artigo 37, parágrafo 6º:

As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. (grifamos)

Isso significa dizer que, no regime democrático atual, o Estado tem plena responsabilidade por seus atos, e mais que isso, passa a ser um Estado garantidor, assegurando direitos humanos e a dignidade da pessoa humana.

Porém, conforme veremos a seguir, tais artigos entram em conflito com a Lei da Anistia decretada em 1979 que acabou por privilegiar não apenas os cidadãos lesados pelos atos de tortura, exilados e presos políticos do regime militar como também privilegiou os causadores de tais ações, ou seja, os agentes do Estado que de alguma forma violaram os direitos desses cidadãos ficaram impunes.

A falarmos em responsabilização por atos estatais que configuram crimes contra a humanidade, como ocorreu no período ditatorial, às teses construídas historicamente admitem duas possibilidades: a responsabilidade assumida pelo próprio Estado, e a responsabilidade pessoal dos agentes que cometeram tais crimes. Ambas só se tornam possíveis com a abertura de arquivos e documentos relativos ao período, possibilitando estabelecer a verdade sobre os acontecimentos.

A responsabilidade assumida pelo Estado não implica, mas também não impede, na investigação e responsabilização pessoal dos agentes pelos atos cometidos. Há quem acredite na inconveniência da responsabilização pessoal dos agentes em atos políticos de Estado, uma vez que tais atos foram cometidos não por ordem pessoal, mas por razões de estado, estando os agentes no cumprimento de ordens superiores.

A responsabilidade política do Estado, limitando-se à relação entre o próprio Estado e suas vítimas, convive harmonicamente com o instituto da anistia e será discutida na Lei 9.140/95.

Já a responsabilidade pessoal dos agentes, no âmbito penal, é que o instituto da anistia acaba por atingir, de forma que torna impassíveis de punição crimes atribuíveis aos agentes estatais. Dessa forma, cumpre discutir o instituto da anistia e sua utilização através da Lei 6.683 de 28/08/1979, questionando-se sua aplicabilidade e abrangência aos crimes praticados no Brasil durante o período ditatorial.

4.2 A LEI DA ANISTIA - LEI 6.683/79
4.2.1 CONTEXTO DA LEI DA ANISTIA

     A Lei da Anistia, conforme já vimos, encontra-se inserida no regime militar brasileiro de 1964/88. Essa lei promulgada em 1979, pelo então presidente da época João Batista Figueiredo, e foi fruto de uma era de transição juntamente com uma demasiada pressão social organizada pelos CBAs (Comitês Brasileiros pela Anistia), os quais haviam surgido em quase todas as grandes cidades brasileiras e empenhavam-se arduamente produzindo contrainformação que fizesse frente às informações que eram veiculadas pelo regime da época.

Os CBAs organizavam dossiês quantificando todo o aparato repressivo e evidenciando transgressões cometidas pelo aparelho estatal, levantando o número de pessoas que haviam desaparecido sob o regime, o número de pessoas exiladas e o número de pessoas que foram mortas, bem como, suas peculiares circunstâncias.

 No que concerne à sua constituição, vale mencionar a professora Souza:

“A base da constituição dos CBAs estava naqueles militantes que foram soltos ao longo da década e que, de alguma maneira, continuaram visitando presos ou militando nos movimentos sociais. Claro que os familiares eram a sustentação do processo, na medida em que a legitimidade de uma mãe sempre foi inquestionável. Contudo, naquela conjuntura, não se tratava mais de consolidar uma rede de solidariedade com os presos, mas de politizar o espaço das prisões e fazer com que as negociações – que estavam sendo gestadas nos gabinetes – fossem questionadas, para que viessem a público. Para esses militantes, não era aceitável uma anistia que pactuasse com o regime, que não fosse um instrumento de justiça e que não trouxesse garantias realmente democráticas para todos.”.[2] (grifamos)

4.2.2 DOS BENEFICIADOS PELA LEI DA ANISTIA

A Lei da Anistia tinha por escopo reparar o dano causado a todos aqueles que foram perseguidos e afetados pela repressão da Ditadura Militar. Entretanto, na prática, ela se demonstrou como uma anistia “de mão dupla”, pois, além de não anistiar os presos políticos condenados por crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, como pode-se observar no dispositivo transcrito abaixo, ela também favoreceu a não responsabilização dos militares e todos os envolvidos nas transgressões do regime, principalmente no que concerne as torturas tão características do período.

“Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado). (...)

§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.”. (... - grifamos)z

     A lei não se atenta também à outra característica tão própria dos regimes autoritários, que são as intimidações por torturas, os depoimentos forjados e as confissões falsas. Logo, é completamente plausível e asseguradamente real que, a muitas dessas pessoas perseguidas pelo regime, fossem imputados crimes graves como terrorismo, atentado pessoal, assalto e sequestro, como exemplifica Arns:

O emprego sistemático da tortura foi peça essencial da engrenagem repressiva posta em movimento pelo Regime Militar que se implantou em 1964. Foi, também, parte integrante, vital, dos procedimentos pretensamente jurídicos de formação da culpa dos acusados.”.[3]

     Por dedução lógica, o não benefício desses indivíduos pela Lei da Anistia somada a não responsabilização de seus algozes, se demonstra basicamente como uma dupla responsabilização a todas as vítimas.

