1.0 INTRODUÇÃO
Embora consagrada doutrina afirme a adoção do sistema do civil law pelo ordenamento pátrio, renomados estudiosos há muito referem mudança no paradigma, ante a criação de institutos voltados à racionalização do processo civil, como as Súmulas Vinculantes e os julgamentos por amostragem.
Nesse sentido, o Código de Processo Civil promulgado no ano de 2015 apresentou, em seu art. 976 e seguintes, um novo instituto jurídico, denominado Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR). Cuida-se de técnica semelhante aos julgamentos por amostragem previstos no Código Buzaid, que submete à análise do segundo grau de jurisdição um “processo-modelo” que ainda se encontre na fase cognitiva, para que seja utilizado como padrão decisório.
A novidade tem por fito reduzir a litigiosidade repetitiva mediante cisão do processo cognitivo e homenageia baluartes da processualística moderna, promovendo a efetividade jurisdicional com a devida observância de princípios como a razoável duração do processo.
Assim, o presente estudo busca analisar o novel instituto, destacando feixes mais relevantes, o que foi incorporado de conceitos já conhecidos, o que ainda não se conhecia, bem como os assuntos controversos, a fim de auxiliar a comunidade acadêmica na compreensão de um dos pontos nevrálgicos da nova legislação.
2.0 FUNDAMENTAÇÃO
2.1 O PRECEDENTE JUDICIAL
O precedente judicial vem adquirindo crescente força no direito brasileiro, como forma de fazer frente à morosidade do legislativo ante à premente necessidade dos casos concretos. Nesse sentido, impende sejam estudados os países de origem anglo-saxônica, onde mais se estudou o sistema do common law, a fim de melhor entender a teoria dos precedentes judiciais.
Assim, informado pela teoria do stare decisis (stare decisis et non queta movere) e da doctrine of binding precedent, o common law tem por base o precedente judicial, que pode ser entendido como toda decisão tomada, no uso do poder jurisdicional, à luz de um caso concreto, cuja norma individual criada sirva de diretriz para o julgamento ulterior de casos assemelhados.
Nesse sentido é que CRUZ E TUCCI destacam:
“Todo precedente é composto de duas partes distintas: a) as circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; e b) a tese ou o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório”[1]
Isto é, a eficácia persuasiva ou mesmo obrigatória de um precedente judicial não é ampla e irrestrita, limitando-se apenas à tese ou princípio jurídico assentado na motivação. Segundo os autores acima citados, este elemento do precedente, conhecido entre os ingleses como ratio decidendi e entre os norte-americanos como holding, é composto por (i) indicação dos fatos relevantes da causa – statement of material facts, (ii) raciocínio lógico jurídico da decisão – legal reasoning e (iii) juízo decisório – judgement.
Note-se que há argumentos no juízo decisório que não formam o precedente, porquanto expostos apenas de passagem na motivação da decisão. Cuida-se do obter dictum, que constitui opinião jurídica adicional, paralela e dispensável para a fundamentação e conclusão da decisão, mencionada pelo juiz “incidentalmente”[2]
A eficácia dos precedentes varia sobremaneira conforme cada ordenamento jurídico. No Brasil, pode-se notar a existência de precedentes vinculantes/obrigatórios (binding precedents), como os firmados em Súmula Vinculante, em controle concentrado de constitucionalidade, bem como aqueles sob a sistemática da repercussão geral no recurso extraordinário ou recurso especial repetitivo.
Há também os precedentes obstativos da revisão de decisões mediante remessa necessária, os persuasivos como os de uniformização de jurisprudência, os autorizantes de recursos que pressupõem interpretação divergente, os rescindentes em razão de declaração de inconstitucionalidade e outros variados trazidos pela doutrina nacional.
O que se colima esclarecer é a necessidade de nova compreensão de diversas normas jurídicas em razão da renovada eficácia que adquiriram os precedentes no direito brasileiro.