A proporção de vítimas diretas do período é demasiada, conforme dados do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que veremos detalhes mais adiante, houve um total de 434 pessoas mortas e desaparecidas, 6.591 militares perseguidos pela ditadura, em face de apenas 377 agentes responsabilizados pela repressão.

Um exemplo para uma melhor visualização da necessidade de se trazer à luz os agentes públicos que violaram direitos humanos em Estado de Exceção, seria o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que chefiou o DOI-Codi do II Exército, em São Paulo e, sob sua gestão, foram registradas, de acordo com o relatório da Comissão da Verdade, ao menos 45 mortes e desaparecimentos forçados.

Ao Estado caberia, ao menos, reconhecer o passado, em razão de ter demonstrado incapacidade na imputação aos executores. O chamado direito a memória, é um mecanismo necessário para que tais transgressões não voltem a ocorrer novamente, como dispõe sobre a temática Arendt:

“Muitas pessoas hoje concordariam que não existe algo como culpa coletiva ou inocência coletiva, e que se algo assim existisse, nenhum indivíduo poderia jamais ser culpado ou inocente. Isso evidentemente não significa negar que existe algo como responsabilidade política, que, porém, existe completamente à parte daquilo que o membro individual do grupo fez e que, portanto, não pode nem ser julgada em termos morais nem ser levada perante uma corte criminal. Todo governo assume responsabilidade política pelos mandos e desmandos de seu predecessor, e toda nação, pelos feitos e desfeitos do passado.” (...)[4](grifamos)

     Outro exemplo de completa irresponsabilidade dos beneficiados pela Lei da Anistia são os responsáveis pelas incursões no famoso caso da Guerrilha do Araguaia.

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 Por consequência do endurecimento do Regime de Exceção face aos partidos políticos, alguns membros do Partido Comunista do Brasil se isolam em regiões mais afastadas com o intuito de formar um grupo de resistência rural na região do Bico do Papagaio, situada à esquerda do rio Araguaia.

Dentre o período de 1966/72, foram se incorporando a essa resistência rural, diversos militantes oriundos de movimentos estudantis, membros do Partido Comunista e camponeses da região, formando a Guerrilha do Araguaia, grupo que chegou ao número máximo de 90 pessoas.

Vislumbrando erradicar os militantes do Partido Comunista do Brasil e os camponeses que se somaram ao grupo na região, a ditadura militar realiza nove campanhas pelas localidades, totalmente confidenciais, no qual mobilizou um aparato de aproximadamente 4.000 militares. Tais incursões promoveram uma série de crimes contra a humanidade, não só aos guerrilheiros, mas também a toda comunidade de camponeses da região que não tinham relação com a guerrilha.

Dentre os crimes praticados nessas campanhas estão torturas, execuções sumárias e desaparecimentos forçados.

Diante de tais fatos, e, sendo o Brasil um regime democrático desde 1988, porém, não responsabilizando todos esses crimes contra a humanidade vividos apenas por conta da Lei da Anistia, foi necessária uma ADPF na tentativa de que tais agentes fossem responsabilizados.

4.3 - ADPF 153

“Nós sabíamos que seria inevitável aceitar limitações e admitir que criminosos participantes do governo ou protegidos por ele escapassem da punição que mereciam por justiça, mas considerávamos conveniente aceitar essa distorção, pelo benefício que resultaria aos perseguidos e às suas famílias e pela perspectiva de que teríamos ao nosso lado companheiros de indiscutível vocação democrática e amadurecidos pela experiência. (...) A idéia inicial de anistia era muito genérica e resultou no lema ‘anistia ampla, geral e irrestrita’, mas logo se percebeu que seria necessária uma confrontação de propostas, pois os que ainda mantinham o comando político logo admitiram que seria impossível ignorar a proposta dos democratas, mas perceberam que uma superioridade de força lhes dava um poder de negociação e cuidaram de usar a idéia generosa de anistia para dizer que não seria justo beneficiar somente presos políticos e exilados, devendo-se dar garantia de impunidade àqueles que, segundo eles, movidos por objetivos patrióticos e para defender o Brasil do perigo comunista, tinham combatido a subversão, prendendo e torturando os inimigos do regime. Nasceu assim a proposta de ‘anistia recíproca’.” – Dalmo Dallari em depoimento[5].

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, de relatoria do Ministro Eros Grau e proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB em face da Presidência da República e o Congresso Nacional teve, como primário objetivo a declaração da não recepção pela Constituição de 1988 do § 1º do artigo 1º da Lei 6.683/79. O dispositivo em contenda concederia, em dilapidação hermenêutica, a anistia a todos que cometeram crimes considerados políticos do período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, inclusive aqueles conexos praticados pelos agentes da Repressão. Da lei:

 “Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.

§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.” (...)

Na inicial, argumenta-se pela interpretação da norma conforme a Constituição e o não recebimento da Lei 6.683/79.

A controvérsia apontada pelo Conselho encontra-se na incompatibilidade do âmbito de aplicação do estabelecimento da graça por conta de proposital obscuridade da letra da lei, ou seja, se a anistia se estenderia também aos agentes públicos responsáveis pelos mais diversos crimes, como o de homicídio, de desaparecimento forçado, de abuso de autoridade, das lesões corporais, de estupro e de atentado violento ao pudor contra opositores políticos ao regime militar em dado momento histórico.

Para o Arguente, a recepção do parágrafo em questão implicaria em afronta ao dever do Poder Público em não ocultar a verdade, bem como dos princípios democrático e republicano, mas principalmente da dignidade da pessoa humana, alegando que a simples reparação pecuniária concedida aos atingidos pelos atos violentos cometidos pelo Estado não seria a correta forma de se solucionar a problemática dos danos causados à sociedade pelo regime.

Além das partes citadas, houveram vários interessados integrados ao processo, dentre eles a Associação Juízes para a Democracia, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL, a Associação Brasileira de Anistiados Políticos – ABAP e a Associação Democrática e Nacionalista de Militares, de modo a prestar informações à Tribuna.

Dentre os argumentos contra o entendimento do Conselho Federal da OAB, inicialmente foram levantadas cinco preliminares visando evitar a discussão do mérito. A primeira, pela Advocacia Geral da União, foi a ausência de comprovação de controvérsia constitucional com relação a Lei de Anistia, requisito para o ajuizamento. Tal questão foi afastada pelo Ministro Eros Grau, uma vez que tal comprovação só se faria necessária em Arguições incidentais, bastando apenas a demonstração de controvérsia jurídica em qualquer sede sobre a validade da norma, sendo notória a polêmica da interpretação.

A segunda foi a prescrição dos crimes praticados. A perda do direito de ajuizar a ação foi superada pelo entendimento que o tempo decorrido deveria ser verificado caso a caso, dado o período substancial da ocorrência dos delitos, como discutido pelo Ministro Marco Aurélio.

As demais preliminares afastadas pelo Supremo Tribunal Federal diziam respeito ao fato do Arguente não ter indicado quais foram às autoridades que à época estariam desrespeitando os preceitos fundamentais, nem questionado todas as normas que envolveriam a anistia (Emenda Constitucional nº 24) e a inépcia da inicial, vez que a Lei de Anistia teria exaurido seus efeitos no mesmo momento que entrou no mundo jurídico.

Julgada a ação em 2010, em duas sessões, foram os votos em sua maioria pela improcedência. O voto do relator foi o vencedor, ponderando a situação político-social do momento de edição da norma e ressaltando que a revisão do acordo político de transição do regime militar para a democracia não é cabido ao Poder Judiciário, mas ao Legislativo, como aconteceu com o Chile e sua “Ley de Amnistía” e a Argentina e a “Ley de Pacificación”. Para esta perspectiva o Conselho Federal da OAB trouxe mais argumentos políticos a jurídicos, não sendo cabida esta argumentação para a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

Em suas observações finais, o Relator ainda afirma que o posicionamento pela improcedência não exclui o repúdio as modalidades mais diversas de tortura e que certas coisas não podem ser esquecidas, de modo a não permitir que estas ocorram novamente.

Pela improcedência também votaram as ministras Cármen Lúcia Antunes Rocha e Ellen Gracie, e os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso.

Em visão minoritária, os ministros Ricardo Lewandowiski e Ayres Britto defenderam pela parcial procedência e sucessiva revisão do artigo de lei, por entenderem inexistente o caráter amplo, geral e irrestrito da anistia e incompatíveis certos crimes com a ideia de criminalidade política.

Apesar da decisão definitiva do STF, o Conselho Federal da OAB apresentou embargos de declaração, que aguardam julgamento.

A primária questão da Lei de Anistia seria a superação das questões nascidas com o Regime Militar, o que claramente não ocorreu de fato, tanto pela sociedade em geral quanto pelas próprias instituições estatais. Se a própria Corte Interamericana já afirmou que a Lei de Anistia é incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, por inviabilizar a devida apuração e a punição dos agentes de Estado que praticaram atos de violação dos direitos humanos durante o período militar, resta esperar que o Estado per si proclame este entendimento.

4.4 A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E O STF

Muitos juristas entendem que a decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (“CIDH”) no Caso Gomes Lund deva ganhar prevalência sobre a decisão do STF na APDF n° 153/DF. Primeiramente por uma questão que não deveria envolver maiores discussões, qual seja, a da persecução penal de crimes de desaparecimento forçado; em seguida, a possibilidade de persecução penal para outras violações de direitos humanos; e por fim, demonstrar-se-á como o STF faltou ao seu papel de “guardião da Constituição” em vista da decisão que tomou e do conceito já discutido de patriotismo constitucional.

A CIDH decidiu no Caso Gomes Lund:

”As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a 268 respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.” [6]

A CIDH determinou dessa forma, que o Estado brasileiro promova a investigação completa dos fatos que envolvam de alguma forma, o desaparecimento forçado de vítimas por ocasião da Guerrilha do Araguaia, bem como a responsabilização criminal, com todas as sanções que a acompanham.

Tal determinação não contradiz a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n° 153/DF, não obstante esteja ela em pleno desacordo com as disposições constitucionais e do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Isto porque, ao julgar a Extradição n° 9741, o Supremo Tribunal Federal deu ao crime de desaparecimento forçado as mesmas características nomeadas pela CIDH no Caso Gomes Lund.