Como exemplo, note-se que Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, em posição de vanguarda, com as alterações introduzidas pela Lei nº 12.844/2013 no art. 19 da Lei nº 10.522/2002, tem autorização para “não contestar, interpor recurso ou desistir dos que tenha sido interposto” sempre que a posição da Fazenda Nacional for contrária a:
II - matérias que, em virtude de jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior do Trabalho e do Tribunal Superior Eleitoral, sejam objeto de ato declaratório do Procurador-Geral da Fazenda Nacional, aprovado pelo Ministro de Estado da Fazenda;
III - (VETADO).
IV - matérias decididas de modo desfavorável à Fazenda Nacional pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de julgamento realizado nos termos do art. 543-B da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil;
V - matérias decididas de modo desfavorável à Fazenda Nacional pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de julgamento realizado nos termos dos art. 543-C da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, com exceção daquelas que ainda possam ser objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal.
Cuida-se de inovação que merece aplauso, a considerar o forte conteúdo ético de que dotada, bem como eminente visão de eficiência da máquina pública, abandonando a ultrapassada visão de “recorrer por recorrer”, ciente da alta probabilidade de derrota. Com o novo posicionamento, a Fazenda Nacional é premiada com a dispensa de honorários sucumbenciais, o que, aliado ao que se economiza em trabalho de diversos profissionais e material de expediente, constitui significativa redução de despesas para a União.
2.2 O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS (IRDR)
O IRDR é técnica judicial que permite a análise de determinada matéria objeto de repetitivas demandas pelo tribunal de segundo grau, sempre que atendidos dois requisitos, a saber: I - efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito e II - risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
Atendidos os dois pressupostos, caberá às partes do processo, ao Juiz ou relator, ao Ministério Público ou à Defensoria Pública realizar pedido de instauração do incidente ao presidente do tribunal. Feita a distribuição, o órgão colegiado competente, a ser estabelecido no âmbito de cada tribunal[3], realiza o juízo de admissibilidade, após o qual são suspensos por até um ano os processos pendentes que tramitam no Estado ou Região. Durante este período, eventuais pedidos de tutela de urgência devem ser dirigidos ao juízo onde tramitar o processo suspenso.
Visando à garantia da segurança jurídica, é facultado a qualquer dos legitimados requerer a suspensão de todos os processos individuais ou coletivos em curso no território nacional que versem sobre a questão discutida no incidente instaurado. O requerimento deve ser endereçado ao tribunal competente para conhecer do recurso extraordinário ou especial.
Neste caso, o julgamento do mérito ainda se dará no tribunal de segundo grau, valendo sua decisão apenas na sua área de jurisdição. Entretanto, acaso interposto recurso extraordinário ou especial, a nova decisão terá aplicação em todo o território nacional, conforme prevê o §2º do art. 987.
De toda sorte, com o julgamento do incidente, firma-se tese jurídica que deverá ser aplicada a todos os processos, individuais ou coletivos, que versem sobre a discutida questão de direito e tramitem na jurisdição do tribunal, bem como aos processos futuros que tramitem da mesma forma.
Como se pode depreender da análise acima, o IRDR em muito se assemelha à sistemática dos recursos repetitivos previstos desde o Código de Processo Civil de 1973. Entretanto, sua aplicação tem abrangência consideravelmente superior, vez que o incidente pode ser suscitado a qualquer tempo e terá, aplicação apenas na área de jurisdição do tribunal.
Relevantes discussões que permeavam aos recursos representativos de controvérsia no antigo código foram trazidas para o incidente me baila. A desistência dos recursos repetitivos, e. g. foi alvo de acalouradas discussões, havendo o Superior Tribunal de Justiça firmado o entendimento pela impossibilidade da referida desistência (REsp 1102473/RS, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Corte Especial, julgado em 16/05/2012, DJe 27/08/2012).