Naquela extradição, relatada originariamente pelo Ministro Marco Aurélio, o Governo da Argentina requereu a extradição de Manoel Cordeiro Piacentini pela prática, por duas vezes, dos crimes previstos nos artigos 144, alínea 1ª, e 210, do Código Penal Argentino³. O Governo do Uruguai havia também feito pedido extradicional no mesmo sentido. O extraditado era acusado do desaparecimento de Adalberto Waldemar Soba Fernandez, ocorrido em 1976 na Argentina; segundo o Governo deste país, ele, Major do Exército Uruguaio, estaria envolvido na chamada Operação Condor.

Nota-se, dessa forma, que a CIDH não tomou uma decisão apenas para solucionar os problemas da Guerrilha do Araguaia. As violações de direitos humanos no período ditatorial de 1964-1985 no Brasil foram inúmeras e não se restringem àqueles fatos. O Direito Internacional dos Direitos Humanos foi violado de forma sistemática pelo regime de exceção. Com isto, não seria lógico que todos os casos que seguissem os padrões de violação de direitos humanos precisassem ser levados à CIDH para, uma vez que, só após esgotada sua jurisdição, se pudesse se falar em responsabilização.

Portanto, o cumprimento devido da decisão da CIDH no Caso Gomes Lund, começa com as investigações e responsabilizações pelos desaparecimentos forçados da Guerrilha do Araguaia, mas não termina aqui caso se queira dar curso ao projeto constituinte de 1988, projeto este pautado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. Em um ponto, há menos o que se discutir: crimes de sequestro ou sequestro qualificado, são, como já reconheceu o Supremo Tribunal Federal, equivalentes ao crime de desaparecimento forçado, perpetuando-se a sua ocorrência enquanto não houver notícias da vítima[7].

O Ministério Público Federal já havia feito algumas tentativas nesse sentido, antes mesmo das decisões do STF e da CIDH. Nos autos de n° 2008.61.81.013434-2, buscou-se reabrir a investigação da morte de Vladimir Herzog. Um dos membros da instituição, contrário a representação de seus colegas Eugenia Fávero e Marlon Weichert pela reabertura das investigações, requereu o arquivamento do inquérito policial, contrariando o pensamento dos representantes no sentido de se tratar, na discussão, de crime contra a humanidade, portanto imprescritível, por conseguinte, a Justiça Federal determinou o arquivamento do inquérito[8].

Representação também foi apresentada para a investigação das circunstâncias do sequestro qualificado de Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, que envolveria Carlos Alberto Brilhante Ustra e José Anselmo dos Santos, o “Cabo Anselmo”. Esta representação culminou em uma denúncia ofertada pelo Ministério Público Federal contra Carlos Alberto Brilhante Ustra e Dirceu Gravina pelo crime objeto da representação.

A denúncia foi, entretanto, rejeitada pelo Juiz Federal Márcio Rached Millani. Novamente, fizeram-se ecoar os efeitos da decisão na ADPF n° 153/DF: a decisão do Caso Gomes Lund não teria, segundo o juízo federal, como se sobrepor à decisão do STF em vista da suposta impossibilidade de que documentos normativos internacionais posteriores à Lei de Anistia pudessem romper com ela.

Porém, não é disto que se trata quando a CIDH discute a continuidade do desaparecimento forçado, justamente porque aqui o crime ainda está a ocorrer. Além disto, no que se refere à aplicação do entendimento perfilhado na Extradição n° 9741, entendeu-se que haveriam elementos fáticos que apontariam para a já ocorrência da morte da vítima – ao contrário do que teria se dado no processo extradicional, em que o STF permaneceu apenas em juízo de delibação. No mais, a Lei 9.140/1995 teria procedido ao reconhecimento da morte presumida para “todos os efeitos legais”, inclusive o de evitar a persecução penal. Por fim:

“Constata-se, destarte, a total incompatibilidade entre o decidido pelo Supremo Tribunal Federal e o decidido pela Corte Interamericana e, seja qual for o caminho escolhido, haverá o desrespeito ao julgado de uma delas. Entendo, assim, que somente o Supremo Tribunal Federal tem competência para rever sua decisão, devendo a questão ser novamente submetida à sua apreciação. Enquanto isto não ocorrer, não há como negar aplicação ao julgado de nossa Corte Constitucional” [9].

Dessa forma, os crimes de desaparecimento forçado ou sequestro não podem se tornar impuníveis por meras presunções, ainda que muitas vezes a ordem dos fatos as imponham, ainda há crime a ser perpetrado sendo dessa forma necessária a investigação. A decisão judicial supracitada despreza o papel do Direito Internacional dos Direitos Humanos e reflete a mesma noção que o STF quis fazer propagar: a de que ele não reconhece qualquer autoridade às decisões que sejam tomadas no nível internacional. Mostra-se o entendimento de que o Estado brasileiro não deve obrigações jurídicas a nenhuma entidade internacional, nem mesmo àquela em que o mesmo ele submeteu-se.

As citadas investigações criminas, demonstram dessa forma a necessidade de se reunir esforços, após a decisão da CIDH, para empreender novas investigações. A não ser no caso de Vladimir Herzog[10], nenhuma delas foi atingida pela coisa julgada material e, ainda assim, esta coisa julgada, como determinou a própria CIDH, não pode servir de óbice para as investigações. Portanto, fica evidente que o STF descumpriu seu papel institucional ao julgar a ADPF n° 153/DF e de que se deve dar o cumprimento mais amplo possível à decisão da CIDH no Caso Gomes Lund.

4.5 A COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE

O Brasil nunca teve interesse em examinar de forma minuciosa o resultado da violência que marcou as décadas que o país viveu sobre opressão no período da ditadura militar. Ainda hoje, passadas mais de duas décadas de período de transição, os anseios dos sobreviventes deste período, bem como as famílias das vitimas, de ver os culpados pelos crimes cometidos devidamente responsabilizados, ainda não foi atendido.

Em um cenário de grande pressão social, em 18 de novembro de 2011 foi sancionada a Lei nº 12.528, que criou a Comissão Nacional de Verdade, cujo objetivo é examinar e esclarecer todos os pormenores das graves violações de direitos humanos cometidas no período de mais de quarenta anos da história recente do país, abrangendo o período de 1946 até 1988, não sendo tal analise restrita ao período do governo militar, apesar deste período ser o mais critico para os estudos acima referidos.

Vejamos a definição de Comissão da Verdade:

“As Comissões da Verdade são mecanismos oficiais, não-judiciais e temporários de apuração de graves violações de direitos humanos ocorridas em um determinado período de tempo (dois anos, no caso da Comissão brasileira)”.[11] “Normalmente instituídas em países emergentes de períodos de exceção ou de guerras civis, têm como propósito investigar um padrão de abusos e reconhecer publicamente crimes previamente não-divulgados, buscando modificar a maneira como um país entende e aceita parte dos aspectos mais controversos de sua história recente.”[12]

De forma breve, analisaremos os dois principais pontos basilares da Lei que criou a Comissão nacional da Verdade, sendo eles (i) a finalidade de criação e (ii) os objetivos da Comissão. Vejamos abaixo.

O art. 1º da lei nº 12.528 diz que a Comissão é criada com a finalidade de:

“Examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias” (período esse que vai de 18 de setembro de 1946 até 05 de outubro de 1988, data de promulgação da nova Constituição Federal), “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.

Já o artigo 3º estabelece os objetivos da Comissão:

Art. 3o - São objetivos da Comissão Nacional da Verdade:

I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1o ;

II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior;

III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e  as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1o , suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;

IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1o da Lei no 9.140, de 4 de dezembro de 1995;

V - colaborar com todas as instâncias do Poder Público para apuração de violação de direitos humanos, observadas as disposições das Leis nos 6.683, de 28 de agosto de 1979, 9.140, de 1995, e 10.559, de 13 de novembro de 2002;

VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e

VII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações.

A elaboração da Comissão Nacional da Verdade simboliza mais uma fase do processo de acerto de contas do Estado Brasileiro para com a sociedade, em especial, com as vitimas do período militar, bem como as suas famílias, promovendo uma espécie de “reconciliação nacional”.

No ato da instalação da Comissão Nacional da Verdade, a presidente Dilma destacou:

(...) “O Brasil precisa conhecer a totalidade de sua história e disse que as investigações não serão movidas pelo ódio ou revanchismo. (...) A ignorância sobre a história não pacifica, pelo contrário, mantém latente mágoas e rancores". (...) Parafraseando Galileu Galilei, a presidenta lembrou que "a força pode esconder a verdade, a tirania pode impedi-la de circular livremente, o medo pode adiá-la, mas o tempo acaba por trazer a luz. Hoje, esse tempo chegou". (...) "O Brasil merece a verdade, as novas gerações merecem a verdade e, sobretudo, merecem a verdade factual aqueles que perderam amigos e parentes e que continuam sofrendo como se eles morressem de novo e sempre a cada dia. É como se disséssemos que, se existem filhos sem pais, se existem pais sem túmulo, se existem túmulos sem corpos, nunca, nunca mesmo, pode existir uma história sem voz. E quem dá voz à história são os homens e as mulheres livres que não têm medo de escrevê-la". (...)[13]

Claro que a instauração de uma comissão para apurar fatos que tomavam rumo de serem esquecidos na história do país gerou grande discussão. Em geral, a proposta foi bem aceita pela sociedade, pelos representantes de grupos que atuam em defesa dos direitos humanos, a proposta também foi recebida pela OAB.

Já em sentido contrário, principalmente, os líderes das forças militares (Marinha Aeronáutica e Exercito) tentaram fazer oposição, ameaçando o governo com possíveis demissões caso a proposta da Comissão Nacional da Verdade não fosse revista. Entretanto, o projeto foi para frente e a Comissão pode apresentar os resultados esperados pela sociedade.

Dentre os trabalhos realizados pela Comissão da verdade, podemos identificar:

(i)          Oitiva de testemunhas, bem como dos agentes que participaram dos atos de repressão;

(ii)Promoção de audiências publicas e sessões onde foram apresentados os relatórios preliminares de pesquisa. Cabe destacar, que par agilizar o trabalho de elaboração do relatório principal da Comissão da Verdade, conforme consta do art. 11 da Lei nº 12.528, foi necessário adotar uma parceria com os Estados Federados, os quais puderam criar Comissões Estaduais da Verdade que ajudaram na busca e na formulação de relatórios, dentre outras providências. [14] Além da cooperação de órgãos internacionais e da sociedade civil.