A doutrina, entretanto, se insurgiu contra esse posicionamento:
“Quando se seleciona um dos recursos para julgamento, instaura-se um novo procedimento. Esse procedimento incidental é instaurado por provocação oficial e não se confunde com o procedimento principal recursal, instaurado por provocação do recorrente. Passa, então, a haver, ao lado do recurso, um procedimento específico para julgamento e fixação da tese que irá repercutir relativamente a vários outros casos repetitivos. […] Em suma, a desistência não impede o julgamento, com a definição da tese a ser adotada pelo tribunal superior, mas tal julgamento não atinge o recorrente que desistiu, servindo, apenas, para estabelecer o entendimento do tribunal, a influenciar e repercutir nos autos recursos que ficam sobrestados” (DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2014. v. 3)
Este parece ter sido o entendimento positivado pelo novo código para o IRDR, ao dispor expressamente no § 1º do art. 976 que a desistência ou o abandono do processo não impede o exame de mérito do incidente. Nesta situação, assume a titularidade do incidente o Ministério Público, como ocorre nas Ações Civis Públicas. Ademais, considerando o relevante interesse coletivo que envolve a análise de demandas repetitivas, consta da codificação uma isenção tributária de custas processuais em sede de IRDR.
O interesse coletivo revelado no incidente trazido à lume impõe a mais ampla e específica divulgação e publicidade da instauração ao julgamento, por meio de registro eletrônico no Conselho Nacional de Justiça. Além disso, para análise do incidente, pode o relator ouvir amici curiae e realizar audiências públicas para formar o seu convencimento.
Outro ponto digno de nota é a possibilidade de manejo da reclamação sempre que não seja observada a tese adotada no incidente, o que denota ampliação no uso do instituto, cujo propósito da previsão constitucional abrangia tão somente a preservação da competência e autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
Espera-se o posicionamento dos órgãos públicos, principalmente jurisdicionais, acerca da aplicabilidade dos novos institutos trazidos pelo Código de Processo Civil. No exemplo trazido acima, não é possível saber se a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional será autorizada a deixar de contestar e recorrer de tese contrária a seus interesses firmada em sede de IRDR.
3.0 CONCLUSÃO
Com a análise acima, depreende-se que o Código de Processo Civil de 2015 privilegia princípios como a razoável duração do processo, buscando garantir a eficiência do Poder Judiciário como um órgão da administração pública, dotado de elevado poder extroverso.
Nesse sentido, a uniformização de atuação do Judiciário, bem como a sensibilidade para questões de impacto coletivo como as demandas repetitivas, denota interesse do legislador na eficiência administrativa, aproximando-se por vezes do sistema de precedentes judiciais, o common law.
Assim é que o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) surge como relevante instrumento, semelhante ao já conhecido julgamento por amostragem (543-B e 543-C do Código Buzaid), apto a reduzir a litigiosidade repetitiva e garantir a esperada eficiência dos órgãos jurisdicionais. Entretanto, é impossível prever com plenitude os efeitos advindos das diversas inovações trazidas pelo Código.
4.0 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Guilherme Freire de Melo. Poder Público em Juízo para concursos. 5ª Ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2015.
DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil , vol. 2, 9ª ed., Salvador: Ed. JusPodivm, 2014.
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente Judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004.
Disponível em: <http://www.armador.com.br/wp-posts/breves-comentarios-sobre-o-incidente-de-resolucao-de-demandas-repetitivas-irdr-no-novo-cpc.>. Acesso em 11 de abril de 2016.
[1] TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente Judicial como fonte do direito, p. 12.
[2] DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil , vol. 2, 9ª ed., Salvador: Ed. JusPodivm, 2014, p. 383.
[3] É de se notar que a novel legislação cria dever legal para os tribunais providenciarem a atualização dos regimentos internos e competências de seus órgãos fracionários, possibilitando a devida análise de inovações como o IRDR.