(iii)Elaborou laudos periciais sobre as violações identificadas, apresentou informações aos órgãos públicos competentes para que estes auxiliassem na localização/identificação dos restos mortais dos desaparecidos.[15]

Finalmente, em 10 de dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade entregou o relatório final de seus trabalhos à atual presidente da república, onde a conclusão foi a seguinte:

 “(...) A prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, violência sexual, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáver resultou de uma política estatal, de alcance generalizado contra a população civil, caracterizando-se como crimes contra a humanidade.” (...) [16]

Além disso, foram identificados:

  1. 434 casos de mortes e desaparecimentos de responsabilidade do Estado brasileiro durante o período de 1946-1988, onde essas pessoas foram presos/sequestrados pelos militares; nunca houve registro de suas prisões em qualquer tribunal que seja, ou então em algum presidio, ou casa de custodia; os advogados dessas pessoas sequer foram notificados à época dos fatos; e até hoje as famílias procuram o corpo dessas vitimas. [17]
  2.  Em capítulo referente à autoria de graves violações de direitos humanos, enumerou 377 agentes públicos envolvidos em distintos planos de participação: responsabilidade políticos-institucional; responsabilidade pelo controle e gestão de estrutura e procedimentos; e responsabilidade pela autoria direta de condutas que materializaram as graves violações. (Ibidem)

Além disso, a Comissão Nacional da Verdade, a fim de prevenir violações e garantir o Estado democrático de direito no Brasil, destacou as seguintes medidas como necessárias:

(i) o reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar; e

(ii) a determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica - criminal, civil e administrativa - dos agentes públicos que deram causa às graves violações, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos na Lei n. 6683/1979 (n. 2).[18]

4.6 OS DANOS MORAIS NOS CASOS DE TORTURA – LEI 9.140/95

Além do reconhecimento dos crimes praticados, e da responsabilização das pessoas culpadas, as famílias das vitimas e os sobreviventes, tem assegurado o direito de receber indenização por danos morais pelo sofrimento vivido nos tempos do período ditatorial.

Neste ponto não estudaremos a questão da justiça punitiva, pois não é o enfoque do presente estudo, analisaremos questões relativas à indenização que trata a Lei 9.140/95.

Existem duas grandes discussões a respeito das indenizações que devem ser pagas as vitimas dos abusos ocorridos no regime militar. A primeira discussão é relativa ao tempo para propor ação de indenização, e a segunda em relação a quem poderá propor tal ação, bem como quem poderá recebê-la.

A Lei nº 9.140/95 dispõe:

“Art. 10, § 1º O pedido de indenização poderá ser formulado até cento e vinte dias a contar da publicação desta Lei. No caso de reconhecimento pela Comissão Especial, o prazo se conta da data do reconhecimento.”

Sendo esta a primeira grande polêmica, se este artigo fosse aplicado, em regra, grande parte das pessoas atingidas pelos eventos danosos da época da ditadura não conseguiriam pleitear suas devidas indenizações, vez que somente com a edição da referida lei surgiu o direito de pleitear judicialmente a pretendida reparação. Sendo este prazo prescricional.

Apesar disso, o Superior Tribunal de Justiça, vem entendendo que em casos de violação de direitos fundamentais, a imprescritibilidade deve ser a regra, podendo qualquer pessoa que se sentir lesada intentar a ação a qualquer tempo.

Além disso, firmou-se o entendimento que as indenizações previstas na Lei nº 9.140/95 abrangem todas as ações de cunho indenizatório, relativos aos atos arbitrários ocorridos no período ditadura política brasileira. Nesse sentido, seguem diversos julgados aludindo ao tema.

 ADMINISTRATIVO. ATIVIDADE POLÍTICA DURANTE A DITADURA MILITAR. PRISÃO E TORTURA. INDENIZAÇÃO. LEI Nº 9.140/1995. INOCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. REABERTURA DE PRAZO. I - "Em casos em que se postula a defesa de direitos fundamentais, indenização por danos morais decorrentes de atos de tortura por motivo político ou de qualquer outra espécie, não há que prevalecer a imposição qüinqüenal prescritiva." (REsp nº 379.414/PR, Relator Ministro JOSÉ DELGADO, DJ de 17/02/2003, p. 225)...II - O artigo 14 da Lei nº 9.140/95 não restringiu seu alcance aos desaparecidos políticos, pelo contrário, ele abrangeu todas as ações indenizatórias decorrentes de atos arbitrários do regime militar, incluindo-se aí os que sofreram constrições à sua locomoção e torturas durante a ditadura militar. Em assim fazendo, reabriram-se os prazos prescricionais quanto às indenizações pleiteadas pelas pessoas ilegalmente presas e torturadas durante o período. III - Recurso especial improvido. (REsp 529.804/PR, rel. Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, unânime, julgado em 20/11/2003, DJ de 24/05/2004 - grifamos).

ADMINISTRATIVO. ATIVIDADE POLÍTICA. PRISÃO E TORTURA. INDENIZAÇÃO. LEI Nº 9.140/1995. INOCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. REABERTURA DE PRAZO. 1. Ação de danos morais em virtude de prisão e tortura por motivos políticos, tendo a r. sentença extinguido o processo, sem julgamento do mérito, pela ocorrência da prescrição, nos termos do art. 1º, do Decreto nº 20.910/1932. O decisório recorrido entendeu não caracterizada a prescrição. 2. Em casos em que se postula a defesa de direitos fundamentais, indenização por danos morais decorrentes de atos de tortura por motivo político ou de qualquer outra espécie, não há que prevalecer a imposição qüinqüenal prescritiva. 3. O dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais conseqüentes da sua prática. 4. A imposição do Decreto nº 20.910/1932 é para situações de normalidade e quando não há violação a direitos fundamentais protegidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela Constituição Federal. 5. O art. 14, da Lei nº 9.140/1995, reabriu os prazos prescricionais no que tange às indenizações postuladas por pessoas que, embora não desaparecidas, sustentem ter participado ou ter sido acusadas de participação em atividades políticas no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e, em conseqüência, tenham sido detidas por agentes políticos. 6. Inocorrência da consumação da prescrição, em face dos ditames da Lei nº 9.140/1995. Este dispositivo legal visa a reparar danos causados pelo Estado a pessoas em época de exceção democrática. Há de se consagrar, portanto, a compreensão de que o direito tem no homem a sua preocupação maior, pelo que não permite interpretação restritiva em situação de atos de tortura que atingem diretamente a integridade moral, física e dignidade do ser humano. 7. Recurso não provido. Baixa dos autos ao Juízo de Primeiro Grau. (REsp 379.414/PR, rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, maioria, julgado em 26/11/2002, DJ de 17/02/2003- grifamos).

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. PRISÃO ILEGAL E TORTURA DURANTE O PERÍODO MILITAR. PRESCRIÇÃO QÜINQÜENAL PREVISTA NO ART. 1º DO DECRETO 20.910/32. NÃO-OCORRÊNCIA. IMPRESCRITIBILIDADE DE PRETENSÃO INDENIZATÓRIA DECORRENTE DE VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS DURANTE O PERÍODO DA DITADURA MILITAR. RECURSO INCAPAZ DE INFIRMAR OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA. AGRAVO DESPROVIDO. 1. São imprescritíveis as ações de reparação de dano ajuizadas em decorrência de perseguição, tortura e prisão, por motivos políticos, durante o Regime Militar, afastando, por conseguinte, a prescrição qüinqüenal prevista no art. 1º do Decreto 20.910/32. Isso, porque as referidas ações referem-se a período em que a ordem jurídica foi desconsiderada, com legislação de exceção, havendo, sem dúvida, incontáveis abusos e violações dos direitos fundamentais, mormente do direito à dignidade da pessoa humana. 2. "Não há falar em prescrição da pretensão de se implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade" (REsp 816.209/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 3.9.2007). 3. "No que diz respeito à prescrição, já pontuou esta Corte que a prescrição qüinqüenal prevista no art. 1º do Decreto-Lei n. 20.910/32 não se aplica aos danos morais decorrentes de violação de direitos da personalidade, que são imprescritíveis, máxime quando se fala da época do Regime Militar, quando os jurisdicionados não podiam buscar a contento as suas pretensões" (REsp 1.002.009/PE, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de 21.2.2008). 4. Agravo regimental desprovido. (AgRg no Ag 970.753/MG, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/10/2008, DJe 12/11/2008 - grifamos).

Sendo assim, podemos concluir que a jurisprudência é unanime tem entendido que as ações de indenização por danos que sejam derivados de atos de tortura praticados durante o regime militar são imprescritíveis, podendo então ser ajuizadas a qualquer tempo.

Outra discussão, menos polêmica do que o prazo de prescrição da ação é a questão da legitimidade para propor a ação de indenização. Em primeiro lugar, precisamos considerar que o dano moral, envolve direito da personalidade, que são inalienáveis.

Sendo então, um direito personalíssimo por natureza, o pleito por danos morais deveria ser, via de regra, intransmissível. Entretanto, há de se esclarecer que o direito de pleitear reparação de danos morais tem caráter estritamente patrimonial, podendo ser então pleiteado por pessoa diversa que o titular do direito, no caso de sua morte.

Desta forma, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região confirmou o direito dos herdeiros de uma vítima das torturas praticadas no período ditatorial à indenização por dano moral por causa da perseguição política sofrida.[19] Vejamos a ementa do caso:

EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE  INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. PRISÃO, TORTURA E PERSEGUIÇÃO. REGIME MILITAR. PRESCRIÇÃO AFASTADA. LEGITIMIDADE DO ESPÓLIO. TRANSMISSIBILIDADE DO DIREITO. VALOR DA INDENIZAÇÃO REDUZIDO. JUROS DE MORA. TERMO INICIAL. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 54 DO STJ. APLICAÇÃO DA LEI N° 11.960/09.1. A parte autora autor busca a condenação da União e do Estado de São Paulo ao pagamento de danos morais em decorrência de alegada perseguição política proveniente de atos cometidos durante os governos militares.2. A  violação aos direitos da personalidade gera o direito de reparação, de cunho patrimonial, transmitindo-se com o falecimento do titular do direito, ou seja, tanto os herdeiros quanto o espólio têm legitimidade ativa para ajuizar ação de reparação por danos morais, pois o direito que se sucede é o direito de ação.3. No presente caso, onde se discute ato que atenta direta e profundamente contra o direito inalienável à dignidade da pessoa humana, consistente em um dos fundamentos basilares da República, não há falar em prescrição da ação.4. Dispõe o Juiz de liberdade para apreciar, valorar e arbitrar a indenização dentro dos parâmetros pretendidos pelas partes, devendo-se levar em conta, para se fixar o seu quantum: o tipo de dano, o grau de culpa com que agiu o ofensor, a natureza punitivo-pedagógica do ressarcimento, que tem por fim potencializar o desencorajamento da reiteração de condutas lesivas de igual conteúdo, e a situação econômica e social de ambas as partes, a vítima e o autor do fato.5. Embora o valor seja superior ao costumeiramente fixado pela Turma, hei por bem em mantê-lo tendo em conta a especialíssima situação em que submeteram-se crianças - filhos do torturado - sujeitos a assistir às sevícias.6. Os juros das obrigações líquidas vencem a partir da data do vencimento da obrigação e, em sentido contrário, em relação às obrigações ilíquidas em que se faz necessário o reconhecimento judicial, os juros vencem a partir da data da citação, diante da peculiar situação dos autos, os juros devem fluir a partir da data da citação, visto que se trata, na espécie, de obrigação ilíquida, só delineada por força da ação judicial, não incidindo, pois, o enunciado sumular nº 54/STJ.7. Os percentuais de juros de mora incidentes sobre os valores resultantes de condenações proferidas contra a Fazenda Pública após a entrada em vigor da Lei 11.960/09, que alterou a redação do artigo 1º-F da Lei 9.494/97, acrescentado pela Medida Provisória 2.180/01, devem observar os critérios nela disciplinados, mesmo nos processos em andamento, visto tratar-se de norma de natureza eminentemente processual, conforme já decidido pelo STJ, no julgamento dos EREsp 1.207.197.8.O arbitramento dos honorários de advogado, nas causas em que o ente público for a parte vencida, devem ser fixados consoante apreciação equitativa do juiz, nos termos do art. 20, § 4º, do CPC, observadas as normas das alíneas a, b e c, do § 3º daquele dispositivo, dessa forma e, considerando a natureza e o grau de zelo do causídico, bem como que feito demandou a realização de audiência de instrução e julgamento, apresenta-se razoável e compatível a fixação em 10% (dez por cento) do valor da condenação, devendo ser mantido. (Apelação nº 2006.61.00.003650-2/SP, Desembargador Federal NERY JUNIOR, Publicado em 24/03/2014 - grifamos).

Assim, sendo, podemos concluir que todas as famílias que se sentirem lesadas por atos praticados na época do regime militar, poderão pleitear a devida indenização, no tempo que for, inclusive, por meio de outros familiares, nos casos em que a vitima não está mais viva.

5. CONCLUSÃO

A Responsabilidade Civil do Estado evoluiu conforme a história. Hoje, podemos considerá-la satisfatória ao ponto que o Estado se imputa responsável por tudo que se propõe a fazer e que, caso cause danos a outrem, deverá indenizá-lo conforme o caso.

No Brasil, vivemos em um regime democrático desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Nela, a Responsabilidade Civil do Estado está prevista expressamente no artigo 37, parágrafo 6°, não deixando dúvidas quanto a seu conteúdo.

Porém, o Brasil veio de um regime totalitário e de repressão, e pudemos observar que nesse período o Estado se eximiu de seus deveres, e mais que isso, causou propositalmente diversas agressões contra a dignidade da pessoa humana. Com a Lei da Anistia em 1979, e sua interpretação de mão de dupla, ou seja, beneficiando tanto os oprimidos quanto os opressores, houve um período de transição até a promulgação da Constituição de 88 e nada foi feito em relação ao obscuro período do regime militar.

Já houve diversas tentativas de fazer com que o Estado reconheça seu passado e se responsabilize por tais atos. Em 1995 foi instituída uma lei que reconhecia a responsabilidade por danos morais aos familiares de desaparecidos no regime em questão. Porém, isso não é o suficiente. A ADPF 153, a Comissão Nacional da Verdade e a Corte Interamericana de Direitos Humanos lutam diariamente para que o Estado reconheça que os aos agressores também devem ser imputados os crimes respectivos que cometeram, colocando assim um ponto final nesse passado que, ainda hoje.

Após diversas tentativas, chegamos a então polêmica Comissão Nacional da verdade, que sob um manto de diversas criticas, pode apurar a autoria de diversos crimes, bem como solucionar casos em que as famílias aguardavam ansiosamente um resultado, para concluir o que aconteceu com seus parentes e familiares, além de poder começar a busca pelos restos mortais, dentre outras providencias.

Por fim, podemos concluir que, em relação às ações de indenização, nossos Tribunais têm decidido de maneira unanime no sentido de que as ações são imprescritíveis e que os danos morais decorrentes de violação de direito fundamental, como no caso das vitimas das torturas, deve obedecer a essa regra, não havendo porque prevalecer à prescrição de cinco anos. Além disso, também já é entendimento confirmado que os herdeiros e outras pessoas da família das pessoas torturadas poderão pleitear danos morais em razão dos eventos.

Desta forma, encerramos o presente trabalho concluindo que, o Estado Brasileiro, após a instauração da Comissão Nacional da Verdade, e após o reconhecimento do direito a indenização das pessoas que foram torturadas, bem como assegurando o direito aos seus herdeiros, está caminhando em passos largos para a reparação dos danos causados.

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Trabalho acadêmico explorando a responsabilidade civil do estado nos atos de tortura cometidos no regime militar

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